segunda-feira, 3 de março de 2025

Discernir indicações boas de más e guias confiáveis de não confiáveis

 

Muitas vezes, na vida, o caminho é incerto. Ao longo do percurso, recebemos um basto rol de indicações, de sugestões, de orientações, de propostas. E a questão que se levanta é como discernir as indicações boas das más, as que dão pistas certas das que nos lançam por becos sem saída, bem como se todos os que se apresentam como guias são dignos de confiança. Ora, a liturgia do VIII domingo do Tempo Comum, no Ano C, convida-nos a refletir sobre isto.

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primeira leitura (Sir 27,4-7) oferece-nos um conselho sábio e prático: não julgar as pessoas pela primeira impressão, pela sua apresentação ou pelas atitudes mais ou menos exuberantes que exibem. É preciso deixá-las falar e escutar o que dizem, pois as palavras revelam, no devido tempo, a verdade ou a mentira que há em cada coração.

 O “Livro de Ben Sirah” (na versão grega, “Eclesiástico”) é um livro de caráter sapiencial que tem por objetivo deixar aos aspirantes a “sábios” indicações práticas sobre a arte de bem viver e de ser feliz. O autor material terá sido Jesus Ben Sirah, sábio israelita que viveu na primeira metade do século II a.C., época conturbada para o Povo de Deus.

Quando Alexandre da Macedónia morreu, em 323 a.C., o seu império foi dividido por duas famílias: os Ptolomeus e os Selêucidas. A Palestina ficou nas mãos dos Ptolomeus e o Povo de Deus pôde viver na fidelidade à fé e aos valores ancestrais. Contudo, em 198 a.C., após a batalha de Pânias, a Palestina passou para o domínio dos Selêucidas (descendentes de Seleuco Nicanor, general de Alexandre), que procuraram impor, por vezes pela força, a cultura helénica. Nesse contexto, muitos judeus, seduzidos pelo brilho da cultura grega, abandonando os valores e a fé dos pais, assumiam comportamentos mais consentâneos com a modernidade e com a pressão das autoridades selêucidas. Ben Sirah, judeu apegado às tradições dos antepassados, desenvolveu uma reflexão que ajudasse os concidadãos a manterem-se fiéis aos seus valores. E, apresenta, no livro, uma síntese da religião tradicional e da sabedoria de Israel, a mostrar que é no respeito pela sua fé, pelos seus valores, pela sua identidade que os judeus podem descobrir o caminho seguro para serem um Povo livre e feliz.

O trecho em apreço questiona se é possível conhecer o coração dos homens, se deverá confiar-se nos comerciantes, expostos a todo o tipo de tentações e capazes de, por amor ao dinheiro, recorrer a todo o tipo de falcatruas, bem como se o pecado não rondará o processo de compra e venda.

Ben Sirah recorre a três imagens para prevenir o candidato a sábio de que tem de lidar com comerciantes pouco escrupulosos. A primeira é a do crivo. As mulheres palestinianas usavam o crivo para separar os grãos das palhas e das folhas; ora, como o crivo expõe os lixos, assim o ato de falar expõe os defeitos dos homens. A segunda imagem é a do forno. O forno, com as altas temperaturas, põe à prova a qualidade das vasilhas de barro colocadas nele; ora, como as altas temperaturas do forno mostram a resistência ou a fragilidade dos vasos de barro, também as palavras do homem manifestam a qualidade dos seus pensamentos. E a terceira imagem é a da árvore. A árvore boa produz bons frutos e a árvore má produze frutos que não prestam; ora, como o fruto revela o ser da árvore, também as coisas que o homem diz revelam o que lhe vai no coração. O homem pode fingir, enganar, disfarçar, encenar determinados tipos de comportamento, mas a palavra revela-o e põe a nu os seus sentimentos mais profundos. Por isso, a recomendação é: “Não elogies ninguém antes de ele falar, porque é assim que se experimentam os homens.”

Assim, não devemos deixar-nos condicionar pela primeira impressão ou por gestos teatrais que nada significam, mas tirar conclusões, depois de as pessoas falarem, pois só a boca falante exprime a abundância do coração.

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No Evangelho (Lc 6,39-45), Jesus põe os discípulos de sobreaviso contra os guias cegos, arrogantes e prepotentes, sedentos de protagonismo, cujo interesse está nos seus projetos pessoais e não no bem dos irmãos. Os caminhos que indicam não levam à vida. Os discípulos podem detetar os falsos mestres pelas ações e pelas palavras, que revelam os inconfessáveis interesses que escondem no coração. Se as propostas que apresentam não estão em linha com as de Jesus, esses guias não devem ser escutados.

O trecho em referência pertence à secção final do “sermão da planície” (Lc 6,39-49). Lucas terá reunido um conjunto de “sentenças” ou “ditos” de Jesus que, originalmente, tinham um contexto diverso e foram pronunciados em alturas diversas.

Por trás do enquadramento destas “sentenças” e “ditos”, estará a situação das comunidades cristãs às quais o terceiro Evangelho se destinava. Em meados dos anos 80 do primeiro século, tais comunidades estavam a ser inquietadas por falsos mestres, com sede de protagonismo, que apresentavam uma catequese que não quadrava com os ensinamentos de Jesus. E Lucas sente o dever de as advertir para o perigo de se deixarem seduzir pelas falsas doutrinas que tais mestres propunham. Acolher as propostas que eles traziam não levava a lugar nenhum.

A perícopa tem, claramente, duas partes. Na primeira (vv 39-42), o discurso de Jesus constrói-se sobre uma série de perguntas que levam os ouvintes a avaliar e a dar uma resposta própria aos alertas que Jesus lhes deixa; na segunda (vv 43-45), Jesus apresenta os critérios para discernir os que, dentro e fora da comunidade cristã, são bons mestres ou falsos mestres.

As duas primeiras perguntas (“Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova?”) também aparecem em Mateus. Aí, referem-se aos fariseus e aos doutores da lei, que pretendem ser líderes do Povo de Deus, mas ensinam uma religião legalista, feita de gestos rituais vazios e estéreis, que não aproxima de Deus nem torna o homem livre. Contudo, em Lucas, estas perguntas referem-se à ação de mestres cristãos arrogantes e cheios de si que, com doutrinas pessoais, afastam os crentes da verdade do Evangelho. Os discípulos de Jesus que dão ouvidos a esses mestres arriscam-se a perder Jesus de vista e a desviarem-se do caminho que leva à vida eterna. Quando alguém apresenta as suas teorias ou a sua própria doutrina e não a doutrina de Jesus, está a conduzir os irmãos por vias sem saída. Em vez de os conduzir ao encontro da luz, condena-os a viver na escuridão. É necessário que os discípulos não esqueçam que o único mestre que devem seguir, sem condições, com total disponibilidade, é Jesus. As propostas, sugestões e indicações de outros mestres só devem ser aceites, se estiverem em consonância com o Evangelho de Jesus.

As duas perguntas seguintes (“Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’, se tu não vês a trave que está na tua?”), embora abordem um tema diferente, devem referir-se também à ação desses falsos mestres, orgulhosos e autossuficientes, que se apresentam como donos da comunidade e referência para os irmãos. É gente cheia de certeza e de segurança, que nunca se engana e raramente tem dúvidas, que impõe aos outros as suas convicções, que passa a vida a avaliar o comportamento dos outros, a julgá-los e a condená-los. Sentem-se iluminados são autoritários, intransigentes, intolerantes; não conhecem o amor, a bondade, a misericórdia, a compreensão. São incapazes de aplicar a si a exigência que aplicam aos outros. Têm telhados de vidro, mas não veem os seus erros, por muito graves que sejam; só veem as falhas dos outros.

No entendimento de Jesus, os que assim agem são “hipócritas”. O termo não designa só o homem dissimulado, falso, cujos atos não correspondem ao seu pensamento e às suas palavras, mas também equivale ao termo aramaico “hanefa” que, no Antigo Testamento, significa “perverso”, “ímpio”. Ora, na comunidade de Jesus não há lugar para esses juízes, intolerantes e intransigentes, sempre à procura da mais pequena falha dos outros para os condenarem, mas não preocupados com os erros e as falhas – às vezes bem mais graves – que eles próprios cometem. Na ótica de Jesus, quem não está em permanente atitude de conversão e de transformação de si não tem qualquer autoridade para criticar os irmãos.

Na segunda parte, Jesus apresenta os critérios de discernimento entre os que, dentro e fora da comunidade cristã, são bons mestres e os que são falsos mestres. Jesus recorre a dois pequenos segmentos parabólicos para clarificar o seu pensamento: o primeiro é o das árvores boas, que dão bons frutos, e das árvores más, que dão maus frutos; o segundo é o do coração do homem, de onde saem bons ou maus sentimentos, bons ou maus pensamentos, bons ou maus gestos, boas ou más palavras. Assim, os bons frutos ligam-se com a verdadeira proposta de Jesus: dá bons frutos quem tem o coração cheio da mensagem de Jesus e a testemunha, fielmente, com palavras e com gestos, gerando união, fraternidade, partilha, amor, reconciliação, vida nova. Porém, se as palavras ou os gestos de um mestre geram divisão, tensão, desorientação, confrontação na comunidade, feridas que causam sofrimento, revelam um coração cheio de egoísmo, de orgulho, de arrogância, de autossuficiência. Cuidado com esses mestres, que não são verdadeiros!

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segunda leitura (1Cor 15, 54-58) conclui uma catequese de Paulo sobre a ressurreição dos mortos. É temática diferente da que aparece nas outras duas leituras. No entanto, a ressurreição é a vida plena, a meta final do caminho dos que se deixam guiar por Jesus e que vivem de acordo com o seu Evangelho. É a razão primeira e última da fé, a raiz da esperança.

O diálogo do cristianismo com as diversas realidades culturais que marcam a vida e a História dos povos sempre apresentou desafios consideráveis. A primeira Carta de Paulo à comunidade cristã de Corinto será o escrito do Novo Testamento que melhor espelha essa problemática. Uma das propostas cristãs que embateu na resistência entre os cristãos de Corinto foi a questão da ressurreição dos mortos. Influenciados por filosofias dualistas – entre as quais avultava a filosofia platónica – muitos Coríntios viam, no corpo, a realidade negativa e, na alma, a realidade ideal e nobre. Admitiam que a alma, liberta do corpo, ascenderia ao mundo luminoso das ideias, mas tinham dificuldade em admitir que o corpo, realidade material, carnal e sensual, pudesse seguir a alma na sua ascensão ao mundo de Deus.

Paulo tratou esta questão em 1Cor 15. O trecho, agora, em apreço é a parte final da reflexão de paulina sobre o tema. O apóstolo reitera o que já explicitara: a morte perdeu o domínio sobre o homem, pois estamos destinados à ressurreição. Cristo, o novo Adão, vivificou-nos.

Paulo evita falar da forma como acontecerá a ressurreição, mas garante que acontecerá. Evitando as imagens fantasiosas que sobre esta temática circulavam nos ambientes judaicos, afirma, com sobriedade, que, “num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final, seremos transformados”, o nosso ser corruptível transformar-se-á em ser incorruptível e começará a época definitiva do homem, o tempo da vida que não acaba. Isso está acima de toda a dúvida.

A ressurreição é tão decisiva para o ser humano, que Paulo não pode deixar de a festejar com um grito de júbilo. Fá-lo recorrendo a textos de Isaías e de Oseias, a partir dos quais compõe um breve hino que celebra a vitória de Cristo e dos cristãos sobre a morte: “A morte foi absorvida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Ó morte, onde está o teu aguilhão?”. O pecado, a escravidão, o egoísmo, a violência, o ódio, aliados da morte, foram derrotados e não terão, doravante, qualquer poder sobre o homem: a ressurreição de Cristo libertou todos os crentes do medo da morte, pois demonstrou que não há morte para quem luta por um Mundo de justiça, de amor e de paz. Esse cântico de triunfo leva como acompanhamento obrigatório uma ação de graças a Deus, pois é Ele, o Senhor da vida, “que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo”.

A palavra final é o convite aos Coríntios – e aos crentes de todas as épocas – a permanecerem “firmes e inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor”, um convite a não projetarmos a ressurreição só no futuro, mas a trabalharmos, cada dia, para que ela (como libertação do pecado, do egoísmo, da exploração e da morte) se torne realidade viva na nossa existência. Isto exige que não cruzemos os braços na passividade que aliena, mas que nos empenhemos na transformação que traz vida nova ao homem e ao Mundo. 

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Disse o Papa, internado no Hospital Agostino Gemelli:

“No Evangelho deste domingo, Jesus faz-nos refletir sobre dois dos cinco sentidos: a vista e o paladar. Relativamente à vista, pede-nos que treinemos os olhos para observarmos bem o Mundo e julgarmos o próximo com caridade: ‘Tira, primeiro, a trave do teu olho, e então verás bem para tirares o argueiro do olho do teu irmão.’ Só com este olhar de cuidado, e não de condenação, a correção fraterna pode ser uma virtude, pois, se não for fraterna, não é uma correção!

“Relativamente ao paladar, Jesus recorda-nos que ‘cada árvore se conhece pelo seu fruto’ e que os frutos que provêm do homem são, por exemplo, as suas palavras, que amadurecem nos seus lábios, de modo que ‘a sua boca exprima o que transborda do seu coração’. Os maus frutos são as palavras violentas, falsas, vulgares; os bons são as palavras justas e honestas que dão sabor aos nossos diálogos. Então podemos perguntar-nos: Como olho para os outros, que são meus irmãos e irmãs? E de que modo me sinto olhado por eles? As minhas palavras têm bom sabor ou estão impregnadas de amargura e de vaidade?

“Volto a enviar-vos estas reflexões do hospital, onde, como sabeis, me encontro, há vários dias, acompanhado pelos médicos e agentes de saúde, a quem agradeço a atenção com que cuidam de mim. Sinto no meu coração a ‘bênção’ que se esconde na fragilidade, porque é, precisamente, nestes momentos que aprendemos, ainda mais, a confiar no Senhor; ao mesmo tempo, agradeço a Deus por me ter dado a oportunidade de partilhar em corpo e espírito a condição de tantas pessoas doentes e sofredoras.

“Agradeço-vos pelas orações que se elevam ao Senhor do coração de tantos fiéis de muitas partes do Mundo: sinto todo o vosso afeto e proximidade e, neste momento particular, sinto-me como que ‘levado’ e apoiado por todo o Povo de Deus. Obrigado a todos vós! Também eu rezo por vós. E rezo, sobretudo, pela paz. Daqui, a guerra parece ainda mais absurda. Rezemos pela martirizada Ucrânia, pela Palestina, por Israel, pelo Líbano, por Myanmar, pelo Sudão, por Kivu.

“Recomendemo-nos com confiança a Maria, nossa Mãe. Bom domingo e adeus.”

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A tudo isto só resta dizer: “Assim seja!”

2025.03.02 – Louro de Carvalho

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