A apetência do presidente Donald Trump, em relação à
Gronelândia, não é mais do que um modo desajeitado de reconhecer que os Estados
Unidos da América (EUA) chegaram atrasados ao palco da disputa das riquezas do
Ártico e à consecução de uma posição territorial muito importante, em termos geoestratégicos,
até por não disporem de uma longa zona costeira sobre aquele oceano glacial. Com
efeito, apenas confinam com ele através do Alasca.
Com o degelo progressivo causado pelo aquecimento global, a
região ártica apresenta novas possibilidades, como rotas de transporte
terrestres, marítimas e áreas, além de imensos recursos minerais a explorar, o
que lhe conferiu importância geopolítica, numa disputa que envolve potências
como a Rússia, os EUA e a China, bem como outros atores regionais, com menor
influência, como o Canadá e os países escandinavos.
Em 2009 a
Rússia fincou uma bandeira de titânio no solo oceânico do Ártico. O gesto
integrou uma expedição científica para solicitar direitos sobre o leito do
Ártico, em conformidade com a legislação marítima internacional, mas foi
entendido como demonstração de força e de posicionamento geopolítico no extremo
norte do planeta.
A Rússia vem
a desenvolver uma via marítima pelo seu mar territorial do Ártico para ligar a Europa
e a Ásia. O crescente degelo, resultante do aquecimento global, viabiliza tal
investimento, com a vantagem de criar a capacidade de suportar um número maior
de navios do que o Mar Vermelho ou o Canal do Panamá. A costa ártica russa tem
25 portos e o país dispõe de quase 50 navios quebra-gelos, alguns dos quais
movidos a energia nuclear, de que dependem, por ora, os deslocamentos. E a
Rússia é o único país do Mundo com embarcação que tem a energia nuclear como
propulsor. Os demais países dispõem navios quebra-gelos convencionais de propulsão
a gasóleo. Ora, com o seu projeto de exploração económica, a Rússia,
aproveitando a geografia que lhe é favorável (tem a maior costa banhada pelo
Oceano Ártico), vem lançando navios para a exploração dos recursos naturais.
A fim de proteger
estas atividades, posicionou-se estrategicamente, antes dos rivais, implantou
21 bases militares na região e posicionou submarinos nucleares de ataque. É o
país com maior capacidade militar na região, o que lhe confere relevância geoestratégica.
Com saídas para o mar a Sul (Mar Negro) e a Leste (Mar Báltico) em zonas mais
disputadas e sem acesso direto aos oceanos Atlântico e Índico, o Ártico
significa, para a estratégia russa, importante área de projeção do poder naval
e elemento de garantia da segurança.
Para o
desenvolvimento da “Northern Sea
Route” (Rota Marítima do Norte), a Rússia tem parceria com a
China, interessada na viabilização desta rota. Os Chineses têm tanto interesse
neste novo corredor como em fornecer insumos e equipamentos para a
infraestrutura necessária, como navios quebra-gelos, navios de escolta, satélites,
portos, etc. E podem prover seguros aos navios russos, operações
impossibilitadas pelas sanções ocidentais a Moscovo, pela invasão da Ucrânia. Por
isso, os Chineses serão compradores permanentes dos serviços da infraestrutura
russa. É certo que os Europeus, os Japoneses, os Coreanos e outras nações
asiáticas serão clientes desta rota, mas os Chineses serão os principais.
A China
denomina a sua estratégia para o Ártico como parte da “Belt and Road Initiative”
ou “Cinturão e Rota da Seda”, no caso “Rota da Seda do Ártico”, expressão que
cita no seu último “livro branco”, com as diretrizes estratégicas. A viagem por
esta via demora 40% menos tempo do que pelo Canal de Suez, no Egito, um ganho
logístico de tempo e grande economia de combustível. Na verdade, as opções de
rotas são poucas e com potenciais problemas. O Canal de Suez está saturado e
está localizado no Médio Oriente, área instável, como se vê no conflito em Gaza
e com os ataques dos Houthis no Mar Vermelho; a Rota do Noroeste passa por
águas reivindicadas pelo Canadá e sob influência estratégica direta dos EUA; e
o Canal do Panamá serve para o comércio com o continente americano.
A região é
muito rica em recursos naturais. De acordo com o US Geological Survey,
o serviço geológico do governo dos EUA, o Ártico contém cerca de 90 biliões de
barris de petróleo, 13% das reservas globais e cerca de 44 biliões de barris
líquidos de gás natural. Assim, a China tem grande interesse tanto na rota do Ártico
como na exploração dos recursos naturais. Por isso, em associação com a Rússia,
os Chineses já investiram 90 biliões de dólares em projetos ligados a
combustíveis fósseis e minerais.
Num
movimento unilateral, os EUA reivindicaram, em dezembro de 2023, a expansão da
sua plataforma oceânica continental em mais de um milhão de quilómetros
quadrados no Ártico e no Mar de Bering. Washington quer assegurar direitos
sobre o leito do mar e sobre os seus recursos. Porém, o não reconhecimento
internacional destas demandas e a inclusão da Finlândia e da Suécia à Organização
do Tratado do Atlântico Norte (NATO), juntando-se aos demais países nórdicos a Noruega,
a Islândia e a Dinamarca (que tem soberania sobre a Groelândia) na organização
militar liderada pelos EUA, apontam para o risco de militarização da região.
As disputas
do Ártico deviam ser arbitradas pela Comissão de Limites da Plataforma
Continental, da Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, os EUA não
ratificaram a Convenção das Nações Unidas para Direito do Mar (UNCLOS). A falta
de acordos entre os participantes deste tabuleiro geopolítico leva a
preocupações ambientais, dada a sensibilidade dos ecossistemas da região. A
exploração de petróleo, de gás e de outros minerais sem limites claros e regras
para operacionalização, aceites por todos os participantes, comporta sérios
riscos para uma fauna bastante sensível, dados os graves efeitos do degelo da
calota polar.
Em relação à
Rússia e também à China (não banhada por esse oceano, mas com importante
presença na região, inclusive com exercícios conjuntos da sua marinha com a
marinha russa), os EUA estão bastante atrasados. E a persistente firmeza das
reivindicações de Donald Trump, sem qualquer proposta de mediação ou de negociação,
tendem a tornar, nos próximos anos, o Ártico uma região de forte disputa
geopolítica entre as grandes potências.
A
elevação da aliança económica entre a Rússia e a China a patamares superiores
talvez seja o grande efeito colateral do conflito na Ucrânia, o qual, além de
acelerar a generalizada desconfiança no dólar como moeda de reserva
internacional e de modificar a geografia económica do Mundo com a ampliação de
sistemas locais de pagamento baseado em moedas locais, traz outra repercussão,
a plena integração dos territórios económicos russo e chinês na União Eurásica,
que terá o poder de influenciar o futuro sistémico com a mesma força mostrada
pela unificação do território económico dos EUA, no último quartel do século
XIX.
Não
se trata do capitalismo como se desenvolveu no século XX, nem do socialismo que
redundou, primeiro, numa economia continental unificada, no final da primeira
década do século XXI, na China, e no lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota, depois.
A primeira grande consequência do processo está na integração movida por
centenas de biliões de dólares em centenas de projetos, em dezenas de áreas,
entre as economias chinesa e russa. E está para ser aprofundado um novo
capítulo desta cooperação, com o desenvolvimento de uma extensão da Iniciativa
Cinturão e Rota, passando pelo desenvolvimento de uma rota, não só comercial,
que inclui o Oceano Glacial Ártico, com repercussões nada pequenas.
É
de salientar que, se o aquecimento global é questão humana existencial, também
abre possibilidades de cooperação entre a China e a Rússia. Por exemplo, a
Sibéria poderá pôr limites no acesso brasileiro ao mercado de alimentos na
China, tal como a navegação e a exploração no Ártico abrem grandes possibilidades,
por motivos diferentes, aos Chineses e aos Russos.
Aos
Chineses, a abertura de uma rota marítima pela “Passagem do Noroeste”, bem como
pela Rota Marítima do Norte, permitirá que as suas empresas economizem tempo e
custos de transação no transporte de mercadorias para o Ocidente. O aquecimento
das águas do Ártico transformará a Rota Marítima do Norte numa alternativa à
maior rota transcontinental que atravessa os mares meridionais da Eurásia, bem
como a África, pelo Canal de Suez. Por exemplo, a passagem de um navio de carga,
de Xangai a Hamburgo, pela Rota Marítima do Norte, será 2800 milhas mais curta do
que a viagem pelo Canal de Suez. Se a China encontrar uma rota de transportes
mais segura do que as que passam pelo Oceano Índico e pelo Mar do Sul da China,
poderá obter mais acesso a recursos energéticos vitais para a continuidade do
seu processo de desenvolvimento. Da mesma forma, os Russos encontrarão, nos Chineses,
as possibilidades de financiamento e de cooperação negadas, hoje, pelo Ocidente.
Também
é de salientar que o derretimento do permafrost abriu a verdadeira corrida, por
parte dos países árticos, pela exploração dos enormes depósitos identificados de
petróleo e de gás natural, bem com dos diamantes, da platina, do chumbo, do manganês,
do níquel, do ferro, do urânio, do cobre, do lítio, das pedras preciosas e de muitos
outros recursos, incluindo mais uma zona de piscicultura, na região.
Trata-se
de mais uma fronteira aberta à ação política e militar por parte de uma série
de atores. Porém, o impacto da cooperação entre Rússia e China na construção
desta “Rota do Norte”, além de ser parte da expansão da União Eurásica – mais
um sinal da mudança de eixo do poder mundial do Atlântico Norte à Ásia –, gera
tensões como a recente negativa de países, como a Islândia e a Dinamarca, por
cooperação chinesa em temas conexos com o Ártico, mas a China não desiste da
aproximação com esses países: planeia uma investida política sobre a Islândia
para a construção de dois portos, assim como um porto na Noruega (Kirkenes),
como parte da roadway initiative.
Temos,
pois, de passar a ocupar-nos mais com esta região. O Mundo está a mudar mais
rápido do que se imaginava e a exploração do Ártico pela China é um grande sinal
do processo.
***
Depois deste
excursus geopolítico, será oportuno
ver o que se passa com a ciência, que espevita a política, mas que pode ser por
ela condicionada.
O
International Arctic Science Committee (IASC) é uma organização científica
internacional não-governamental. Os Artigos Fundadores comprometeram o IASC na missão de encorajar e de facilitar
a cooperação em todos os aspetos da pesquisa do Ártico, em todos os países
envolvidos na pesquisa do Ártico e de todas as áreas da região do Ártico. No
geral, o IASC promove e apoia pesquisas interdisciplinares de ponta, para
promover maior compreensão científica da região e o seu papel na Terra. E, em vez de definir limites humanos e ambientais, tenta transpô-los.
O IASC está
comprometido em reconhecer que o conhecimento tradicional, o conhecimento indígena
e o conhecimento científico “ocidental” são sistemas de conhecimento coiguais e
complementares, podendo e devendo, por isso, enformar o trabalho do IASC.
Para atingir
a missão, o IASC: inicia, coordena e promove atividades científicas a
nível circum-ártico ou internacional;
fornece mecanismos e instrumentos de
apoio ao desenvolvimento científico;
fornece aconselhamento científico
objetivo e independente, sobre questões científicas no Ártico, e comunica
informações científicas ao público;
procura garantir que sejam salvaguardados,
livremente intercambiáveis e acessíveis dados e informações científicas do
Ártico; promove o acesso internacional a todas as áreas geográficas
e o compartilhamento de conhecimento, de logística e de outros recursos; provê à liberdade e à conduta ética da ciência; promove e envolve a próxima geração de cientistas a trabalhar no Ártico; e promove a cooperação polar, por meio da interação com organizações
científicas relevantes.
O
IASC foi fundado, em 1990, por representantes de organizações científicas
nacionais dos oito países do Ártico: o Canadá, a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia,
a Noruega, a Rússia (naquela época União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas), a Suécia e os EUA, que formam o Conselho do Ártico. Os Artigos
Fundadores do IASC foram assinados em Resolute Bay, no Canadá.
Ao
longo dos anos, o IASC evoluiu para a principal organização científica
internacional do Norte e os seus membros incluem, hoje, 24 países envolvidos em
todos os aspetos da pesquisa do Ártico, nomeadamente, 16 países não árticos (a Áustria,
a Bélgica, a China, a Chéquia, a França, a Alemanha, a Índia, a Itália, o Japão,
a Holanda, a Polónia, Portugal, a Coreia do Sul, a Espanha, a Suíça e o Reino
Unido).
No
contexto do 25.º aniversário, em 2015, o IASC publicou um histórico abrangente
abrangendo as primeiras reuniões de planeamento, no final da década de 1980: Rogne,
O., Rachold, V., Hacquebord, L., Corell, R. (2015) “IASC após 25 anos – Um
quarto de século de cooperação internacional em pesquisa no Ártico. Comité
Internacional de Ciência do Ártico”, 125 páginas.
O
IASC realiza as suas principais atividades, através de cinco grupos de
trabalho, organizados com base em diferentes temas: Terrestre, Criosfera,
Marinho, Humano e Social e Atmosfera. Além disso, dá apoio especial a projetos
que promovam a colaboração entre os grupos de trabalho.
O
seu escritório fica instalado no Centro de Investigação da Islândia (Rannis),
em Borgur, um edifício de investigação e inovação nas dependências da
Universidade de Akureyri, onde existem algumas organizações especializadas em
investigação, em monitorização e em divulgação de informações sobre questões
árticas, constituindo uma forte comunidade ártica sob o mesmo teto, que pode
criar várias formas de sinergia com o escritório do IASC.
As
atividades do escritório do IASC na Islândia (o coração do Ártico) podem
trazer, entre outros, os seguintes benefícios: dar à comunidade científica
islandesa acesso à rede mais poderosa de cientistas da região nórdica, aumentando
as possibilidades de os cientistas islandeses trabalharem com colegas
estrangeiros, no âmbito de conferências e de projetos de investigação; aumentar
o interesse de cientistas de outras nações na cooperação científica com a
Islândia; fortalecer as atividades do Ártico, em Akureyri; e facilitar o
estabelecimento de mais centros de pesquisa internacionais no país.
***
Enfim,
uma região que, pela abundância e pela diversidade dos seus recursos, deveria
constituir uma poderosa mais-valia para a riqueza do Mundo, a distribuir equitativamente,
e para o progresso do conhecimento, está prestes a transformar-se em palco de
disputa dos grandes, ficando à mercê de quem disponha de meios mais abundantes
e poderosos e podendo gerar guerras, bem como novos ataques à Natureza.
2025.03.29 – Louro de Carvalho
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