segunda-feira, 10 de março de 2025

Nunca vi um Carnaval como o de 2025

 

É certo que não sou muito velho, “sed iam insenui et incanui”, ou seja, já tenho algum siso para ter idade e muito cabelo branco e às clareiras, para a memória não ser exígua.

Os dias de Carnaval dos meus primeiros tempos misturavam o baile e o cortejo de travestidos ou de caretos, nas praças e nas ruas, com as orações (nomeadamente, a celebração das Quarenta Horas), nas igrejas, em desagravo pelos pecados cometidos no Carnaval, os mesmos que se cometiam, por palavras, nas tabernas e nas casas das barbas (barbearias rústicas) das aldeias e das vilas ou nos lavadouros públicos, durante o ano.

Nos lugares de murmúrio de aldeia, reinavam o falatório, a calúnia, a revelação de segredos e o palavrão; nas tabernas, além do vinho e do palavrão, por vezes, surgiam os distúrbios. Alguns párocos chegaram a sugerir às autoridades o encerramento das tabernas. E as Quarenta Horas – adoração ao Santíssimo Sacramento, com missas, pregação, confissão e comunhão –, constituíam a “santa” provocação aos festejos carnavalescos.

Em qualquer Carnaval, havia notícias de acidentes, de mortes, de cenas pancadaria e, não raro, trovoadas das medonhas e alguns desastres naturais. Entretanto, simulavam-se funerais e procissões, com carros alegóricos; teciam-se críticas a figuras públicas, nomeadamente, de políticos; faziam-se proclamações casamenteiras; e procedia-se a autos de fé profanos. Ganhou foros de cidadania o adágio: “É carnaval, ninguém leva a mal!”

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As coisas foram mudando, para tudo ficar na mesma ou quase. O Carnaval ganhou enorme dinamismo no espetáculo, na sátira, na mobilização de novas tecnologias, no empenhamento de municípios e de associações, bem como no turismo. E houve um genial primeiro-ministro (PM) que recusou conceder tolerância de ponto aos trabalhadores da Administração Pública, em nome da produtividade, o que apenas redundou no gasto de mais dinheiro em subsídio de refeição, pois o trabalho por coação social não garante nenhum valor acrescentado em produtividade.  

Também em termos eclesiásticos, “se bem me lembro” (expressão cara a Vitorino Nemésio), um bispo nomeou, por ocasião de um Carnaval do milénio anterior, significativa leva de cónegos. Contudo fiquei na dúvida se era fora festejar o Carnaval, se para os obrigar à penitência quaresmal. Ora, para não haver suspeitas, seria preferível a escolha de outra época do ano: o cabido não se desfaria por isso. Às vezes, a pressa ou a falta de ponderação não são amigas do bom senso. Porém, Deus sabe compreender e rir-se das pessoas e das instituições.  

Também o setor autárquico, redundante em festejos carnavalescos, não só nesta época, mimou o país, na véspera de um Carnaval deste milénio, com uma marretada a iniciar a demolição de uma escola básica do 1.º ciclo, para construir outra no mesmo sítio, tendo como resultado a transferência provisória das crianças para um edifício espaçoso, mas sem equipamento escolar. Aí, as crianças tinham aula sentadas no chão e a professora ou professor, por não ter mesa nem cadeira, dava a aula de pé e passeando por entre as crianças. 

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O Carnaval deste ano, embora repleto de grandiosos cortejos e, provavelmente, regado de orações em algumas igrejas e praças, não terá ocasionado a nomeação de cónegos, pelo menos, em grande escala, nem foi assinalado com nenhuma marretada, que eu saiba, mas foi muito pior.

Desde logo, o internamento do Papa Francisco, devido a uma infeção respiratória polimicrobiana, que redundou em pneumonia bilateral, suscitou uma caterva de jornalistas em Roma, parece que à espera de notícias de tragicidade. Alguns até disseram que o Vaticano, embora não mentisse, não dizia a verdade toda.

Porém, o mais chocante foi a proliferação de escritos sobre a morte dos papas e sobre o funcionamento dos conclaves, bem como o rumor agudo sobre os cardeais “papabili”. Ora, o Sumo Pontífice não morreu, apesar das crises todas por que tem passado, nem apresentou a renúncia, nos termos canónicos. Pelo contrário, vem desenvolvendo reuniões de trabalho com o cardeal Secretário de Estado e com o substituto da Secretaria de Estado, mantém contacto com a nova paróquia de Gaza e prossegue com as nomeações para os respetivos cargos e com as suas várias mensagens, bem como com as diversas celebrações, tendo o Papa delegado a presidência em altos dignitários da Santa Sé, que leem as homilias que ele escreve de antemão. 

Em contraponto, multiplicaram-se os apelos à oração pela saúde de Francisco, incluindo a multidão que se vem reunindo nas imediações do Hospital Agostino Gemelli, ao redor da estátua de São João Paulo II. A estas ações de oração o Papa tem-se mostrado agradecido, através de mensagens videogravadas. 

É cedo para os jornalistas e para os cardeais se moverem em torno de um conclave e é de esperar que isso aconteça bem mais tarde, até porque Francisco, há uns anos a esta parte, vem mantendo a agenda habitual (incluindo viagens) e preside a celebrações eucarísticas, envergando o pluvial liturgico, embora delegue a presidência do núcleo central da Eucaristia num cardeal ou num bispo, sendo-lhe ministrada, a seu tempo, a comunhão.

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A nível internacional, a efeméride carnavalesca foi rodeada de episódios trágicos do ponto de vista geopolítico, que seriam anedóticos, se a paz não estivesse em jogo.

Israel e o Hamas não admitiram o prolongamento do cessar-fogo, passando a acusações mútuas.

Os Estados Unidos da América (EUA) criaram um espetáculo mundial trágico-grotesco. O seu presidente, Donald Trump, na sequência de ter assumido a iniciativa das negociações de paz com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sem a participação da Ucrânia e da Europa, manda redigir a minuta de acordo para a cedência de terras raras e de minerais, por parte de Kiev, aos norte-americanos, sem garantia de assegurar o apoio à segurança daquele país, no pós-guerra. E, apesar das reticências de Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, convida-o a ir a Washington à assinatura do bom acordo.

Perante as acusações, com visualização de imagens, de Zelensky a Putin de que este não quer a paz e só quer a guerra, Trump irrompe numa chusma de impropérios e de acusações ao visitante e de elogios ao “bom” presidente russo, que não pode, na ótica de Trump, ser apodado de responsável pela guerra. E, depois de, com a complacência ativa do vice-presidente James Davis Vance, haver chamado ingrato a Zelensky, responsabilizando-o por estar a começar a III Guerra Mundial, o líder da Ucrânia, humilhado, abandona a Casa Branca. Todavia, já se mostrou disponível a assinar ao dito acordo.

Por seu turno, Donald Trump já anunciou a suspensão de ajuda militar e financeira à Ucrânia.

Entretanto, as negociações parecem continuar em Riade, na Arábia Saudita, entre as delegações russa e norte-americana, onde se tinham iniciado, mas sem a certeza se o presidente ucraniano terá lugar à mesa. E a paz está dramaticamente longe de se obter.

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Em Portugal, os festejos carnavalescos movimentaram o país de Norte a Sul e de lés-a-lés.

Todavia, os dias estão superagitados. Com efeito, Luís Montenegro, primeiro-ministro e líder da coligação governativa, a Aliança Democrática (AD) – formada pelo Partido Social Democrata (PSD), pelo partido do Centro Democrático Social (CDS) e pelo Partido Popular Monárquico (PPM), que não tem representação parlamentar nem governamental – está sob suspeita de ter exercido o cargo, durante um ano, em regime de quebra da exclusividade, a que é obrigado por lei, bem como de ter relação imprópria, para o exercício primoministerial, com uma empresa familiar, que terá alienado para a esposa, com quem está casado no regime de comunhão de adquiridos, e unicamente para os filhos, depois.

O caso foi objeto de moção parlamentar de censura apresentada pelo partido Chega. Apesar de essa moção de censura haver sido reprovada na Assembleia da República (AR), com o voto contra da AD e com a abstenção do Partido Socialista (PS), não tendo caído, por isso, o governo, mas, porque surgiram novidades na comunicação social, que não alteram a substância da questão, a 1 de março, o chefe do governo, após extraordinária sessão do Conselho de Ministros, fez uma comunicação ao país, tendo ao seu lado todos os ministros e ministras do seu executivo.

Para lá das considerações sobre a obra do governo, com inexatidões, referiu-se à dita empresa, sustentando não ter cometido qualquer crime, nem qualquer falha ética, e revelando que tinha passado toda a sua participação para os filhos, que a haviam criado com o pai.

Depois, desafiou os partidos da oposição (leia-se PS) a dizer, em definitivo, se o seu executivo tem ou não condições para continuar a governar, advertindo que, se não o fizessem, o governo apresentaria, a seu tempo, na AR, uma moção de confiança.

Por outro lado, avisou que a crise política não é desejável, mas que poderia ser inevitável. Quase de imediato, o Partido Comunista Português (PCP) anunciou que apresentaria uma moção de censura, tendo o PS prometido não votar a favor, mas adiantando que votaria contra uma eventual moção de confiança que o governo viesse a apresentar. E o ministro das Finanças descartou a hipótese da apresentação da moção de confiança.

Porém, logo o PS passou a ser acusado de incoerência política por não viabilizar a aprovação moção de censura, mas de votar contra uma moção de confiança. E algumas vozes do PS, para não falar de outras, provindas da AD, entendiam que o PS deveria abster-se na moção de confiança, em nome do interesse nacional, para evitar novas eleições e para garantir a estabilidade governativa, ao menos, durante este ano, em que se realizam eleições autárquicas, a que se seguirão, no início do próximo ano, eleições presidenciais.

Não sei se a mensagem justificativa do PS vai passar para a opinião pública e para o eleitorado. Contudo, na perspetiva de um partido de oposição clara, mas moderada, a postura em causa está correta. Na verdade, os partidos da oposição, não tendo feito aprovar duas moções de censura tão próximas uma da outra, garantiram a permanência do governo em funções. E a simples hipótese de apresentação de uma moção de confiança significa uma provocação aos partidos que não queiram fazer cair um governo, mas que não queiram dizer, expressamente, que concordam com a sua ação governativa, para não serem colados à governação. Aliás, já a referida comunicação ao país, que não adiantou nada de especial, em termos das suspeitas que impendem sobre o chefe do governo (antes contribuíram para mais dúvidas), constituiu uma provocação, ao tentar transferir a responsabilidade do que sucedeu para a AR, em especial, para os partidos da oposição.

Já conheci situações parecidas, ou seja, quando alguma autoridade devia tomar uma posição que somente a si dizia respeito, eu abstinha-me, mas, se pretendia que eu manifestasse, expressamente, a minha concordância, eu subtraía-me a isso.

O protocandidato às eleições presidenciais e dois pré-candidatos alertaram para a inconveniência de haver eleições legislativas, neste ano, e o primeiro até pediu a intervenção do Presidente da República (PR) para intermediar entre o governo e o PS.     

Entrementes, o PS anunciou um requerimento potestativo de agendamento da constituição de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) à relação do PM com a empresa familiar em causa.

Em resposta, o PM anunciou a apresentação de moção de confiança, cujo texto foi redigido em tempo recorde e aprovado por Conselho de Ministros eletrónico (a 7 de março), ou seja, foi pouco discutido. E, em seguida, foi apresentado à AR, para ser discutido e aprovado, a 11 de março.

O chefe do governo, sobre a relação com a dita empresa, alegou que fez aquilo que qualquer português faz (não o creio); e os partidos da oposição acusaram-no de querer furtar-se à resposta à CPI, que fica por terra com a dissolução da AR.

O anedótico da questão surge com o PR a dizer que não se pronunciava sobre o caso, mas, antes de qualquer desfecho, adiantou, sem perder tempo, que teríamos eleições a 11 ou a 18 de maio.

Alegam alguns que as eleições têm de ser quanto antes, para não atrapalhar as autárquicas, mas, em 2009, as legislativas ocorreram a 27 de setembro e as autárquicas a 11 de outubro.

Outro aspeto anedótico é a insistência junto do PM e do PS para que desistam das suas posições. Até o governo se dividiu, com uns a colocar a hipótese da retirada da moção de confiança e com outros a garantir que ela seria mesmo discutida na AR.  E, pior ainda, passou-se ao pingue-pongue das acusações: segundo o governo, o responsável pelas eleições, que ninguém quer, é o PS; segundo o PS, o único responsável pela crise e pelas eleições, de que o PS não tem medo e que a AD quer, é o PM.

Para dar sal ao caso, figuras gradas da AD porfiam que não querem eleições!   

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Ora, o Carnaval não dura sempre. E, à medida que avança a Quaresma, as pessoas começam a mostrar-se agastadas com a situação política e concluem que a AD, guiada pelas sondagens, quer mesmo eleições para reforçar a sua posição na AR e o PM já garantiu que será candidato. Aliás, para lá de situações que resolveu a professores, a polícias, a militares, a guardas prisionais e a funcionários judiciais e médicos (com o custo do agravamento da degradação de serviços públicos e sem melhoria significativa nos salários de base), o grosso das medidas anunciadas é de propaganda política, que só não é mais eficaz, devido à falta de habilidade de comunicação da parte dos/as ministros/as mais contestados/as e do Ministro da Presidência.  

A sorte é que, mantendo o ritmo de crescimento herdado do anterior governo (que não mostrou muita obra), os mais de 25 milhões de euros a gastar com as eleições não fazem falta ao Estado; só fazem falta a projetos ou a pobres.     

2025.03.10 – Louro de Carvalho

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