O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, anunciou, a 28 de março, a receção oficial – através de uma nota – da nova proposta de acordo sobre as reservas de minerais, de petróleo e de gás da Ucrânia, por parte de Washington, e afirmou tratar-se “de um documento completamente diferente”, que ainda terá de ser analisado.
Sem revelar pormenores, Zelensky garantiu que o documento de 55 páginas, “completamente diferente” da proposta anterior, inclui “muitas coisas que não tinham sido debatidas e algumas que já haviam sido rejeitadas pelas partes”, advertindo que é demasiado cedo para falar sobre a proposta, que terá de ser avaliada pelos advogados ucranianos. E repetiu que Kiev não aceitará que a ajuda militar fornecida pelos Estados Unidos da América (EUA), para ajudar a Ucrânia a combater a invasão russa, seja empréstimo a ressarcir, através dos direitos de exploração de minérios ucranianos, como pretende Donald Trump.
No dia 27, em Paris, onde se reuniu – no âmbito da “Coligação dos Interessados” – com o homólogo francês, Emmanuel Macron, e com os líderes de dezenas de países para abordar novos apoios à Ucrânia, o líder deste país disse aos jornalistas que a proposta norte-americana exige “estudo detalhado”, sugerindo que está longe um acordo final. Porém, declarou não querer “deixar os EUA com a sensação de que a Ucrânia está contra eles, em geral”. “Apoiamos a cooperação com os EUA. […] Não queremos enviar quaisquer sinais que possam levar os EUA a interromper a ajuda à Ucrânia”, afirmou o presidente ucraniano.
Apesar de os detalhes da nova proposta não terem sido divulgados pelo governo de Kiev, a reação por parte de deputados e de órgãos de comunicação social ucranianos foi de repúdio total. Após notícias de que a Administração Trump teria feito tábua rasa de todas as negociações, voltando à proposta inicial, rejeitada pela Ucrânia, uns e outros consideraram o documento “inaceitável”.
De acordo com o jornal Ukrainska Pravda, a equipa dos EUA abandonou todas as soluções de compromisso acordadas, há um mês, e o novo documento “cruza quase todas as linhas vermelhas” da Ucrânia, que a “priva de parte da sua soberania” e obriga a “reembolsar toda a ajuda americana que recebeu”, com juros, assim como não menciona qualquer garantia de segurança para a Ucrânia, como insiste Kiev.
Contudo, agora, a proposta é “mais específica sobre a forma como os lucros seriam partilhados”. Washington reclamaria todos os lucros do fundo, até a Ucrânia reembolsar, pelo menos, o equivalente à ajuda dos EUA, durante a guerra, mais 4% de juros anuais.
A administração de Donald Trump vem preparando, há várias semanas, este acordo, tendo-se mostrado, há uma semana, Donald Trump confiante de que o documento será assinado em breve.
Kiev chegou a mostrar prontidão para o subscrever e Volodymyr Zelensky até se deslocou a Washington, no final de fevereiro, para o concluir, mas a iniciativa falhou, após altercação, na Sala Oval da Casa Branca, do presidente ucraniano com presidente norte-americano e com o vice-presidente dos EUA, James David Vance, a acicatar a discussão – um espetáculo a que o Mundo inteiro pôde assistir em direto pelas televisões.
O NYT baseia a notícia da proposta de acordo no testemunho de três atuais e antigos funcionários ucranianos que analisaram o projeto, alguns dos quais falaram sob anonimato, por se referirem a negociações sensíveis. De acordo com tais fontes, a proposta retorna à exigência inicial do presidente Trump, de que a Ucrânia devolva aos EUA “os milhares de milhões que Kiev recebeu em ajuda militar e financeira, desde a invasão em grande escala da Rússia, há três anos”.
De acordo com o NYT, o projecto faz eco de versões anteriores, ao omitir “qualquer menção a garantias de segurança para a Ucrânia”, uma disposição que Kiev, há muito, pressionava e que conseguiu incluir no projeto, no mês de fevereiro, mas que Washington reenfiou na gaveta.
Os EUA manteriam o direito de primeira oferta em novos projetos e o poder de vetar a venda de recursos ucranianos a países terceiros; e, no primeiro ano de vigência do acordo, a Ucrânia seria proibida de oferecer quaisquer projetos de investimento a países terceiros, com melhores termos financeiros ou económicos do que os oferecidos aos EUA. A Corporação Financeira Internacional para o Desenvolvimento, agência do governo norte-americano para o investimento em empresas e em projetos no exterior, controlaria o referido fundo, nomeando três membros do conselho de administração, contra os dois da Ucrânia, e supervisionaria cada projeto em que os ganhos do fundo são investidos – uma proposta que “transforma, efetivamente, a Ucrânia numa colónia americana”, como escreveu, no X, Roman Sheremeta, economista ucraniano e reitor fundador da Universidade Americana em Kiev.
A quantidade de riqueza mineral contida no solo ucraniano permanece pouco clara, sendo a maior parte destes recursos inexplorados, difíceis de extrair ou, de facto, sob controlo russo, porque estão em territórios ocupados. Porém, o presidente russo, Vladimir Putin, já admitiu ser favorável aos investimentos americanos nas regiões ucranianas conquistadas pela Rússia.
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Ao conceder
às empresas norte-americanas tratamento preferencial na Ucrânia, o acordo
proposto sobre os minerais corre o risco de contradizer as regras da União
Europeia (UE), em matéria de concorrência e de mercado único, que preveem um
acesso igual e justo.Segundo a Comissão Europeia, o acordo sobre minerais que Washington e Kiev estão a negociar será examinado de perto, em Bruxelas, para determinar a sua compatibilidade com a candidatura de adesão da Ucrânia, visto que a última versão do texto reaviva os receios de que este possa fazer descarrilar as ambições do país de aderir ao bloco.
O processo de adesão exige que os países candidatos se alinhem, gradualmente, com a legislação da UE, incluindo os princípios fundamentais da concorrência leal e da não discriminação. “Foi-nos transmitido que esse acordo teria de ser analisado na perspetiva das relações entre a Ucrânia e a UE e, nomeadamente, em termos das negociações de adesão”, afirmou Paula Pinho, porta-voz principal da Comissão, numa conferência de imprensa, alertando para o facto de quaisquer conclusões serem “pura especulação”, pois o acordo está a ser discutido entre funcionários ucranianos e norte-americanos, estando a Comissão Europeia disposta a prestar “assistência jurídica” a Kiev, se esta for solicitada.
“Não podemos fazer qualquer avaliação, a menos que exista um acordo concreto, com as letras pretas e brancas, que nos permita avaliar o impacto dos diferentes ângulos políticos que possam surgir”, precisou a porta-voz.
O comentário surgiu um dia depois de a agência Bloomberg e o Financial Times terem revelado novos pormenores sobre a versão do acordo, agora apresentada pela Casa Branca, em termos abrangentes que permitiriam aos EUA obter um controlo sem precedentes sobre os recursos naturais da Ucrânia, através de um fundo de investimento conjunto.
A composição do conselho de administração do fundo daria, na prática, a Washington efetivo poder de veto sobre decisões fundamentais, relativas a novos projetos de infraestruturas e recursos naturais, ainda que os projetos existentes pareçam estar fora do controlo.
Nestes termos, as estradas, os caminhos-de-ferro, os portos, as minas, o petróleo, o gás e a extração de minerais críticos seriam todos abrangidos pela nova estrutura. A Ucrânia, segundo a Bloomberg, seria obrigada a apresentar todos os novos projetos ao fundo para análise “o mais cedo possível”. Se um projeto fosse recusado, a Ucrânia seria impedida de o oferecer a outras partes com condições “materialmente melhores”.
Além disso, os EUA teriam o direito de colher todos os lucros do fundo e o retorno anual de 4% até ficar completamente recuperada a ajuda militar e financeira dade à Ucrânia. Ora, o Instituto de Kiel para a Economia Mundial calcula que o apoio norte-americano ascende a 114 mil milhões de euros, desde o início da invasão em grande escala da Rússia.
Está subjacente, se não explícito, o modelo de “vingança”, que é central na motivação de Donald Trump para assinar o acordo, fazendo emergir acusações de exploração e neocolonialismo, esquecendo que outros países também ajudaram a Ucrânia e impuseram sanções à Rússia.
Embora os funcionários ucranianos tenham diluído as primeiras propostas dos EUA apresentaram, até conseguirem um texto razoável, a versão atual traz de volta os termos draconianos que, tendo chocado a Ucrânia e os seus aliados, alimentaram o receio de que o acordo pusesse em risco as aspirações do país a tornar-se membro da UE.
Dando às empresas americanas o “direito de primeira oferta” legal e/ou contratualmente consagrado, no dizer de Svitlana Taran, analista política do Centro de Política Europeia (EPC), o acordo contradiz as regras de concorrência e do mercado único da UE, que preveem o acesso justo e igual para todos os agentes económicos, independentemente da nacionalidade. “Deve haver uma concorrência aberta a todos os investidores nos projetos”, declarou Svitlana Taran à Euronews, evidenciando a existência de “conflito de interesses”, uma vez que, “nos concursos públicos, as empresas da UE e as empresas americanas devem participar e competir em igualdade de condições”.
O analista acredita que a Ucrânia continuará as negociações até que o acordo se torne “aceitável” e as preocupações em torno da adesão à UE diminuam, embora não seja claro o peso que estas preocupações terão nas considerações da Casa Branca. “As disposições acordadas nas versões anteriores estavam equilibradas com os interesses ucranianos”, considerou o analista, vincando que, “agora, estão novamente desequilibradas”, com vantagem para os EUA.
A falta de garantias de segurança tem sido outro ponto de discórdia. A Casa Branca apresentou o acordo sobre os minerais, supostamente, para dissuasão económica contra futuras agressões russas. No entanto, o presidente ucraniano avisou que Vladimir Putin daria prioridade à sua agenda expansionista, em detrimento dos interesses norte-americanos.
Após a reunião da “Coligação dos Interessados”, Volodymyr Zelenskyy queixou-se de os termos do acordo estarem “constantemente” a mudar, mas prometeu que a sua equipa se manteria “construtiva” nas negociações, para evitar antagonismos que pudessem levar a nova suspensão da assistência militar e da partilha de informações, e tal como pretendeu evitar que os EUA ficassem com a impressão de que a Ucrânia é contra o acordo, em geral.
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Neste
contexto, o presidente russo, Vladimir Putin, sugeriu que a Ucrânia ficasse sob
controlo temporário da Organização das Nações Unidas (ONU) até ser eleito um
governo “competente”, apesar de tal ser contrário à lei ucraniana, proposta que
Washington rejeitou.Vladimir Putin considerou que tal poderia ser feito, até que fosse eleito um governo “competente”, no âmbito de novas conversações sobre um cessar-fogo e com vista a uma paz a longo prazo que pusesse fim à invasão de Moscovo, agora no seu quarto ano. Todavia, um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca respondeu à pretensão de Putin, afirmando que a governação na Ucrânia é determinada pela sua Constituição.
É curioso e irónico que os dois presidentes estrangeiros, de tiques neocolonialistas, estejam a “zelar” pela legalidade constitucional da Ucrânia: Putin quer a vigilância da ONU, até haver um governo competente; Trump invoca o respeito pela Constituição ucraniana.
Assim, enquanto Donald Trump acusa Zelensky de ingrato e causador da III Guerra Mundial, Vladimir Putin volta a atacar o governo de Kiev e o presidente ucraniano, continuando a acusá-lo de ser “ilegítimo”.
De acordo com a Constituição ucraniana, é ilegal a realização de eleições nacionais, enquanto o país estiver sob lei marcial. Por outro lado, as forças russas ocupam parcelas do território ucraniano, tornando as eleições impossíveis. Não obstante, o presidente russo, apontando que a governação externa é “uma das opções” (sem entrar em pormenores), sustentou que os sucessores poderiam contestar quaisquer acordos de paz assinados pelo atual governo de Kiev, apelando a uma votação para eleger “um governo viável que goze da confiança do povo e, em seguida, iniciar negociações com eles sobre um tratado de paz”.
Esta declaração provocou fortes reações de Kiev, com o conselheiro presidencial ucraniano Dmytro Lytvyn a afirmar, no X, que, se Putin não sabe com quem deve falar sobre as conversações de paz, talvez precise de “comprimidos para iniciar a sua atividade cerebral”.
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É de salientar
que a cimeira da “Coligação dos Interessados”, organizada pelo presidente
francês, foi realizada pouco depois da conclusão de uma cimeira que
equacionou a possibilidade de enviar tropas para a Ucrânia, para tentar chegar
a um acordo de paz. Vários países manifestaram o desejo de fazer parte da
força, mas essa posição não é consensual em todos os aliados europeus.O Kremlin, que propôs várias condições, como o levantamento de algumas das sanções contra si, contrariando o cessar-fogo anunciado pelos EUA no Mar Negro, diz não aceitar tropas de membros da NATO como parte da futura força de manutenção da paz. E Kiev acusou Moscovo de fazer mais exigências inatingíveis, para atrasar a decisão sobre um acordo de paz.
Penso que, no atual concerto das nações, seria a ONU (mais imparcial), e não a NATO (mais colada a um dos lados), a garantir as condições de paz no terreno. Tanto os EUA como o Kremlin estão interessados numa espécie de partilha da Ucrânia: os primeiros, mais pela asfixia económica (controlo do fundo de investimento e esbulho de terras raras, de minérios e de petróleo); o segundo, pela vigilância política (um governo legítimo – leia-se “russófilo) e sem abrir mão dos territórios ocupados.
A integração da Ucrânia na NATO, a ocorrer, será um espinho para a Rússia e para a Europa; e, pelos vistos, como já pensava, é precipitado e não crível equacionar a adesão da Ucrânia à UE.
2025.03.28 – Louro de Carvalho
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