Fazer penitência não consiste, basicamente, em fazer mortificações corporais, mas em arrepender-se dos pecados e disponibilizar-se à conversão (metanoia) a uma vida sempre melhor, do ponto de vista espiritual. É este o sentido do pregão: “Se não fizerdes penitência [se não vos arrependerdes], todos vós perecereis” (Lc 13,15).
Contudo, as ditas práticas são admissíveis e recomendáveis para induzir o arrependimento, em conformidade com a fé no Evangelho, a que somos chamados, e com a conversão permanente (revisão de vida), que se torna imperativa para o crente.
A Quaresma, anualmente celebrada, é um caminho de conversão e de graça, que reponde às exigências da fé, alicerça a esperança e promove a caridade na justiça.
Nas lições de catequese, aprendemos que o 4.º preceito da Igreja é “guardar abstinência e jejuar nos dias determinados pela Igreja”. Por sua vez, o Catecismo da Igreja Católica (CIC) explica, no n.º 2040, que o sentido do preceito é assegurar “os dias de ascese e de penitência que nos preparam para as festas litúrgicas e contribuem para nos fazer adquirir domínio sobre os nossos instintos e a liberdade do coração”.
Em concreto, a Igreja estabelece o jejum e a abstinência.
O Código de Direito Canónico (CDC), no cânon 1251, estipula que se devem guardar “a abstinência e o jejum na Quarta-feira de Cinzas”, que dá início à Quaresma, “e na sexta-feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”, que precede a solenidade do Domingo de Páscoa. Atualmente, são esses os únicos dois dias em que os fiéis estão obrigados a guardar o jejum eclesial.
O jejum eclesial (em Latim, era o adjetivo “ieiunus, a, um”: vazio, magro, sem comer) que se deve observar, nos dois dias assinalados (antes, eram mais), consiste em tomar uma única refeição completa até a saciedade (o que não significa empanturrar-se, mas comer o suficiente, segundo a própria condição). Além dessa refeição única, que pode ser feita à hora do almoço, do jantar ou no pequeno-almoço, a disciplina tradicional da Igreja reconhece a possibilidade de se tomarem duas outras refeições, ligeiras e modestas – colações, tapas ou parvas (pequenas) –ao longo do dia, que devem equivaler a um pequeno lanche. Embora possa ser feito a qualquer hora, é costume, inclusive por razões de conveniência, reservar o primeiro desses lanches para o desjejum da manhã; e, à hora do jantar, é possível tomar o segundo, como uma comida mais robusta, mas longe de saciar.
Este é o mínimo que a Igreja nos pede. Nada impede os que, por terem boa saúde ou se sentirem mais generosos, de se absterem, por completo, de toda a comida ou de, à hora das refeições, se alimentarem somente de pão e água.
Porém, o CDC, no cânon 1252, estabelece que “à lei do jejum estão sujeitos todos os maiores de idade”, isto é, a partir dos 18 anos completos, até terem começado os sessenta anos”, isto é, até terem completado os 59 anos. Estão dispensados da observância do jejum, além dos menores de idade e dos maiores de 59 anos, as pessoas que têm alguma dificuldade de saúde ou os que têm como ofício alguma forma de trabalho braçal. “Todavia”, continua o mesmo cânon, “os pastores de almas e os pais procurem que, mesmo os que, por motivo de idade menor não estão obrigados à lei da abstinência e do jejum, sejam formados no sentido genuíno da penitência”.
Quanto à abstinência (em Latim, “abstinentia, ae: ação de se abster – do verbo “abstinere –, temperança, domínio dos apetites) é o ato de se abster ou de se privar de algo), à qual estão obrigados todos os que completaram 14 anos, a Igreja prescreve que são dias de penitência todas as sextas-feiras do ano, dias em que, salvo o caso de coincidirem com alguma solenidade, os fiéis estão obrigados a abster-nos de carne “ou de outro alimento segundo as determinações da Conferência episcopal” (cânon 1251) de cada país: “A conferência episcopal pode determinar, mais pormenorizadamente, a observância do jejum e da abstinência, bem como substituir outras formas de penitência, sobretudo obras de caridade e exercícios de piedade, no todo ou em parte, pela abstinência ou jejum” (cânon 1253).
***
E é aqui que bate o ponto. A evolução dos tempos permitiu que os alimentos considerados menos nutritivos, menos apetitosos e menos caros, se tornassem mais apetitosos, mais caros e tão nutritivos como as carnes. Por isso, a disciplina eclesial deixou de se focar na abstinência das carnes, mas a sugerir uma atitude autoausteritária, passando, por exemplo, por uma prática espiritual (missa, rosário, leitura da Bíblia, meditação), uma prática de ascese (não tomar café, não fumar, não ver uma novela ou um filme, prescindir de um prato apetitoso, etc.), por uma poupança em favores de pobres (pessoas ou obras de beneficência) ou por outro ato de solidariedade material ou social. Até se vulgarizou o uso, nas paróquias e em outras comunidades eclesiais, da recolha de fundos para o contributo penitencia, em favor de necessitados do bairro, das Missões, das obras diocesanas ou de obras de beneficência.
É óbvio que estas privações impendem sobre as pessoas em condições normais de saúde e de vida.
***
Em termos históricos, é de referir que o jejum e a abstinência já vêm de outras culturas e religiões, como contraponto ao excesso. E os cristãos têm essa herança do Antigo Testamento. Porém, já os profetas e os salmistas censuravam estes ritos, enquanto vazios de sentido e de fingimento, vindo Deus a pedir o jejum do coração, o jejum dos pecados e das situações de opressão e de repressão dos mais pobres e dos mais fracos, bem como de todas as formas de discriminação, nomeadamente, de doentes, de servos, de estrangeiros, de mulheres e de crianças.
Com a estabilização da vida eclesial e, sobretudo, numa Europa de contrastes geográficos e sociais, a abstinência consignada na privação de carnes, em prol do peixe, tinha um efeito social e económico, com vista ao esbatimento mínimo das desigualdades. Os povos do interior, supostamente, mais ricos e mais nutridos, eram instados a fazer chegar as carnes dos animais cujo habitat era terrestre aos povos do litoral, mais pobres; e os povos do litoral, a fazer chegar o peixe, conservado pela salga, aos povos do interior.
Assim, às segundas-feiras, às quartas-feiras e às sextas-feiras, comia-se peixe; às terças-feiras, às quintas-feiras e aos sábados, comia-se carne. E aos domingos e em outos dias de festa, não havia estas limitações, o que ainda hoje sucede em dias festivos.
Tudo isto se alterou com a perda do sentido de espiritualidade do comum dos fiéis, cujo fito era desobrigarem-se, pagando, se tal fosse exigido.
Por outro lado, as Cruzadas medievais e o espírito de cruzada na expansão dos povos ibéricos, sob a bênção da hierarquia, deram cabo do verdadeiro sentido da penitência.
“Bula da Cruzada” ou “Bula da Santa Cruzada” foi a designação dada às sucessivas concessões de indulgências aos fiéis da Igreja Católica, em Portugal e nas suas possessões, que contribuíssem com os seus bens para fins considerados como de interesse para a expansão do catolicismo.
A sua aquisição implicava a dispensa de certos rituais católicos, como jejuns e abstinências. A sua normalização aproximou-se de um certo mercadejar da religião.
Terminada a reconquista, a concessão de indulgências contra pagamento para a Bula da Cruzada manteve-se, passando os rendimentos obtidos a ser aplicados na manutenção das ordens militares religiosas, nas conquistas ultramarinas e no resgate de cativos.
A Bula da Cruzada foi extinta a 31 de dezembro de 1914, pelo Papa Bento XV, que a substituiu pelos Indultos Pontifícios, ligados à disciplina penitencial e cujos rendimentos revertiam para a fundação e manutenção de seminários. Estes indultos foram extintos em 1966, com a disciplina penitencial decretada pela Constituição Apostólica “Poenitemini”, do Papa São Paulo VI.
A bula (em Latim, “bulla”, com o significado de bolha ou de bola) era um selo de metal usado nas chancelarias dos Estados, para autenticar os documentos mais solenes. Houve bulas de ouro e de prata. A chancelaria da Santa Sé passou a usar bulas de chumbo em forma de medalhão, desde o século VI. Depois, o nome de bula passou para o documento assim autenticado.
Hoje, a Santa Sé produz vários tipos de documentos pontifícios (distintos dos documentos conciliares: constituições, decretos e declarações); constituições apostólicas, cartas apostólicas, cartas, encíclicas, exortações apostólicas, bulas, motu proprio, decretos, quirógrafos, declarações, instruções, etc.
***
É importante lembrar que todas as
sextas-feiras do ano são dias de penitência,O jejum é obrigatório para todos os católicos entre 18 e 59 anos. A abstinência é obrigatória para todos os católicos, a partir dos 14 anos. No entanto, existem exceções: estão isentos os doentes, as mulheres grávidas, as mães que amamentam, os que realizam trabalhos fisicamente exigentes ou que seguem dietas especiais por motivos de saúde.
O jejum e a abstinência não podem ser apenas regras externas ou práticas vazias, pois têm profundo significado espiritual. Consistem em atos de penitência e de reparação e são exercícios de autocontrolo.
Jesus ensina que certos males só podem ser vencidos “com oração e jejum” (Mc 9,29). Quando jejuamos, reconhecemos a nossa fragilidade e unimo-nos à Cruz de Cristo, oferecendo os nossos pequenos sacrifícios em reparação por nossos pecados e pelos do Mundo.
Vivemos numa sociedade marcada pelo consumismo e pela busca constante do prazer imediato. O jejum e a abstinência ajudam a fortalecer a vontade, a aprender a dizer “não” a nós mesmos e a praticar a virtude da temperança.
O jejum e a abstinência devem comportar um gesto de solidariedade para com os pobres. A Igreja sempre viu o jejum como oportunidade para a caridade na justiça. São Leão Magno dizia: “Um jejum sem misericórdia é apenas uma aparência de penitência.” Aquilo que economizamos, ao jejuar, pode ser partilhado com os pobres.
Quando nos preparamos para uma grande celebração, fazemos esforços para que tudo seja perfeito. Da mesma forma, a Quaresma é tempo de preparação para a grande celebração da Ressurreição do Senhor. Por isso, a abstinência quaresmal deve ser um meio de preparar a Páscoa.
O jejum e a abstinência devem ser praticados com espírito renovado. Não se devem fazer por obrigação, pois não se trata de seguir, mecanicamente, uma regra, mas de a viver com amor.
Devem ser acompanhados com oração. Um jejum sem oração é uma dieta. Para que seja verdadeira experiência de crescimento espiritual, deve ser acompanhado por momentos de oração.
Podem ser oferecidos por uma intenção especial. Cada jejum e cada abstinência podem ser oferecidos pela conversão de uma pessoa, pela paz no Mundo ou por uma necessidade especial.
Deve evitar-se a hipocrisia e as lamentações. Jesus adverte em Mateus 6,16-18: “Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os outros não percebam que estás jejuando, mas apenas teu Pai, que vê o que está oculto.”
Podemos usar o que economizamos em alimentos para ajudar alguém necessitado, ou seja, unir-se à caridade eclesial, que deve enformar a justiça, e não substituí-la.
Santo Agostinho exortava: “Mata, em ti, o que é mau, e o que é bom ressuscitará.”
Não podemos limitar-nos ao jejum de alimentos, mas devemos fazer o de maus hábitos, de julgamentos desnecessários, de palavras ofensivas e de tudo o que nos afasta de Deus. E, em seu lugar, preenchamo-nos com oração, com amor, com justiça e com caridade.
Para tanto, há que evitar a simplificação, ou seja, fazer o mínimo, apenas para ter a sensação do cumprimento. Com efeito, a simplificação pode ter efeito perverso. Por exemplo, antigamente servia-se o cálice com vinho e água (embora com menos água do que vinho), à boa maneira judaica; com o rolar do tempo, reduziu-se a porção de água a uma gota através de uma minúscula colherinha.
Via-se nessa mistura a união da divindade de Cristo com a nossa humanidade, com o contrassenso de Ele descer na abundância da sua divindade e de Lhe oferecermos nós apenas um avo da nossa humanidade.
Também há casos de ampliação indevida. Por exemplo, consta que se generalizou a veneração de um dente (relíquia) de São Januário para conforto das parturientes na dor. Um Papa, intrigado com a suposta abundância de dentes do santo, mandou proceder à sua recolha. Recolheu-se um alqueire de dentes de São Januário, em vez dos 32. Ainda, há dias um jornal noticiava o negócio com relíquias. E são de duvidosa autenticidade muitos “santo lenho” que andam por aí. Aliás, Eça de Queirós satirizou o negócio das relíquias com o romance “A Relíquia”.
É ainda de censurar a comercialização da religião, por exemplo, pagando em compensação pela falta de penitência e pagando para que outros satisfaçam promessas que nós fizemos.
São contrafações que não invalidam a religião, mas que lhe causam prejuízo, a nível da credibilidade. O conteúdo da fé não está aí.
2025.03.29
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário