sexta-feira, 21 de março de 2025

Bruxelas aprendeu com Marcelo Caetano

 
O último chefe do governo português do Estado Novo, Marcello José das Neves Alves Caetano, foi mestre em reformas do sistema político que se limitaram à mudança de designação. Assim, por exemplo, o partido único, União Nacional (UN), efetivamente capaz de concorrer e eleições legislativas e de propor candidato às eleições presidenciais (elegia-se o Presidente da República, até 1958, por voto direto; depois, através de um colégio eleitoral), passou a designar-se Ação Nacional Popular (ANP). A Polícia Internacional para a Defesa do Estado (PIDE) passou a Direção-Geral de Segurança (DGS). E a Censura passou a Exame Prévio.
Contudo, os estatutos, os objetivos e os procedimentos mantinham-se, praticamente na mesma.
Ora, segundo as últimas informações, a Comissão Europeia, ou seja, o executivo da União Europeia (UE), parece ter aprendido a lição marcelista, como se explica a seguir.
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Ursula von der Leyen apresentou, no início de março, a proposta “ReArm Europe” que pode levar ao investimento de 800 mil milhões de euros no setor da Defesa, nos próximos quatro anos. O plano da UE de reforço da Defesa incluirá uma Task Force conjunta com a Ucrânia para coordenar o apoio militar ao país devastado pela guerra e um Mecanismo Europeu de Vendas Militares para reforçar a base industrial de Defesa europeia. Estes novos instrumentos farão parte do Livro Branco sobre a Defesa, “um roteiro para a Prontidão 2030”, publicado a 19 de março, que se destina a definir as prioridades da UE, em matéria de investimentos na Defesa, e a forma de os financiar, definindo já quatro prioridades, que incluem o aumento do apoio à Ucrânia e o reforço da base industrial de Defesa da Europa.
Em relação à Ucrânia, “há muito mais que podemos fazer”, disse Ursula von der Leyen aos cadetes da Academia Militar Real Dinamarquesa, em Copenhaga, sustentando que o aumento da produção de Defesa da Ucrânia pode ser “um modelo para a Europa” e apelando à aceleração da integração do país no mercado europeu de equipamento de Defesa.
A líder do executivo da UE sublinhou que as empresas europeias de Defesa não conseguem produzir o equipamento nas quantidades e à velocidade que os estados-membros necessitam, em parte, devido ao facto de o mercado europeu estar “demasiado fragmentado e ao facto de a maior parte do investimento em Defesa ser feito fora da Europa – tendência que é preciso inverter.
Segundo Ursula von der Leyen, “temos de comprar mais produtos europeus” e “as empresas precisam de um fluxo constante de encomendas plurianuais para orientar o investimento e aumentar a capacidade”. E, porque, nesta situação, “é ainda mais importante congregar a nossa procura e efetuar aquisições conjuntas, vamos criar um Mecanismo Europeu de Vendas Militares, para ajudar a concretizar este objetivo”, anunciou, dizendo que a Comissão vai convocar um diálogo estratégico com a indústria da Defesa.
A proposta “ReArm Europe” visa ajudar os estados-membros a aumentar as despesas com a Defesa, que inclui um novo instrumento para angariar dinheiro nos mercados de capitais e emprestá-lo aos 27 para projetos de Defesa, bem como a utilização da cláusula de salvaguarda nacional do Pacto de Estabilidade e Crescimento, para permitir que os governos se desviem das regras orçamentais da UE, para as despesas com a Defesa.
O plano delineia também as capacidades de Defesa que a Comissão identificou como prioritárias para esse financiamento, incluindo a Defesa aérea e antimísseis, os sistemas de artilharia, as munições e os mísseis, os drones, a cibernética e a mobilidade militar.
Os dirigentes da UE já deram o apoio político à proposta, numa cimeira extraordinária, esperando-se que discutissem o Livro Branco na cimeira de dois dias agendada para o dia 20. Porém, as decisões só terão lugar na cimeira do final de junho, que se realizará, imediatamente, após reunião dos chefes de Estado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
No dizer da primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, o financiamento é “um primeiro passo importante”, mas o verdadeiro teste é “converter o dinheiro em ações concretas”, pois “a Europa tem de ser capaz de se defender”, para o que precisa de tomar medidas.
Ursula von der Leyen afirmou que “é necessário agir agora” e que, até 2030, a Europa – que não está só e que “está mais unida do que nunca” – “deve ter uma postura de defesa europeia forte”.
De facto, segundo a presidente da Comissão Europeia, a UE está totalmente empenhada em trabalhar com a NATO e com os Estados Unidos da América (EUA), trabalhando para abrir “novos caminhos, em matéria de segurança”, com o Reino Unido e com outros parceiros, incluindo o Canadá e a Noruega.
Porém, um pacto de segurança rápido com o Reino Unido é incerto, já que, para alguns estados-membros, teria de fazer parte da redefinição mais alargada das relações, enquanto os comentários recentes do presidente Donald Trump e de outros altos funcionários da sua administração levantaram preocupações sobre o compromisso contínuo de Washington com a Defesa europeia.
Outra área de contenção com os EUA é a Gronelândia, território semiautónomo pertencente à Dinamarca, que, segundo Trump, Washington poderia tomar pela força, por razões de segurança nacional. Todavia, Ursula von der Leyen assegurou a todos os habitantes da Gronelândia e da Dinamarca, como um todo, que a Europa defenderá sempre a soberania e a integridade territorial.
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O Livro Branco, publicado a 19 de março, retoma, em linhas gerais, a proposta “ReaArme Europe”, apresentada pela Comissão Europeia, que prevê que os estados-membros mobilizem até 800 mil milhões de euros para o setor da Defesa, nos próximos quatro anos, nomeadamente, através da agregação de encomendas e da aquisição de equipamento em conjunto.
Kaja Kallas, chefe da Diplomacia da UE, descreveu-a como “um momento crucial” para o bloco, dando-lhe “uma vantagem competitiva sem igual em qualquer parte do Mundo”.
A principal vantagem financeira para os estados-membros provém da ativação da cláusula de salvaguarda nacional prevista no Pacto de Estabilidade e Crescimento, que lhes permitirá desviar-se das regras orçamentais da UE que limitam os níveis da dívida e do défice a 3% e 60% do produto interno bruto (PIB), respetivamente. Assim, espera-se que todos os 27 estados-membros solicitem a ativação da cláusula de salvaguarda, pelo menos, em abril. A Comissão avaliará o pedido, devendo o processo estar concluído antes das férias de verão.
A líder da Comissão afirmara, anteriormente, que, ao permitir que os estados-membros afetem mais 1,5% do PIB à Defesa, nos próximos quatro anos, estes poderão investir cerca de 650 mil milhões de euros na Defesa, mas, segundo alguns, o resultado final “será ainda mais elevado”.
O acesso à outra principal opção de financiamento, o instrumento SAFE (Simple Agreement for Future Equity), que a Comissão criará, para angariar fundos nos mercados de capitais e para emprestar até 150 mil milhões de euros aos estados-membros, exige que estes façam pedidos de financiamento, no prazo de seis meses.
As capacidades que a Comissão identificou como áreas prioritárias incluem defesa aérea e de mísseis, sistemas de artilharia, munições e mísseis, drones e sistemas contra drones, inteligência artificial (IA), Quantum Computing (área da Informática que utiliza os princípios da teoria quântica e explica o comportamento da energia e dos materiais a nível atómico e subatómico), guerra cibernética e eletrónica e capacitadores estratégicos. E as negociações entre os estados-membros e a Comissão deverão ser rápidas, já que o dinheiro será concedido sob a forma de empréstimos que os estados-membros terão de reembolsar.
Além disso, o plano implica o alargamento do mandato do Banco Europeu de Investimento (BEI), a possibilidade de utilização dos fundos de coesão em projetos de Defesa e a possibilidade de utilização de poupanças e de financiamento privado no setor, bem como a possibilidade de os estados-membros renunciarem ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) nas compras que efetuam conjuntamente com outros estados-membros, através do instrumento SAFE.
O ReArm “já é uma resposta considerável à questão de saber como podemos ajudar os estados-membros, mas o que foi incluído “não esgota, necessariamente, o âmbito deste debate”.
Os líderes da UE deverão abordar a questão na cimeira de junho. Alguns, como o presidente francês, Emmanuel Macron, apelaram, por exemplo, à utilização dos Eurobonds e à utilização de recursos próprios, como um imposto digital.
Emmanuel Macron parece ter conseguido grande vitória com a inclusão, pela Comissão, de uma preferência europeia para garantir o dinheiro através do sistema SAFE, que exigiria que o equipamento adquirido tivesse 65% do seu conteúdo proveniente da UE e que o fabricante da UE tivesse autoridade de conceção sobre os restantes 35%. O objetivo é garantir que nenhum país terceiro possa bloquear a utilização do equipamento no futuro.
As outras propostas emblemáticas incluem uma proposta de Mecanismo Europeu de Vendas Militares, para permitir que os estados-membros agreguem a procura e adquiram conjuntamente equipamentos e um Roteiro Tecnológico do Armamento Europeu, para impulsionar o investimento em tecnologias disruptivas para fins militares.
Por último, a Comissão propõe a criação de reservas estratégicas e de grupos de preparação industrial para a defesa. Isto será facilitado através do regulamento do Programa Europeu para a Indústria da Defesa (EDIP), que incluirá a possibilidade de apoiar financeiramente a constituição de reservas e cuja adoção o Parlamento Europeu (PE) já afirmou tencionar acelerar. O objetivo da constituição de reservas de capacidades militares é conseguir maior agilidade e maior capacidade de responder a qualquer crise.
O comissário europeu da Defesa, Andrius Kubilius, considera que o Livro Branco é “o início do caminho e não é um caminho fácil”, sendo, no atinente a ele, a prioridade do executivo da UE a “implementação”.
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Entretanto, a 21 de março, a Comissão Europeia confirmou que vai eliminar, gradualmente, a expressão “ReaArme Europe” (“Rearmar a Europa”) para descrever a iniciativa multimilionária de compra de armamento para a Europa, após a reação dos líderes de Itália e Espanha, que aduzem ser o nome excessivamente carregado e correr o risco de alienar os cidadãos. Assim, doravante, o plano para aumentar as capacidades de Defesa e a produção, na UE, será conhecido como “Readiness 2030” (“Prontidão 2030”), em referência à data em que a Rússia poderia ter as capacidades necessárias para lançar um ataque contra um estado-membro da UE ou da NATO.
Entretanto, o programa específico para angariar e distribuir 150 mil milhões de euros em empréstimos a juros baixos para facilitar a aquisição de armas e munições avançadas será designado por “SAFE”. Paralelamente, a Comissão propôs a flexibilização das regras fiscais para mobilizar até 650 mil milhões de euros, no total de 800 mil milhões de euros.
“Somos sensíveis ao facto de o nome em si poder suscitar alguma sensibilidade em alguns estados-membros, por isso, é algo que, naturalmente, ouvimos”, disse Paula Pinho, porta-voz principal da Comissão, na tarde do dia 21, frisando: “Se isso dificultar a transmissão da mensagem a todos os cidadãos da UE sobre a necessidade de tomar estas medidas, estamos dispostos, não só a ouvir, mas também a refletir essa sensibilidade na forma como comunicamos sobre o assunto.”
O “Readiness 2030” deve “ser visto no contexto de um âmbito mais alargado”, explicou Pinho.
A mudança de marca ocorreu num período de tempo extremamente curto.
Quando, a 4 de março, Ursula von der Leyen apresentou o projeto de 800 mil milhões de euros, usou a expressão “Rearm Europe” para o descrever e explicitou: “Estamos numa era de rearmamento. E a Europa está pronta para aumentar maciçamente as suas despesas com a Defesa.”
Porém, no início da semana de 17 de março, a Comissão, ao apresentar os textos legais que sustentam o plano, mudou para “Plano Rearm Europe/Readiness 2030”.
Antes da apresentação, a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, tinha manifestado o seu desconforto com a expressão “ReaArme Europe”. “Penso que ‘Rearmar a Europa’ é um nome enganador para os cidadãos, porque somos chamados a reforçar as nossas capacidades de Defesa, mas, hoje em dia, isso não significa comprar armamento de forma trivial”, disse ao Senado, no dia 18, Giorgia Meloni, segundo a qual o foco deve ser mais amplo e abranger a operacionalidade, os serviços essenciais, as infraestruturas energéticas, as cadeias de abastecimento e não só as armas.
O seu homólogo espanhol, Pedro Sánchez, não deixou dúvidas, quanto à sua fobia à expressão, numa cimeira de líderes da UE, em Bruxelas, onde a Defesa foi o tema principal. Tal como Meloni, o espanhol defendeu uma definição mais ampla, que inclua áreas como a cibersegurança, a luta contra o terrorismo, a computação quântica, a inteligência artificial e as ligações por satélite.
“Não gosto do termo ‘rearmamento’. Penso que é uma abordagem incompleta. A Defesa pode ser explicada sob um conceito muito mais amplo, que é a Segurança”, disse Sánchez, no dia 20, vincando que as ameaças enfrentadas pelo Sul da Europa são “um pouco diferentes” das do Leste.
“Penso que temos de educar as pessoas para o facto de que, ao falarmos de Segurança e de Defesa, estamos, fundamentalmente, a falar de tecnologia, muitas vezes, de bens de dupla utilização, pois os drones que podem ser utilizados em caso de conflito, como está a acontecer no Leste da Ucrânia, também podem ser utilizados para combater incêndios florestais”, concluiu.
No final da cimeira, Ursula von der Leyen, recetiva às críticas, deu a entender que está iminente a reformulação da marca, que deixará de lado a designação “Rearmar a Europa”. “A abordagem que estamos a adotar tem um âmbito muito mais vasto”, disse, referindo-se à guerra eletrónica, à cibersegurança e às telecomunicações.
As queixas da Itália e a Espanha suscitaram dúvidas, visto que os dois países estão entre os mais atrasados da NATO, não cumprindo o objetivo de 2% de despesas com a Defesa.
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Tudo não passa da tentativa de douramento da pílula. Já se sabe que Defesa e Segurança andam interligadas e que os equipamentos a adquirir podem servir para muitas funções, mas o móbil da sua aquisição é a eventual guerra. Razão tinha Sophia de Mello Breyner, quando, no poema “As Pessoas Sensíveis”, denunciava que “as pessoas sensíveis não são capazes / De matar galinhas / Porém são capazes / De comer galinhas”.    

2025.03.21 – Louro de Carvalho


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