domingo, 30 de março de 2025

A Síria, devastada por conflitos, tem novo governo de transição

 
A 29 de março, foi empossado o novo governo de transição da Síria, quatro meses após a destituição de Bashar al-Assad, que esteve no poder durante 24 anos.
A formação de tal governo fora anunciada, como sendo o propulsor de um período de transição de cinco anos, com o objetivo de restaurar a estabilidade e a paz, num país devastado por mais de uma década de guerra.
O gabinete de 23 membros é o primeiro formado na fase de transição de cinco anos, sucedendo ao governo provisório criado, imediatamente, após a remoção de Bashar al-Assad do poder, no início do dia 8 de dezembro, e reflete a mistura de origens religiosas e étnicas. Porém não inclui representantes das Forças Democráticas Sírias (FDS), apoiadas pelos Estados Undos da América (EUA) e lideradas pelos Curdos, nem da administração civil autónoma do Nordeste da Síria. No início deste mês, em Damasco, al-Sharaa e o comandante das FDS, Mazloum Abdi, chegaram a um acordo histórico sobre um cessar-fogo, a nível nacional, e sobre a integração das forças apoiadas pelos EUA no exército sírio.
Em vez do referido governo provisório, nos termos da constituição temporária aprovada pelo presidente interino, Ahmad al-Sharaa, no início deste mês, foi constituído o governo, que será chefiado por um secretário-geral.
Anunciado pouco antes do Eid-al-Fitr (celebração que encerra o mês sagrado muçulmano do Ramadão, com início na Síria, a 31 de março) o governo apresenta vários elementos novos, além dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, que se mantêm nos cargos. Já Anas Khattab, o novo ministro do Interior, dirigia, anteriormente, o departamento dos serviços secretos.
Vincando o significado do novo governo, Ahmad al-Sharaa considerou: “A formação de um novo governo, hoje, é uma declaração da nossa vontade conjunta de construir um novo Estado.”
O ministro da Defesa, Murhaf Abu Qasra, afirmou que o seu principal objetivo era desenvolver um exército profissional “do povo e para o povo”.
Entre os ministros recém-nomeados, encontra-se Hind Kabawat, ativista cristã que se opôs a al-Assad, desde o início do conflito, em março de 2011, nomeada ministra dos Assuntos Sociais e do Trabalho. Raed Saleh, que dirigiu a Defesa Civil, conhecida como Capacetes Brancos, foi nomeado ministro para as Catástrofes de Emergência. Além disso, Mohammed Terko, curdo sírio radicado em Damasco, foi nomeado ministro da Educação. E Mohammed al-Bashir, que tem sido o chefe do governo interino, desde a queda de Assad, foi nomeado ministro da Energia, para revitalizar os setores da eletricidade e do petróleo, fortemente afetados pelo conflito.
A principal missão do novo governo é trabalhar para pôr termo à guerra e restabelecer a estabilidade num país que, recentemente, viveu confrontos e atos de retaliação na região costeira, violência de que resultou na morte de mais de mil pessoas, na sua maioria alauitas e leais a al-Assad, que pertenciam ao grupo minoritário.
A maioria dos grupos insurretos que, atualmente, governam a Síria são predominantemente sunitas, mas a inclusão de indivíduos de seitas minoritárias – uma mulher e um alauita – assinala a mensagem deliberada de mudança de al-Sharaa para as nações ocidentais, que têm defendido o envolvimento das mulheres e das minorias na paisagem política da Síria.
A formação deste governo, religiosamente variado, parece a tentativa de persuadir os países ocidentais a reconsiderarem as duras sanções económicas que têm estado em vigor contra al-Assad, há mais de uma década, pois, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 90% da população síria vive abaixo do limiar da pobreza e milhões de pessoas sofrem reduções na ajuda alimentar, devido ao conflito em curso.
Poucas horas antes do anúncio do governo, o Departamento de Estado dos EUA emitiu um aviso aos cidadãos americanos sobre o elevado risco de ataques, no feriado de Eid-al-Fitr, indicando que tais ataques poderiam visar embaixadas, organizações internacionais e instituições públicas, em Damasco, com ameaças possivelmente provenientes de atores solitários, de grupos armados ou da utilização de dispositivos explosivos.
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Ahmad al-Sharaa estimava, em entrevista à rede de televisão saudita Al-Arabiya, nos fins de dezembro, que seriam necessários três anos para redigir a nova constituição, precisando que “quaisquer eleições válidas exigirão um recenseamento exaustivo da população”. Por isso, a realização de eleições no país poderá demorar até quatro anos e o presidente interino tenciona dissolver, numa cimeira de diálogo nacional, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), o grupo islamista, a que preside, que liderou a insurreição e que lidera a nova autoridade síria.
A entrevista surgiu quase um mês depois de o grupo ter desencadeado a insurreição relâmpago que derrubou o presidente al-Assad e pôs fim à revolta do país que se transformou em guerra civil, iniciada em 2011.
A dissolução do HTS ocorrerá depois de anos a funcionar como o grupo rebelde dominante no país, que detinha um enclave estratégico no Noroeste da Síria.
Além da necessidade de proceder a um exaustivo recenseamento, a realização de eleições demorará também, devido à necessidade de as diferentes forças sírias manterem um diálogo político, após cinco décadas de regime ditatorial da dinastia al-Assad (uma vez que se pretende que “a Constituição dure o maior tempo possível”), bem como à necessidade de reconstruir as infraestruturas do país devastado pela guerra.
Al-Sharaa dizia permanecer como líder de facto da Síria até 1 de março, data em que as diferentes fações da Síria deveriam dialogar, para delinear o futuro político do país e estabelecer um governo de transição que reúna o país dividido.
Já depois da deposição de al-Assad, continuaram os ataques israelitas armas e infraestruturas militares, entre os quais se destaca um ataque aéreo israelita nos arredores de Damasco, que matou, pelo menos, 11 pessoas (na sua maioria civis), de acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH), sediado no Reino Unido, segundo o qual, teve como alvo um depósito de armas que pertencia às forças de al-Assad, perto da cidade industrial de Adra, a Nordeste da capital. Porém, Israel, que lançou centenas de ataques aéreos, em toda a Síria, desde que a revolta do país se transformou em guerra civil, em 2011, raramente os reconhece. Diz que os seus alvos são grupos apoiados pelo Irão que apoiaram al-Assad.
Ao invés das suas críticas ao Irão, principal aliado de al-Assad, al-Sharaa espera manter “relações estratégicas” com a Rússia, cuja força aérea desempenhou papel fundamental na manutenção de Assad no poder, durante mais de uma década de conflito.
O grupo liderado pelos Curdos, com o qual o líder do HTS fez um acordo histórico, como já foi referido, é o principal aliado de Washington, na Síria, onde está fortemente envolvido no combate às células adormecidas pertencentes ao denominado Estado Islâmico.
Os rebeldes sírios, apoiados pela Turquia, tendo entrado em confronto com as FDS, mesmo depois da insurreição, tomaram a cidade-chave de Manbij, dando a Ancara a esperança de criar uma zona tampão perto da sua fronteira no Norte da Síria.
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Ahmed al-Sharaa, líder do HTS, antigo grupo rebelde, que foi, em tempos, afiliado da Al-Qaeda, tem estado, de facto, no comando do país, como presidente interino, desde que as forças da oposição invadiram Damasco, no início do dia 8 de dezembro, na sequência da ofensiva-surpresa que durou menos de duas semanas.
O coronel Hassan Abdul Ghani, porta-voz militar do governo provisório, disse que al-Sharaa formaria um conselho legislativo temporário. A constituição vigente durante o regime de Bashar al-Assad foi cancelada e dissolvido o parlamento do país.
Al-Sharaa, que usava, anteriormente, o nome de guerra Abu Mohammed al-Jolani, num discurso em que envergava uniforme militar, disse que ele e os colegas enfrentavam uma “tarefa pesada e uma grande responsabilidade”, ao tentarem reconstruir um país devastado por mais de 13 anos de guerra civil. “Se o vencedor for arrogante, após a sua vitória, e esquecer a graça de Deus sobre ele, isso levá-lo-á à tirania”, afirmou.
As prioridades da administração interina são “preencher o vazio de poder, de forma legítima e legal”, e “manter a paz civil, procurando a justiça transitória e evitando ataques de vingança”.
O Qatar foi o primeiro país a reagir à nomeação de al-Sharaa, sustentando que se tratava de um passo em direção à “transferência pacífica de poder, através de um processo político abrangente”.
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A 9 de março, verificou-se que mais de mil pessoas foram mortas, após dois dias de confrontos entre as forças de segurança sírias e os partidários de Bashar al-Assad.
Vários assassinatos, por vingança, se sucederam, tornando-se um dos atos de violência mais mortíferos do país, em mais de uma década, de acordo com um grupo de monitorização da guerra.
O OSDH afirmou que, além dos quase 750 civis mortos, na sua maioria em tiroteios à queima-roupa, foram mortas 125 forças de segurança do governo e cerca de 150 militantes de grupos armados afiliados a Assad, acrescentando que a eletricidade e a água potável foram cortadas em grandes áreas em torno da cidade costeira ocidental de Latakia. Por sua vez, o governo afirmou que estava a responder a ataques das forças remanescentes de Assad e culpou “ações individuais” pela violência desenfreada.
Os Alauitas constituíram uma grande parte da base de apoio de Assad, durante décadas. Agora, residentes de aldeias e de cidades alauitas relataram que homens armados abriram fogo contra Alauitas nas ruas ou nos portões das suas casas, que muitas das suas casas terão sido saqueadas e incendiadas, em diferentes zonas, e que os ataques a Baniyas foram indiscriminados e tiveram como objetivo vingar-se da minoria alauita, pelas atrocidades cometidas pelo regime de Assad.
O incidente chocante suscitou reações e preocupações por parte de responsáveis ocidentais. Além das reações dos enviados especiais da Alemanha e da União Europeia (UE) no território, a França manifestou “a sua profunda preocupação” com tais atos de violência e condenou, de forma veemente, as atrocidades cometidas contra civis, por motivos religiosos, e contra prisioneiros.
A 10 de março, o presidente interino constituiu uma comissão para investigar as vagas de violência entre as forças de segurança e os Alauitas fiéis ao presidente deposto Bashar al-Assad.
O porta-voz do Ministério da Defesa, coronel Hassan Abdel-Ghani, informara, ainda no dia 9, que as forças de segurança restabeleceram o controlo da região e continuariam a perseguir os líderes da insurreição. Todavia, apesar de as autoridades terem apelado ao fim do choque entre os grupos islâmicos, os confrontos tornaram-se mortais e muitos civis foram mortos.
Segundo o OSDH, 745 civis foram mortos, na sua maioria, em tiroteios; foram mortos 125 membros das forças de segurança do governo e 148 militantes de grupos armados afiliados a Assad. Entretanto, o presidente interino apelava à unidade e prometia que o país faria a transição para um sistema que inclua o mosaico de grupos religiosos e étnicos da Síria, no âmbito de eleições justas, mas os céticos questionam se isso irá, realmente, acontecer.
Responsabilizando os remanescentes do antigo governo pelo surto de violência e alguns partidos estrangeiros que os apoiam, Al-Sharaa formou uma comissão composta, maioritariamente, por juízes, para investigar a violência, e exigiu a responsabilização de todos os que ferem civis e maltratam prisioneiros.
Marco Rubio, secretário de Estado norte-americano, instou as autoridades sírias a “responsabilizar os autores destes massacres” e garantiu que os EUA “estão ao lado das minorias religiosas e étnicas da Síria, incluindo as comunidades cristã, drusa, alauita e curda”.
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A Síria enfrenta enormes desafios, desde a necessidade de reconstrução de uma economia e de infraestruturas destruídas pela guerra, até ao estabelecimento de uma nova constituição e de mecanismos de justiça para os indivíduos acusados de crimes de guerra.
Embora os incidentes de retaliação e punição coletiva tenham sido menos generalizados do que se esperava, muitos membros das comunidades minoritárias da Síria – incluindo curdos, cristãos, drusos e membros da seita alauita de Assad – estão preocupados com o seu futuro e ainda não estão convencidos das promessas de governação inclusiva dos novos governantes.
Os organizadores da conferência de Damasco, iniciada a 25 de fevereiro, sob a égide do presidente interino, afirmaram que foram convidadas todas as comunidades da Síria. E as forças participantes (cerca de 600 pessoas) deram ideias para delinear o futuro do país. Entre os participantes, encontravam-se mulheres e membros de comunidades religiosas minoritárias. O objetivo era formular recomendações não vinculativas, relativamente à legislação provisória do país, em antecipação à elaboração da nova constituição e à formação do novo governo.
Os líderes islâmicos da Síria enfrentam também o desafio de transformar as antigas fações insurretas no único exército nacional, que deverá controlar todo o território.
Alguns grupos armados, principalmente as FDS, apoiadas pelos EUA e lideradas pelos Curdos, que dominam o Nordeste da Síria, recusaram aderir ao desarmamento e desmantelar as suas unidades. Assim, os dirigentes das FDS não foram convidados para a Conferência de Damasco e um grupo de partidos políticos maioritariamente curdos afirmou, em comunicado, que a conferência “não reflete a realidade das componentes sírias”.
Para lá das tensões internas, as novas autoridades sírias enfrentam ameaças externas. Por exemplo, O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, afirmou que o seu país não permitirá que o novo exército sírio ou o HTS, “entrem na zona a Sul de Damasco”. O objetivo de Israel é proteger os Drusos, minoria religiosa que vive no Sul da Síria e nos Montes Golã, em Israel.
Após a queda de al-Assad, as forças israelitas deslocaram-se para o território, no Sul da Síria, adjacente aos Montes Golã, anexados por Israel, e deixaram claro que tencionam aí permanecer indefinidamente. Porém, os novos governantes sírios não responderam, diretamente, ao aviso de Netanyahu, embora al-Sharaa tenha afirmado, na conferência de Damasco, que a Síria deve “confrontar, firmemente, qualquer pessoa que queira interferir com a nossa segurança e unidade”.
O ministro interino dos Negócios Estrangeiros, Asaad al-Shibani, afirmou, por sua vez, que as novas autoridades sírias “não aceitarão qualquer violação da soberania ou da independência” das suas decisões nacionais”. E elogiou o esforço do governo para restabelecer os laços diplomáticos com os países árabes e ocidentais e para levantar as sanções impostas no regime de Assad.
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Enfim, apesar das disputas internas e externas, já não é sem tempo que a martirizada Síria parece retomar caminhos de futuro, para o que precisa de apoio da comunidade internacional.

2025.03.30 – Louro de Carvalho


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