quarta-feira, 19 de março de 2025

CPI ao caso das gémeas aprovou relatório alternativo ao da relatora!

 

O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas luso-brasileiras, elaborado pela relatora, a deputada Cristina Rodrigues, do partido Chega, sobre a comissão foi rejeitado, a 18 de março, na reunião que seria a última, para tentar as conclusões finais. Todos os partidos votaram contra o documento, à exceção do partido relator. A proposta de relatório acusava o Presidente da República (PR) de “abuso de poder”.

Foi tudo rejeitado pela CPI – o corpo do relatório, as conclusões e as recomendações –, tendo sido o Chega o único partido a votar a favor, face ao voto contra de todos os outros. Até aqui, tudo foi normal. Em democracia, prevalece a vontade da maioria. Por outro lado, a CPI não deixou de expor ao vivo as declarações pertinentes. Contudo, parece esquisito ter surgido relatório alternativo elaborado à revelia do partido relator e ter sido aprovado por notória maioria.

Nada me prende, em termos de simpatia ou de ideologia ao partido de André Ventura, mas por uma questão de princípio, também democrático, ou prevalecia o voto contra ou negociavam alterações com o partido relator e que solicitou a constituição da CPI.     

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A proposta de relatório alternativo foi apresentada pelo Partido Social Democrata (PSD) e pelo partido do Centro Democrático Social (CDS), tendo acolhido propostas de alteração, da parte do Partido Socialista (PS) e do partido Animais-Natureza-Pessoas (PAN), pelo que mereceu aprovação maioritária. E, reagindo a esta votação, André Ventura considerou uma “vergonha” que os partidos tenham votado contra o relatório preliminar e apontou o dedo ao PSD e ao PS, pela tentativa de branqueamento do comportamento dos políticos, no caso.

No relatório saído da pena de Cristina Rodrigues, o PR era acusado de “abuso de poder”, sendo tal conduta “especialmente censurável, por se tratar do Chefe de Estado”. “Qualquer pedido feito por si ou em seu nome tem inerente uma convicção de obrigatoriedade de cumprimento por parte de quem recebe o pedido, ainda que não seja necessariamente uma ordem, revelando, assim, a eventual prática de abuso de poder”, indicava o documento com 254 páginas, sustentando que “ficou provado que Nuno Rebelo de Sousa [NRS] pediu ajuda ao pai, o Presidente da República, para salvar as gémeas”, considerando que ficou provado que este “tomou diligências acrescidas, face ao que costuma fazer com outros cidadãos que a ele recorrem”.

Também ficou “absolutamente provado” que o ex-secretário de Estado António Lacerda Sales interferiu no processo, dando ordem expressa e inequívoca para a marcação da consulta, sabendo que se pretendia, não uma mera consulta, mas o tratamento com Zolgensma. E “ficou provado que, embora não existindo uma lista de espera oficial, havia, pelo menos, mais quatro casos de outras crianças luso-descendentes que residiam no estrangeiro, com o mesmo diagnóstico, a quem não foi autorizada a marcação da consulta e, consequentemente, acesso ao medicamento”.

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No entanto, ao fim de 10 meses de trabalhos, a CPI aprovou um relatório final, que resulta da fusão do relatório alternativo do PSD com as propostas de alteração do PS e do PAN, cujas conclusões visam Lacerda Sales e a Presidência da República, mas não o PR. Os deputados sustentam que houve “intervenção especial pela Casa Civil da Presidência da República, embora não tenha sido identificado qualquer tipo de ilegalidade”, mas deixam de fora o Chefe de Estado. 

Para a CPI, ficou também provado que António Lacerda Sales, à data secretário de Estado da Saúde, deu “instrução direta e clara” à secretária pessoal, para solicitar a marcação da primeira consulta no Hospital de Santa Maria. Assim, o ex-governante “faltou mais do que uma vez à verdade”, embora o PSD tenha retirado as referências à violação da lei na marcação da primeira consulta (Portaria n.º 147/2017, de 27 de abril).

O documento final assinala o papel de NRS, que intercedeu e atuou, de forma insistente, junto do PR, da Casa Civil, do secretário de Estado da Saúde e do Hospital Lusíadas Lisboa”. O filho do Presidente da República “procurou influenciar” estas entidades para obter uma ajuda maior para que as crianças fossem tratadas no SNS [Serviço Nacional de Saúde] com o Zolgensma.

Porém, segundo a CPI, ficou provado que o processo de obtenção de nacionalidade das gémeas decorreu “sem qualquer interferência externa”, “cumpriu todos os trâmites legais” e no “prazo normal”. As crianças “tinham direito de aceder ao SNS” e “não se pode afirmar que alguma criança ficou sem tratamento, em consequência da administração do Zolgensma às gémeas”. 

No final das votações, o presidente da CPI anunciou que foi solicitado ao presidente da Assembleia da República que o relatório fosse apresentado no dia 19, em plenário, o último desta legislatura. A Conferência de Líderes iria deliberar tal apresentação, que, a acontecer, seria da responsabilidade de António Rodrigues, coordenador do grupo parlamentar do PSD, que fora nomeado novo relator da CPI, após a renúncia de Cristina Rodrigues, que viu o seu relatório ser rejeitado por todos os partidos, com exceção dos três deputados do Chega.

Por requerimento do CDS, o voto de rejeição do relatório preliminar foi feito globalmente (não ponto a ponto, como dita o Regimento Jurídico das CPI). A alteração exigia unanimidade, com o Chega a ser o único partido a manifestar-se, inicialmente, contra. “Já percebemos aqui que está feito um arranjinho entre PS e PSD”, apontou Cristina Rodrigues, antes de o Chega consentir na alteração. Já o documento final foi votado ponto a ponto. O relatório alternativo do PSD foi maioritariamente aprovado, assim como 22 das 26 propostas do PS e duas das três recomendações do PAN. Apenas um ponto foi aprovado por unanimidade (o facto do tratamento ter acontecido, “única e exclusivamente”, no Hospital Santa Maria).

Após a rejeição do relatório preliminar, o PS esclareceu que o seu voto contra não se deveu só à discordância do teor, mas também ao facto de Cristina Rodrigues ter apresentado o relatório, publicamente, “no plano partidário” e não “individualmente”, como ditam as regras da CPI. “É um erro grave que não queríamos deixar passar em branco”, afirmou João Paulo Correia. 

Cristina Rodrigues, porém, justificou que André Ventura esteve na apresentação como “coordenador da comissão”, numa CPI, que “só existe por causa do Chega”, não como líder partidário, mas o argumento não convenceu os restantes partidos. 

Era um “relatório pré-feito” e “enxertado” com citações do que se passou na CPI, atirou Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda (BE). Era efabulação com “factos que não foram comprovados” e um “esforço de contorcionismo”, para encontrar dúvida no que ficou esclarecido, corroborou Inês Sousa Real, do PAN. Era “pouco rigoroso” e queria “credibilizar causa” do Chega, atirou Alfredo Maia, do Partido Comunista Português (PCP).

Já a experiência de João Almeida (CDS), incluindo a de relator noutras CPI, sustenta que foi a primeira vez que a relatora não auscultou os restantes deputados, durante a elaboração do relatório. “Este relatório não representava o compromisso com a verdade”, vincou.

Ausente da reunião da CPI, André Ventura reagiu, como se disse, à rejeição, minutos depois, considerando-a uma vergonha e um branqueamento do comportamento de responsáveis políticos. Já o PSD, o PS, o PAN e o BE louvaram (à saída da reunião da CPI) a aprovação de um relatório “mais equidistante” do que a proposta tinha sido tomada pelo Chega. “Esta comissão começou com um ato político, mas termina com um ato parlamentar”, vincou António Rodrigues.

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Marcelo Rebelo de Sousa e António Lacerda Sales eram os dois principais pontos de divergência, que foram difíceis de consensualizar entre o PSD e o PS.

Segundo o PSD, “não se confirmou qualquer intervenção especial da Casa Civil da Presidência da República” e o PR deu ao caso “o tratamento igual a todos os casos similares” que chegaram a Belém. Já, segundo o PS, a Casa Civil “tratou o processo de forma especial”. Todavia, os dois partidos discordam do Chega, para o qual não só a “Casa Civil agiu, neste caso, de forma diferenciada”, como atribui “responsabilidades políticas” ao Presidente, que, para o Chega, “agiu de forma consciente e intencional” que revela “eventual prática de abuso de poder” – que António Rodrigues considerou mera “declaração política”. 

Quanto a Lacerda Sales, o PS fica isolado, ao defender que apenas ficou provado que a Secretaria de Estado da Saúde sinalizou o caso junto do Hospital Santa Maria. Sobre o resto, salienta que os médicos contam “versões contraditórias”, quanto à marcação da consulta. Já, para o PSD, houve “intervenção” do secretário de Estado, que deu “instrução direta e clara” à sua secretária para marcar a consulta. E o relatório alternativo sustenta que os médicos aceitaram tratamento “perante orientação imposta pelo diretor clínico”, Luís Pinheiro, entretanto, constituído arguido no processo que corre no Ministério Público (MP) e que os neuropediatras “reagiram contra a utilização do SNS para os casos de turismo de saúde”, em carta que não refere o caso. E, para o Chega, é “absolutamente evidente” a interferência do ex-governante, “que executa a ordem para que estas crianças entrem no SNS, havendo fortes indícios de que terá sido a pedido do Presidente da República, através do seu filho”, escreve Cristina Rodrigues, numa das conclusões já rejeitada pelos outros partidos, considerando-a “insinuação falsa” e “desonesta”.

O Chega defende ainda que esta marcação da consulta foi um “ato clínico” determinado por “critério político” e que os médicos manifestaram desconforto, quanto ao custo. Já o Conselho de Administração “apenas deu luz verde às gémeas” para a toma do medicamento. 

Os partidos concordam que a portaria em referência foi violada. A marcação da primeira consulta das gémeas no Santa Maria aconteceu, de forma irregular, pois a legislação que regula o acesso ao SNS “não prevê qualquer referenciação proveniente de uma estrutura governamental”.

Consensual é também o papel que os partidos atribuem a NRS. O filho do Presidente foi o “promotor da ilegalidade cometida”, para o Chega, e o “causador deste processo”, para o PS. E, segundo o PSD, foi possível confirmar que houve tentativa de interferência externa com origem no filho do PR, não competindo ao Parlamento “aferir o comportamento censurável” de pessoa que não é titular de cargo político. O PS e o Chega salientam que o caso teve impacto no equilíbrio orçamental do Hospital Santa Maria. Essas “dificuldades financeiras” foram “ignoradas pelos gabinetes do Ministério da Saúde”, escreve o PSD, enquanto O PS não faz referência à questão.

Chega ficou sozinho a afirmar que “subsistem dúvidas” e há “fortes suspeitas de interferência externa”, vincando o PS e o PSD que o processo decorreu normalmente. Ficou também isolado, ao insistir em que “não existindo uma lista de espera oficial”, há, pelo menos, quatro casos de lusodescendentes a residir no estrangeiro que não acederam ao SNS. “Não se pode afirmar que alguma criança ficou sem tratamento em consequência da administração do Zolgesma às gémeas”, lê-se no relatório do PSD, o que o PS corrobora.

Os partidos discordam também quanto ao processo no Infarmed. O PS e o PSD acreditam ter decorrido “regularmente”, enquanto o Chega diz que “o circuito normal e regular de atribuição do medicamento [...] não foi respeitado”.

Juliana Drumond nunca chegou a ser ouvida na CPI, apesar de constar da lista de audições pedidas. Volvidos 10 meses, o nome da nora do PR fica de fora das propostas do PSD e do Chega, mas surge no início do documento do PS, que julga ter Juliana Drumond sido o “ponto de contacto” entre os pais das crianças e NRS. Para o Chega, ficou provado que, apesar de a mãe das crianças o negar, havia contacto, embora Cristina Rodrigues tenha omitido a participação da mãe.

O PS frisa que a nora do Presidente era “agente de seguros” em “parceira comercial” da seguradora brasileira das gémeas, a AMIL, à data, “detentora (embora indiretamente) de participação social no Grupo Lusíadas Saúde”, onde as gémeas tiveram consulta marcada, antes da consulta no Santa Maria. A TVI noticiara que o tratamento das gémeas no SNS terá poupado milhões à AMIL, levando a CPI a diligenciar para ouvir a seguradora e obter a documentação referente à seguradora. Apesar de a mãe das crianças ter tentado impedir a entrega dessa documentação, esta consta do acervo da CPI, por  diligências do PSD. 

Assim, o PS, aduzindo que a CPI tinha “meios insuficientes” para apurar “eventual ação dolosa da seguradora”, recomenda às “instituições judiciais competentes” que deem “continuidade a esta linha de investigação”. Já, para o PSD, “não há factos que comprovem” estas suspeitas. 

Entretanto, o tema que aproxima o PSD e o Chega é o turismo de saúde, tratado, em dezembro, no Parlamento, mas a dissolução parlamentar, já decretada (Decreto do Presidente da República n.º 31-A/2025, de 19 de março), fará caducar as propostas aprovadas pelos dois partidos, na generalidade, sobre o acesso dos estrangeiros ao SNS. Todavia, o tema não fica omisso nas recomendações. O Chega quer “assegurar que todos os portugueses e estrangeiros com autorização de residência em Portugal têm acesso equitativo ao SNS” e “criar normas, relativamente a estrangeiros não residentes”, nomeadamente, a cobrança de terapias. Já o PSD quer “apertar a malha”, para evitar situações de abuso, nomeadamente, exigindo referenciação clínica no caso de portugueses que vivam no estrangeiro. E ambos querem assegurar o “rigoroso cumprimento do critério de residência em território nacional, durante o tempo do tratamento”, o que não sucedeu, neste caso. 

António Rodrigues afirma que 10 meses de trabalho não podem cair em saco-roto. E o seu partido mostrava-se disponível para “alterar algumas das configurações” das conclusões e das recomendações, desde que não ferissem os factos comprovados”. O relatório não poderia ser encaminhado para o MP, sem a apreciação do plenário, porque é o Parlamento (e não CPI) que vincula o documento. Contudo, o Chega vai enviar à Procuradoria-Geral da República as conclusões do relatório preliminar (rejeitado), pois só o MP, “melhor do que ninguém, terá agora condições de ver se aquilo que foi concluído pelo Chega faz ou não sentido”.

O PR aceita as conclusões do Parlamento e Lacerda Sales contesta-as.

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Não se entende que a Casa Civil da Presidência da República haja tido uma intervenção, legal ou não, ficando o PR de fora, o responsável político pelo que se passa em Belém, até porque houve intervenção de NRS junto do pai – a não ser para preservar, artificiosamente, o nome do PR.

É pena não se ter apurado quem tem razão: Lacerda Sales ou a sus secretária de então.

Por fim, não sabia que a Presidência da República era posto de correio para veiculação de pedidos antissistema. Poderá um requerimento nosso dirigido, por exemplo, à Segurança Social ou a uma Unidade Local de Saúde, ser objeto de um “despacho neutro” do PR e ver o seu objetivo atingido?

2025.03.19 – Louro de Carvalho

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