O relatório da
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas luso-brasileiras, elaborado
pela relatora, a deputada Cristina Rodrigues, do partido Chega, sobre a
comissão foi rejeitado, a 18 de março, na reunião que seria
a última, para tentar as conclusões finais. Todos os partidos votaram
contra o documento, à exceção do partido relator. A proposta de relatório
acusava o Presidente da República (PR) de “abuso de poder”.
Foi tudo rejeitado
pela CPI – o corpo do relatório, as conclusões e as recomendações –, tendo sido o Chega o único partido a
votar a favor, face ao voto contra de todos os outros. Até aqui, tudo foi
normal. Em democracia, prevalece a vontade da maioria. Por outro lado, a CPI
não deixou de expor ao vivo as declarações pertinentes. Contudo, parece esquisito
ter surgido relatório alternativo elaborado à revelia do partido relator e ter
sido aprovado por notória maioria.
Nada me prende, em termos de simpatia ou de
ideologia ao partido de André Ventura, mas por uma questão de princípio, também
democrático, ou prevalecia o voto contra ou negociavam alterações com o partido
relator e que solicitou a constituição da CPI.
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A proposta
de relatório alternativo foi apresentada pelo Partido Social Democrata (PSD) e
pelo partido do Centro Democrático Social (CDS), tendo acolhido propostas de
alteração, da parte do Partido Socialista (PS) e do partido
Animais-Natureza-Pessoas (PAN), pelo que mereceu aprovação maioritária. E, reagindo
a esta votação, André Ventura considerou uma “vergonha” que os partidos tenham
votado contra o relatório preliminar e apontou o dedo ao PSD e ao PS, pela
tentativa de branqueamento do comportamento dos políticos, no caso.
No relatório
saído da pena de Cristina Rodrigues, o PR
era acusado de “abuso de poder”, sendo tal conduta “especialmente censurável, por
se tratar do Chefe de Estado”. “Qualquer pedido feito por si ou em
seu nome tem inerente uma convicção de obrigatoriedade de cumprimento por parte
de quem recebe o pedido, ainda que não seja necessariamente uma ordem,
revelando, assim, a eventual prática de abuso de poder”, indicava o documento
com 254 páginas, sustentando que “ficou provado que Nuno Rebelo de Sousa [NRS] pediu
ajuda ao pai, o Presidente da República, para salvar as gémeas”, considerando
que ficou provado que este “tomou diligências acrescidas, face ao que costuma
fazer com outros cidadãos que a ele recorrem”.
Também ficou “absolutamente provado” que o
ex-secretário de Estado António Lacerda Sales interferiu no processo, dando
ordem expressa e inequívoca para a marcação da consulta, sabendo que se pretendia, não uma mera consulta, mas
o tratamento com Zolgensma. E “ficou provado que, embora não existindo uma
lista de espera oficial, havia, pelo menos, mais quatro casos de outras
crianças luso-descendentes que residiam no estrangeiro, com o mesmo diagnóstico,
a quem não foi autorizada a marcação da consulta e, consequentemente, acesso ao
medicamento”.
***
No
entanto, ao fim de 10 meses de trabalhos, a CPI aprovou um relatório final, que
resulta da fusão do relatório alternativo do PSD com as propostas de alteração
do PS e do PAN, cujas conclusões visam Lacerda Sales e a Presidência da
República, mas não o PR.
Os deputados sustentam
que houve “intervenção especial pela Casa Civil da Presidência da República, embora não tenha sido
identificado qualquer tipo de ilegalidade”, mas deixam de fora o Chefe de
Estado.
Para
a CPI, ficou também provado que António Lacerda
Sales, à data secretário de Estado da Saúde, deu “instrução direta e clara” à secretária pessoal, para solicitar a marcação da primeira
consulta no Hospital de Santa Maria. Assim, o ex-governante “faltou mais do que
uma vez à verdade”, embora o PSD tenha retirado as referências à violação da
lei na marcação da primeira consulta (Portaria n.º 147/2017, de 27 de abril).
O
documento final assinala o papel de NRS, que intercedeu e
atuou, de forma insistente, junto do PR, da Casa Civil, do secretário de Estado da Saúde e do Hospital
Lusíadas Lisboa”. O filho do Presidente da República “procurou
influenciar” estas entidades para obter uma ajuda maior para que as crianças
fossem tratadas no SNS [Serviço Nacional de Saúde] com o Zolgensma.
Porém,
segundo a CPI, ficou provado que o processo de obtenção de nacionalidade das
gémeas decorreu “sem qualquer interferência externa”, “cumpriu todos os
trâmites legais” e no “prazo normal”. As crianças “tinham direito de aceder ao
SNS” e “não se pode afirmar que alguma
criança ficou sem tratamento, em consequência da administração do Zolgensma às
gémeas”.
No
final das votações, o presidente da CPI anunciou que foi
solicitado ao presidente da Assembleia da República que o relatório fosse
apresentado no dia 19, em plenário, o último desta legislatura. A Conferência de Líderes iria
deliberar tal apresentação, que, a acontecer, seria da responsabilidade de António
Rodrigues, coordenador do grupo parlamentar do PSD, que fora nomeado novo
relator da CPI, após a renúncia de Cristina Rodrigues,
que viu o seu relatório ser rejeitado por todos os partidos, com exceção dos
três deputados do Chega.
Por
requerimento do CDS, o voto de rejeição do relatório preliminar foi feito
globalmente (não ponto a ponto, como dita o Regimento Jurídico das CPI). A
alteração exigia unanimidade, com o Chega a ser o único partido a manifestar-se,
inicialmente, contra. “Já percebemos aqui
que está feito um arranjinho entre PS e PSD”, apontou Cristina Rodrigues, antes de o Chega consentir na
alteração. Já o documento final foi votado ponto a ponto. O relatório
alternativo do PSD foi maioritariamente aprovado, assim como 22 das 26
propostas do PS e duas das três recomendações do PAN. Apenas um ponto foi
aprovado por unanimidade (o facto do tratamento ter acontecido, “única e exclusivamente”,
no Hospital Santa Maria).
Após
a rejeição do relatório preliminar, o PS esclareceu que o seu voto contra não
se deveu só à discordância do teor, mas também ao facto de Cristina
Rodrigues ter apresentado o relatório, publicamente, “no plano partidário” e
não “individualmente”, como ditam as regras da CPI. “É um erro grave que não
queríamos deixar passar em branco”, afirmou João Paulo Correia.
Cristina
Rodrigues, porém, justificou que André Ventura esteve na apresentação como
“coordenador da comissão”, numa CPI, que “só existe por causa do Chega”, não
como líder partidário, mas o argumento não convenceu os restantes
partidos.
Era
um “relatório pré-feito” e “enxertado” com citações do que se passou na CPI,
atirou Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda (BE). Era efabulação com “factos
que não foram comprovados” e um “esforço de contorcionismo”, para encontrar
dúvida no que ficou esclarecido, corroborou Inês Sousa Real, do PAN. Era “pouco
rigoroso” e queria “credibilizar causa” do Chega, atirou Alfredo Maia, do
Partido Comunista Português (PCP).
Já
a experiência de João Almeida (CDS), incluindo a de relator noutras CPI, sustenta
que foi a primeira vez que a relatora não auscultou os restantes deputados,
durante a elaboração do relatório. “Este relatório não representava o compromisso
com a verdade”, vincou.
Ausente
da reunião da CPI, André Ventura reagiu, como se disse, à rejeição, minutos
depois, considerando-a uma vergonha e um branqueamento do comportamento de
responsáveis políticos. Já o PSD, o PS, o PAN e o BE louvaram (à saída da
reunião da CPI) a aprovação de um relatório “mais equidistante” do que a
proposta tinha sido tomada pelo Chega. “Esta comissão começou com um ato
político, mas termina com um ato parlamentar”, vincou António Rodrigues.
***
Marcelo Rebelo
de Sousa e António Lacerda Sales eram os dois principais pontos de divergência,
que foram difíceis de consensualizar entre
o PSD e o PS.
Segundo o PSD, “não
se confirmou qualquer intervenção especial da Casa Civil da Presidência da
República” e o PR deu ao caso “o tratamento igual a todos os casos similares”
que chegaram a Belém. Já, segundo o PS, a Casa Civil “tratou o processo de forma
especial”. Todavia, os dois partidos discordam do Chega, para
o qual não só a “Casa Civil agiu, neste caso, de forma diferenciada”, como
atribui “responsabilidades políticas” ao Presidente, que, para o Chega, “agiu de forma consciente
e intencional” que revela “eventual prática de abuso de poder”
– que António Rodrigues considerou mera “declaração política”.
Quanto a Lacerda
Sales, o PS fica isolado, ao defender que apenas ficou provado que a Secretaria de Estado da
Saúde sinalizou
o caso junto do Hospital Santa Maria. Sobre o resto,
salienta que os médicos contam “versões contraditórias”, quanto à marcação da
consulta. Já, para o PSD, houve “intervenção” do secretário de Estado, que deu “instrução
direta e clara” à sua secretária para marcar a consulta. E
o relatório alternativo sustenta que os médicos aceitaram tratamento “perante orientação
imposta pelo diretor clínico”, Luís Pinheiro, entretanto,
constituído arguido no processo que corre no Ministério Público (MP) e que os
neuropediatras “reagiram contra a utilização do SNS para os casos de turismo de
saúde”, em carta que não refere o caso. E, para o Chega, é
“absolutamente evidente” a interferência do ex-governante,
“que executa a ordem para que estas crianças entrem no SNS, havendo fortes
indícios de que terá sido a pedido do Presidente da República, através do seu
filho”, escreve Cristina Rodrigues, numa das conclusões já rejeitada pelos outros
partidos, considerando-a “insinuação falsa” e “desonesta”.
O
Chega defende ainda que esta marcação da consulta foi um “ato clínico”
determinado por “critério político” e que os médicos manifestaram desconforto,
quanto ao custo. Já o Conselho de Administração “apenas deu luz verde às
gémeas” para a toma do medicamento.
Os
partidos concordam que a portaria em referência foi violada. A marcação da primeira
consulta das gémeas no Santa Maria aconteceu, de forma irregular,
pois a legislação que regula o acesso ao SNS “não prevê qualquer referenciação
proveniente de uma estrutura governamental”.
Consensual é também o
papel que os partidos atribuem a NRS. O filho do Presidente foi o “promotor da ilegalidade cometida”,
para o Chega, e o “causador deste processo”, para o PS. E, segundo o PSD, foi
possível confirmar que houve tentativa de interferência externa com origem no filho
do PR, não competindo ao Parlamento “aferir o comportamento censurável” de
pessoa que não é titular de cargo político. O PS e o Chega salientam que o caso teve impacto no equilíbrio
orçamental do Hospital Santa Maria. Essas “dificuldades
financeiras” foram “ignoradas pelos gabinetes do Ministério da Saúde”, escreve
o PSD, enquanto O PS não faz referência à questão.
O Chega ficou sozinho a
afirmar que “subsistem dúvidas” e há “fortes suspeitas de interferência
externa”, vincando o PS e o PSD que o processo decorreu
normalmente. Ficou também isolado, ao insistir em que “não existindo uma lista
de espera oficial”, há, pelo menos, quatro casos de lusodescendentes a residir
no estrangeiro que não acederam ao SNS. “Não se pode afirmar que alguma criança
ficou sem tratamento em consequência da administração do Zolgesma às gémeas”,
lê-se no relatório do PSD, o que o PS corrobora.
Os
partidos discordam também quanto ao processo no Infarmed. O PS e o PSD
acreditam ter decorrido “regularmente”, enquanto o Chega diz que “o circuito
normal e regular de atribuição do medicamento [...] não foi respeitado”.
Juliana Drumond nunca
chegou a ser ouvida na CPI, apesar de constar da lista de audições pedidas. Volvidos 10 meses,
o nome da nora do PR fica de fora das propostas do PSD e do Chega, mas surge no
início do documento do PS, que julga ter Juliana Drumond sido o “ponto de contacto” entre
os pais das crianças e NRS. Para o Chega, ficou provado que, apesar
de a mãe das crianças o negar, havia contacto, embora Cristina Rodrigues tenha
omitido a participação da mãe.
O
PS frisa que a nora do Presidente era “agente de seguros” em “parceira comercial” da
seguradora brasileira das gémeas, a AMIL, à data, “detentora
(embora indiretamente) de participação social no Grupo Lusíadas Saúde”, onde as
gémeas tiveram consulta marcada, antes da consulta no Santa Maria. A TVI noticiara que o tratamento das gémeas no SNS terá poupado
milhões à AMIL, levando a CPI a diligenciar para ouvir a seguradora e obter a
documentação referente à seguradora. Apesar de a mãe das crianças ter tentado
impedir a entrega dessa documentação, esta consta do acervo da CPI, por diligências
do PSD.
Assim,
o PS, aduzindo que a CPI tinha “meios insuficientes” para apurar “eventual ação
dolosa da seguradora”, recomenda às “instituições judiciais competentes” que
deem “continuidade a esta linha de investigação”. Já, para o PSD, “não há
factos que comprovem” estas suspeitas.
Entretanto, o tema que aproxima o PSD e o Chega
é o turismo de saúde, tratado, em dezembro, no Parlamento, mas a dissolução parlamentar,
já decretada (Decreto do Presidente da República n.º 31-A/2025, de 19 de
março), fará caducar as propostas aprovadas pelos dois partidos, na
generalidade, sobre o acesso dos estrangeiros ao SNS. Todavia, o tema não fica omisso nas
recomendações. O Chega quer “assegurar que todos os portugueses e estrangeiros
com autorização de residência em Portugal têm acesso equitativo ao SNS”
e “criar normas, relativamente
a estrangeiros não residentes”, nomeadamente, a cobrança de
terapias. Já o PSD quer “apertar a malha”, para evitar situações de
abuso, nomeadamente, exigindo referenciação clínica no caso de portugueses que
vivam no estrangeiro. E ambos querem assegurar o “rigoroso cumprimento do
critério de residência em território nacional, durante o tempo do tratamento”,
o que não sucedeu, neste caso.
António
Rodrigues afirma que 10 meses de trabalho não podem cair em saco-roto. E o
seu partido mostrava-se disponível para “alterar algumas das configurações”
das conclusões e das recomendações, desde que não ferissem os factos
comprovados”. O relatório não poderia ser encaminhado para o MP, sem a
apreciação do plenário, porque é o Parlamento (e não CPI) que vincula o
documento. Contudo, o Chega vai enviar à Procuradoria-Geral da República as
conclusões do relatório preliminar (rejeitado), pois só o MP, “melhor do que ninguém, terá agora
condições de ver se aquilo que foi concluído pelo Chega faz ou não sentido”.
O PR aceita as conclusões do Parlamento e Lacerda
Sales contesta-as.
***
Não
se entende que a Casa Civil da Presidência da República haja tido uma
intervenção, legal ou não, ficando o PR de fora, o responsável político pelo
que se passa em Belém, até porque houve intervenção de NRS junto do pai – a não
ser para preservar, artificiosamente, o nome do PR.
É
pena não se ter apurado quem tem razão: Lacerda Sales ou a sus secretária de
então.
Por
fim, não sabia que a Presidência da República era posto de correio para
veiculação de pedidos antissistema. Poderá um requerimento nosso dirigido, por
exemplo, à Segurança Social ou a uma Unidade Local de Saúde, ser objeto de um “despacho
neutro” do PR e ver o seu objetivo atingido?
2025.03.19 – Louro de Carvalho
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