É
certo que não sou muito velho, “sed iam insenui et incanui”, ou seja, já tenho
algum siso para ter idade e muito cabelo branco e às clareiras, para a memória
não ser exígua.
Os
dias de Carnaval dos meus primeiros tempos misturavam o baile e o cortejo de
travestidos ou de caretos, nas praças e nas ruas, com as orações (nomeadamente,
a celebração das Quarenta Horas), nas igrejas, em desagravo pelos pecados
cometidos no Carnaval, os mesmos que se cometiam, por palavras, nas tabernas e
nas casas das barbas (barbearias rústicas) das aldeias e das vilas ou nos
lavadouros públicos, durante o ano.
Nos
lugares de murmúrio de aldeia, reinavam o falatório, a calúnia, a revelação de
segredos e o palavrão; nas tabernas, além do vinho e do palavrão, por vezes,
surgiam os distúrbios. Alguns párocos chegaram a sugerir às autoridades o
encerramento das tabernas. E as Quarenta Horas – adoração ao Santíssimo
Sacramento, com missas, pregação, confissão e comunhão –, constituíam a “santa”
provocação aos festejos carnavalescos.
Em
qualquer Carnaval, havia notícias de acidentes, de mortes, de cenas pancadaria
e, não raro, trovoadas das medonhas e alguns desastres naturais. Entretanto,
simulavam-se funerais e procissões, com carros alegóricos; teciam-se críticas a
figuras públicas, nomeadamente, de políticos; faziam-se proclamações
casamenteiras; e procedia-se a autos de fé profanos. Ganhou foros de cidadania
o adágio: “É carnaval, ninguém leva a mal!”
***
As
coisas foram mudando, para tudo ficar na mesma ou quase. O Carnaval ganhou
enorme dinamismo no espetáculo, na sátira, na mobilização de novas tecnologias,
no empenhamento de municípios e de associações, bem como no turismo. E houve um
genial primeiro-ministro (PM) que recusou conceder tolerância de ponto aos
trabalhadores da Administração Pública, em nome da produtividade, o que apenas
redundou no gasto de mais dinheiro em subsídio de refeição, pois o trabalho por
coação social não garante nenhum valor acrescentado em produtividade.
Também
em termos eclesiásticos, “se bem me lembro” (expressão cara a Vitorino
Nemésio), um bispo nomeou, por ocasião de um Carnaval do milénio anterior,
significativa leva de cónegos. Contudo fiquei na dúvida se era fora festejar o
Carnaval, se para os obrigar à penitência quaresmal. Ora, para não haver
suspeitas, seria preferível a escolha de outra época do ano: o cabido não se
desfaria por isso. Às vezes, a pressa ou a falta de ponderação não são amigas
do bom senso. Porém, Deus sabe compreender e rir-se das pessoas e das
instituições.
Também
o setor autárquico, redundante em festejos carnavalescos, não só nesta época,
mimou o país, na véspera de um Carnaval deste milénio, com uma marretada a
iniciar a demolição de uma escola básica do 1.º ciclo, para construir outra no
mesmo sítio, tendo como resultado a transferência provisória das crianças para
um edifício espaçoso, mas sem equipamento escolar. Aí, as crianças tinham aula
sentadas no chão e a professora ou professor, por não ter mesa nem cadeira,
dava a aula de pé e passeando por entre as crianças.
***
O
Carnaval deste ano, embora repleto de grandiosos cortejos e, provavelmente,
regado de orações em algumas igrejas e praças, não terá ocasionado a nomeação
de cónegos, pelo menos, em grande escala, nem foi assinalado com nenhuma
marretada, que eu saiba, mas foi muito pior.
Desde
logo, o internamento do Papa Francisco, devido a uma infeção respiratória
polimicrobiana, que redundou em pneumonia bilateral, suscitou uma caterva de
jornalistas em Roma, parece que à espera de notícias de tragicidade. Alguns até
disseram que o Vaticano, embora não mentisse, não dizia a verdade toda.
Porém,
o mais chocante foi a proliferação de escritos sobre a morte dos papas e sobre
o funcionamento dos conclaves, bem como o rumor agudo sobre os cardeais
“papabili”. Ora, o Sumo Pontífice não morreu, apesar das crises todas por que
tem passado, nem apresentou a renúncia, nos termos canónicos. Pelo contrário, vem
desenvolvendo reuniões de trabalho com o cardeal Secretário de Estado e com o
substituto da Secretaria de Estado, mantém contacto com a nova paróquia de Gaza
e prossegue com as nomeações para os respetivos cargos e com as suas várias
mensagens, bem como com as diversas celebrações, tendo o Papa delegado a
presidência em altos dignitários da Santa Sé, que leem as homilias que ele
escreve de antemão.
Em
contraponto, multiplicaram-se os apelos à oração pela saúde de Francisco,
incluindo a multidão que se vem reunindo nas imediações do Hospital Agostino
Gemelli, ao redor da estátua de São João Paulo II. A estas ações de oração o
Papa tem-se mostrado agradecido, através de mensagens videogravadas.
É
cedo para os jornalistas e para os cardeais se moverem em torno de um conclave
e é de esperar que isso aconteça bem mais tarde, até porque Francisco, há uns
anos a esta parte, vem mantendo a agenda habitual (incluindo viagens) e preside
a celebrações eucarísticas, envergando o pluvial liturgico, embora delegue a
presidência do núcleo central da Eucaristia num cardeal ou num bispo, sendo-lhe
ministrada, a seu tempo, a comunhão.
***
A
nível internacional, a efeméride carnavalesca foi rodeada de episódios trágicos
do ponto de vista geopolítico, que seriam anedóticos, se a paz não estivesse em
jogo.
Israel
e o Hamas não admitiram o prolongamento do cessar-fogo, passando a acusações
mútuas.
Os
Estados Unidos da América (EUA) criaram um espetáculo mundial trágico-grotesco.
O seu presidente, Donald Trump, na sequência de ter assumido a iniciativa das
negociações de paz com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sem a
participação da Ucrânia e da Europa, manda redigir a minuta de acordo para a
cedência de terras raras e de minerais, por parte de Kiev, aos norte-americanos,
sem garantia de assegurar o apoio à segurança daquele país, no pós-guerra. E,
apesar das reticências de Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, convida-o a
ir a Washington à assinatura do bom acordo.
Perante
as acusações, com visualização de imagens, de Zelensky a Putin de que este não
quer a paz e só quer a guerra, Trump irrompe numa chusma de impropérios e de
acusações ao visitante e de elogios ao “bom” presidente russo, que não pode, na
ótica de Trump, ser apodado de responsável pela guerra. E, depois de, com a
complacência ativa do vice-presidente James Davis Vance, haver chamado ingrato
a Zelensky, responsabilizando-o por estar a começar a III Guerra Mundial, o
líder da Ucrânia, humilhado, abandona a Casa Branca. Todavia, já se mostrou
disponível a assinar ao dito acordo.
Por
seu turno, Donald Trump já anunciou a suspensão de ajuda militar e financeira à
Ucrânia.
Entretanto,
as negociações parecem continuar em Riade, na Arábia Saudita, entre as
delegações russa e norte-americana, onde se tinham iniciado, mas sem a certeza
se o presidente ucraniano terá lugar à mesa. E a paz está dramaticamente longe
de se obter.
***
Em
Portugal, os festejos carnavalescos movimentaram o país de Norte a Sul e de
lés-a-lés.
Todavia,
os dias estão superagitados. Com efeito, Luís Montenegro, primeiro-ministro e
líder da coligação governativa, a Aliança Democrática (AD) – formada pelo
Partido Social Democrata (PSD), pelo partido do Centro Democrático Social (CDS)
e pelo Partido Popular Monárquico (PPM), que não tem representação parlamentar
nem governamental – está sob suspeita de ter exercido o cargo, durante um ano,
em regime de quebra da exclusividade, a que é obrigado por lei, bem como de ter
relação imprópria, para o exercício primoministerial, com uma empresa familiar,
que terá alienado para a esposa, com quem está casado no regime de comunhão de
adquiridos, e unicamente para os filhos, depois.
O
caso foi objeto de moção parlamentar de censura apresentada pelo partido Chega.
Apesar de essa moção de censura haver sido reprovada na Assembleia da República
(AR), com o voto contra da AD e com a abstenção do Partido Socialista (PS), não
tendo caído, por isso, o governo, mas, porque surgiram novidades na comunicação
social, que não alteram a substância da questão, a 1 de março, o chefe do
governo, após extraordinária sessão do Conselho de Ministros, fez uma
comunicação ao país, tendo ao seu lado todos os ministros e ministras do seu executivo.
Para
lá das considerações sobre a obra do governo, com inexatidões, referiu-se à
dita empresa, sustentando não ter cometido qualquer crime, nem qualquer falha
ética, e revelando que tinha passado toda a sua participação para os filhos,
que a haviam criado com o pai.
Depois,
desafiou os partidos da oposição (leia-se PS) a dizer, em definitivo, se o seu executivo
tem ou não condições para continuar a governar, advertindo que, se não o
fizessem, o governo apresentaria, a seu tempo, na AR, uma moção de confiança.
Por
outro lado, avisou que a crise política não é desejável, mas que poderia ser
inevitável. Quase de imediato, o Partido Comunista Português (PCP) anunciou que
apresentaria uma moção de censura, tendo o PS prometido não votar a favor, mas
adiantando que votaria contra uma eventual moção de confiança que o governo
viesse a apresentar. E o ministro das Finanças descartou a hipótese da apresentação
da moção de confiança.
Porém,
logo o PS passou a ser acusado de incoerência política por não viabilizar a
aprovação moção de censura, mas de votar contra uma moção de confiança. E
algumas vozes do PS, para não falar de outras, provindas da AD, entendiam que o
PS deveria abster-se na moção de confiança, em nome do interesse nacional, para
evitar novas eleições e para garantir a estabilidade governativa, ao menos,
durante este ano, em que se realizam eleições autárquicas, a que se seguirão,
no início do próximo ano, eleições presidenciais.
Não
sei se a mensagem justificativa do PS vai passar para a opinião pública e para
o eleitorado. Contudo, na perspetiva de um partido de oposição clara, mas
moderada, a postura em causa está correta. Na verdade, os partidos da oposição,
não tendo feito aprovar duas moções de censura tão próximas uma da outra,
garantiram a permanência do governo em funções. E a simples hipótese de apresentação
de uma moção de confiança significa uma provocação aos partidos que não queiram
fazer cair um governo, mas que não queiram dizer, expressamente, que concordam
com a sua ação governativa, para não serem colados à governação. Aliás, já a
referida comunicação ao país, que não adiantou nada de especial, em termos das
suspeitas que impendem sobre o chefe do governo (antes contribuíram para mais
dúvidas), constituiu uma provocação, ao tentar transferir a responsabilidade do
que sucedeu para a AR, em especial, para os partidos da oposição.
Já
conheci situações parecidas, ou seja, quando alguma autoridade devia tomar uma posição
que somente a si dizia respeito, eu abstinha-me, mas, se pretendia que eu manifestasse,
expressamente, a minha concordância, eu subtraía-me a isso.
O
protocandidato às eleições presidenciais e dois pré-candidatos alertaram para a
inconveniência de haver eleições legislativas, neste ano, e o primeiro até
pediu a intervenção do Presidente da República (PR) para intermediar entre o governo
e o PS.
Entrementes,
o PS anunciou um requerimento potestativo de agendamento da constituição de uma
comissão parlamentar de inquérito (CPI) à relação do PM com a empresa familiar em
causa.
Em
resposta, o PM anunciou a apresentação de moção de confiança, cujo texto foi
redigido em tempo recorde e aprovado por Conselho de Ministros eletrónico (a 7
de março), ou seja, foi pouco discutido. E, em seguida, foi apresentado à AR, para
ser discutido e aprovado, a 11 de março.
O
chefe do governo, sobre a relação com a dita empresa, alegou que fez aquilo que
qualquer português faz (não o creio); e os partidos da oposição acusaram-no de
querer furtar-se à resposta à CPI, que fica por terra com a dissolução da AR.
O
anedótico da questão surge com o PR a dizer que não se pronunciava sobre o caso,
mas, antes de qualquer desfecho, adiantou, sem perder tempo, que teríamos eleições
a 11 ou a 18 de maio.
Alegam
alguns que as eleições têm de ser quanto antes, para não atrapalhar as autárquicas,
mas, em 2009, as legislativas ocorreram a 27 de setembro e as autárquicas a 11
de outubro.
Outro
aspeto anedótico é a insistência junto do PM e do PS para que desistam das suas
posições. Até o governo se dividiu, com uns a colocar a hipótese da retirada da
moção de confiança e com outros a garantir que ela seria mesmo discutida na AR.
E, pior ainda, passou-se ao pingue-pongue
das acusações: segundo o governo, o responsável pelas eleições, que ninguém
quer, é o PS; segundo o PS, o único responsável pela crise e pelas eleições, de
que o PS não tem medo e que a AD quer, é o PM.
Para
dar sal ao caso, figuras gradas da AD porfiam que não querem eleições!
***
Ora,
o Carnaval não dura sempre. E, à medida que avança a Quaresma, as pessoas começam
a mostrar-se agastadas com a situação política e concluem que a AD, guiada pelas
sondagens, quer mesmo eleições para reforçar a sua posição na AR e o PM já
garantiu que será candidato. Aliás, para lá de situações que resolveu a
professores, a polícias, a militares, a guardas prisionais e a funcionários
judiciais e médicos (com o custo do agravamento da degradação de serviços públicos
e sem melhoria significativa nos salários de base), o grosso das medidas anunciadas
é de propaganda política, que só não é mais eficaz, devido à falta de habilidade
de comunicação da parte dos/as ministros/as mais contestados/as e do Ministro
da Presidência.
A
sorte é que, mantendo o ritmo de crescimento herdado do anterior governo (que
não mostrou muita obra), os mais de 25 milhões de euros a gastar com as eleições
não fazem falta ao Estado; só fazem falta a projetos ou a pobres.
2025.03.10 – Louro de Carvalho
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