Muitas vezes, na vida, o caminho é incerto. Ao longo
do percurso, recebemos um basto rol de indicações, de sugestões, de orientações,
de propostas. E a questão que se levanta é como discernir as indicações boas
das más, as que dão pistas certas das que nos lançam por becos sem saída, bem
como se todos os que se apresentam como guias são dignos de confiança. Ora, a liturgia
do VIII domingo do Tempo Comum, no Ano C, convida-nos a refletir sobre isto.
***
A primeira
leitura (Sir 27,4-7) oferece-nos
um conselho sábio e prático: não julgar as pessoas pela primeira impressão,
pela sua apresentação ou pelas atitudes mais ou menos exuberantes que exibem. É
preciso deixá-las falar e escutar o que dizem, pois as palavras revelam, no
devido tempo, a verdade ou a mentira que há em cada coração.
O “Livro de Ben Sirah” (na versão grega, “Eclesiástico”)
é um livro de caráter sapiencial que tem por objetivo deixar aos aspirantes a
“sábios” indicações práticas sobre a arte de bem viver e de ser feliz. O autor
material terá sido Jesus Ben Sirah, sábio israelita que viveu na primeira
metade do século II a.C., época conturbada para o Povo de Deus.
Quando Alexandre da Macedónia morreu, em 323 a.C., o
seu império foi dividido por duas famílias: os Ptolomeus e os Selêucidas. A Palestina
ficou nas mãos dos Ptolomeus e o Povo de Deus pôde viver na fidelidade à fé e
aos valores ancestrais. Contudo, em 198 a.C., após a batalha de Pânias, a
Palestina passou para o domínio dos Selêucidas (descendentes de Seleuco
Nicanor, general de Alexandre), que procuraram impor, por vezes pela força, a
cultura helénica. Nesse contexto, muitos judeus, seduzidos pelo brilho da cultura
grega, abandonando os valores e a fé dos pais, assumiam comportamentos mais
consentâneos com a modernidade e com a pressão das autoridades selêucidas. Ben
Sirah, judeu apegado às tradições dos antepassados, desenvolveu uma reflexão
que ajudasse os concidadãos a manterem-se fiéis aos seus valores. E, apresenta,
no livro, uma síntese da religião tradicional e da sabedoria de Israel, a mostrar
que é no respeito pela sua fé, pelos seus valores, pela sua identidade que os
judeus podem descobrir o caminho seguro para serem um Povo livre e feliz.
O trecho em apreço questiona se é possível conhecer o
coração dos homens, se deverá confiar-se nos comerciantes, expostos a todo o
tipo de tentações e capazes de, por amor ao dinheiro, recorrer a todo o tipo de
falcatruas, bem como se o pecado não rondará o processo de compra e venda.
Ben Sirah recorre a três imagens para prevenir o
candidato a sábio de que tem de lidar com comerciantes pouco escrupulosos. A
primeira é a do crivo. As mulheres palestinianas usavam o crivo para separar os
grãos das palhas e das folhas; ora, como o crivo expõe os lixos, assim o ato de
falar expõe os defeitos dos homens. A segunda imagem é a do forno. O forno, com
as altas temperaturas, põe à prova a qualidade das vasilhas de barro colocadas nele;
ora, como as altas temperaturas do forno mostram a resistência ou a fragilidade
dos vasos de barro, também as palavras do homem manifestam a qualidade dos seus
pensamentos. E a terceira imagem é a da árvore. A árvore boa produz bons frutos
e a árvore má produze frutos que não prestam; ora, como o fruto revela o ser da
árvore, também as coisas que o homem diz revelam o que lhe vai no coração. O homem
pode fingir, enganar, disfarçar, encenar determinados tipos de comportamento,
mas a palavra revela-o e põe a nu os seus sentimentos mais profundos. Por isso,
a recomendação é: “Não elogies ninguém antes de ele falar, porque é assim que
se experimentam os homens.”
Assim, não devemos deixar-nos condicionar pela
primeira impressão ou por gestos teatrais que nada significam, mas tirar
conclusões, depois de as pessoas falarem, pois só a boca falante exprime a
abundância do coração.
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No Evangelho
(Lc
6,39-45), Jesus põe
os discípulos de sobreaviso contra os guias cegos, arrogantes e prepotentes,
sedentos de protagonismo, cujo interesse está nos seus projetos pessoais e não
no bem dos irmãos. Os caminhos que indicam não levam à vida. Os discípulos
podem detetar os falsos mestres pelas ações e pelas palavras, que revelam os inconfessáveis
interesses que escondem no coração. Se as propostas que apresentam não estão em
linha com as de Jesus, esses guias não devem ser escutados.
O trecho em referência pertence à secção final do
“sermão da planície” (Lc 6,39-49).
Lucas terá reunido um conjunto de “sentenças” ou “ditos” de Jesus que,
originalmente, tinham um contexto diverso e foram pronunciados em alturas
diversas.
Por trás do enquadramento destas “sentenças” e
“ditos”, estará a situação das comunidades cristãs às quais o terceiro
Evangelho se destinava. Em meados dos anos 80 do primeiro século, tais
comunidades estavam a ser inquietadas por falsos mestres, com sede de
protagonismo, que apresentavam uma catequese que não quadrava com os
ensinamentos de Jesus. E Lucas sente o dever de as advertir para o perigo de se
deixarem seduzir pelas falsas doutrinas que tais mestres propunham. Acolher as
propostas que eles traziam não levava a lugar nenhum.
A perícopa tem, claramente, duas partes. Na primeira (vv 39-42), o discurso de Jesus
constrói-se sobre uma série de perguntas que levam os ouvintes a avaliar e a
dar uma resposta própria aos alertas que Jesus lhes deixa; na segunda (vv 43-45), Jesus apresenta os critérios
para discernir os que, dentro e fora da comunidade cristã, são bons mestres ou
falsos mestres.
As duas primeiras perguntas (“Poderá um cego guiar
outro cego? Não cairão os dois nalguma cova?”) também aparecem em Mateus. Aí,
referem-se aos fariseus e aos doutores da lei, que pretendem ser líderes do
Povo de Deus, mas ensinam uma religião legalista, feita de gestos rituais
vazios e estéreis, que não aproxima de Deus nem torna o homem livre. Contudo,
em Lucas, estas perguntas referem-se à ação de mestres cristãos arrogantes e
cheios de si que, com doutrinas pessoais, afastam os crentes da verdade do
Evangelho. Os discípulos de Jesus que dão ouvidos a esses mestres arriscam-se a
perder Jesus de vista e a desviarem-se do caminho que leva à vida eterna.
Quando alguém apresenta as suas teorias ou a sua própria doutrina e não a
doutrina de Jesus, está a conduzir os irmãos por vias sem saída. Em vez de os conduzir
ao encontro da luz, condena-os a viver na escuridão. É necessário que os
discípulos não esqueçam que o único mestre que devem seguir, sem condições, com
total disponibilidade, é Jesus. As propostas, sugestões e indicações de outros
mestres só devem ser aceites, se estiverem em consonância com o Evangelho de
Jesus.
As duas perguntas seguintes (“Porque vês o argueiro
que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua? Como podes
dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’, se tu
não vês a trave que está na tua?”), embora abordem um tema diferente, devem
referir-se também à ação desses falsos mestres, orgulhosos e autossuficientes,
que se apresentam como donos da comunidade e referência para os irmãos. É gente
cheia de certeza e de segurança, que nunca se engana e raramente tem dúvidas,
que impõe aos outros as suas convicções, que passa a vida a avaliar o
comportamento dos outros, a julgá-los e a condená-los. Sentem-se iluminados são
autoritários, intransigentes, intolerantes; não conhecem o amor, a bondade, a
misericórdia, a compreensão. São incapazes de aplicar a si a exigência que
aplicam aos outros. Têm telhados de vidro, mas não veem os seus erros, por
muito graves que sejam; só veem as falhas dos outros.
No entendimento de Jesus, os que assim agem são “hipócritas”.
O termo não designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem
ao seu pensamento e às suas palavras, mas também equivale ao termo aramaico
“hanefa” que, no Antigo Testamento, significa “perverso”, “ímpio”. Ora, na
comunidade de Jesus não há lugar para esses juízes, intolerantes e
intransigentes, sempre à procura da mais pequena falha dos outros para os condenarem,
mas não preocupados com os erros e as falhas – às vezes bem mais graves – que
eles próprios cometem. Na ótica de Jesus, quem não está em permanente atitude
de conversão e de transformação de si não tem qualquer autoridade para criticar
os irmãos.
Na segunda parte, Jesus apresenta os critérios de discernimento
entre os que, dentro e fora da comunidade cristã, são bons mestres e os que são
falsos mestres. Jesus recorre a dois pequenos segmentos parabólicos para
clarificar o seu pensamento: o primeiro é o das árvores boas, que dão bons
frutos, e das árvores más, que dão maus frutos; o segundo é o do coração do
homem, de onde saem bons ou maus sentimentos, bons ou maus pensamentos, bons ou
maus gestos, boas ou más palavras. Assim, os bons frutos ligam-se com a
verdadeira proposta de Jesus: dá bons frutos quem tem o coração cheio da
mensagem de Jesus e a testemunha, fielmente, com palavras e com gestos, gerando
união, fraternidade, partilha, amor, reconciliação, vida nova. Porém, se as
palavras ou os gestos de um mestre geram divisão, tensão, desorientação,
confrontação na comunidade, feridas que causam sofrimento, revelam um coração
cheio de egoísmo, de orgulho, de arrogância, de autossuficiência. Cuidado com
esses mestres, que não são verdadeiros!
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A segunda
leitura (1Cor 15, 54-58) conclui uma catequese de Paulo sobre a
ressurreição dos mortos. É temática diferente da que aparece nas outras duas
leituras. No entanto, a ressurreição é a vida plena, a meta final do caminho
dos que se deixam guiar por Jesus e que vivem de acordo com o seu Evangelho. É
a razão primeira e última da fé, a raiz da esperança.
O diálogo do cristianismo com as diversas realidades culturais
que marcam a vida e a História dos povos sempre apresentou desafios
consideráveis. A primeira Carta de Paulo à comunidade cristã de Corinto será o
escrito do Novo Testamento que melhor espelha essa problemática. Uma das
propostas cristãs que embateu na resistência entre os cristãos de Corinto foi a
questão da ressurreição dos mortos. Influenciados por filosofias dualistas –
entre as quais avultava a filosofia platónica – muitos Coríntios viam, no corpo,
a realidade negativa e, na alma, a realidade ideal e nobre. Admitiam que a
alma, liberta do corpo, ascenderia ao mundo luminoso das ideias, mas tinham
dificuldade em admitir que o corpo, realidade material, carnal e sensual,
pudesse seguir a alma na sua ascensão ao mundo de Deus.
Paulo tratou esta questão em 1Cor 15. O trecho, agora, em apreço é a parte final da reflexão de
paulina sobre o tema. O apóstolo reitera o que já explicitara: a morte perdeu o
domínio sobre o homem, pois estamos destinados à ressurreição. Cristo, o novo
Adão, vivificou-nos.
Paulo evita falar da forma como acontecerá a
ressurreição, mas garante que acontecerá. Evitando as imagens fantasiosas que
sobre esta temática circulavam nos ambientes judaicos, afirma, com sobriedade,
que, “num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final,
seremos transformados”, o nosso ser corruptível transformar-se-á em ser
incorruptível e começará a época definitiva do homem, o tempo da vida que não
acaba. Isso está acima de toda a dúvida.
A ressurreição é tão decisiva para o ser humano, que
Paulo não pode deixar de a festejar com um grito de júbilo. Fá-lo recorrendo a
textos de Isaías e de Oseias, a partir dos quais compõe um breve hino que
celebra a vitória de Cristo e dos cristãos sobre a morte: “A morte foi
absorvida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Ó morte, onde está o
teu aguilhão?”. O pecado, a escravidão, o egoísmo, a violência, o ódio, aliados
da morte, foram derrotados e não terão, doravante, qualquer poder sobre o
homem: a ressurreição de Cristo libertou todos os crentes do medo da morte,
pois demonstrou que não há morte para quem luta por um Mundo de justiça, de
amor e de paz. Esse cântico de triunfo leva como acompanhamento obrigatório uma
ação de graças a Deus, pois é Ele, o Senhor da vida, “que nos dá a vitória por
Nosso Senhor Jesus Cristo”.
A palavra final é o convite aos Coríntios – e aos
crentes de todas as épocas – a permanecerem “firmes e inabaláveis, cada vez
mais diligentes na obra do Senhor”, um convite a não projetarmos a ressurreição
só no futuro, mas a trabalharmos, cada dia, para que ela (como libertação do
pecado, do egoísmo, da exploração e da morte) se torne realidade viva na nossa
existência. Isto exige que não cruzemos os braços na passividade que aliena,
mas que nos empenhemos na transformação que traz vida nova ao homem e ao Mundo.
***
Disse o
Papa, internado no Hospital Agostino Gemelli:
“No
Evangelho deste domingo, Jesus faz-nos refletir sobre dois dos cinco sentidos:
a vista e o paladar. Relativamente à vista,
pede-nos que treinemos os olhos para observarmos bem o Mundo e julgarmos o próximo
com caridade: ‘Tira, primeiro, a trave do teu olho, e então verás bem para
tirares o argueiro do olho do teu irmão.’ Só com este olhar de cuidado, e não
de condenação, a correção fraterna pode ser uma virtude, pois, se não for
fraterna, não é uma correção!
“Relativamente
ao paladar, Jesus recorda-nos que ‘cada árvore se conhece pelo seu
fruto’ e que os frutos que provêm do homem são, por exemplo, as suas palavras,
que amadurecem nos seus lábios, de modo que ‘a sua boca exprima o que
transborda do seu coração’. Os maus frutos são as palavras violentas, falsas,
vulgares; os bons são as palavras justas e honestas que dão sabor aos nossos
diálogos. Então podemos perguntar-nos: Como olho para os outros, que são meus
irmãos e irmãs? E de que modo me sinto olhado por eles? As minhas palavras têm
bom sabor ou estão impregnadas de amargura e de vaidade?
“Volto a
enviar-vos estas reflexões do hospital, onde, como sabeis, me encontro, há
vários dias, acompanhado pelos médicos e agentes de saúde, a quem agradeço a
atenção com que cuidam de mim. Sinto no meu coração a ‘bênção’ que se esconde
na fragilidade, porque é, precisamente, nestes momentos que aprendemos, ainda
mais, a confiar no Senhor; ao mesmo tempo, agradeço a Deus por me ter dado a
oportunidade de partilhar em corpo e espírito a condição de tantas pessoas
doentes e sofredoras.
“Agradeço-vos
pelas orações que se elevam ao Senhor do coração de tantos fiéis de muitas partes
do Mundo: sinto todo o vosso afeto e proximidade e, neste momento particular,
sinto-me como que ‘levado’ e apoiado por todo o Povo de Deus. Obrigado a todos
vós! Também eu rezo por vós. E rezo, sobretudo, pela paz. Daqui, a guerra
parece ainda mais absurda. Rezemos pela martirizada Ucrânia, pela Palestina, por
Israel, pelo Líbano, por Myanmar, pelo Sudão, por Kivu.
“Recomendemo-nos
com confiança a Maria, nossa Mãe. Bom domingo e adeus.”
***
A tudo isto só resta dizer: “Assim seja!”
2025.03.02 – Louro de Carvalho
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