Tido como conservador e zeloso guardião da
tradição, Bento XVI dessacralizou o papado. Teólogo adepto do diálogo entre a
fé e a razão, não deixou que teólogos investigassem com liberdade. Tímido escreveu
com ousadia a encíclica Deus Caritas Est (“Deus
é Amor”), em que aborda as dimensões do amor e da caridade como ágape e eros, em linguagem pouco habitual no discurso da Igreja. Reticente
ao diálogo inter-religioso que João Paulo II inaugurou, criou pontes com o
islão e intensificou a aproximação aos judeus. Tendo insistido na ideia de
passos concretos para o diálogo com protestantes, não a traduziu numa
iniciativa específica. O líder que iniciou a tarefa de enfrentar a grande vaga
de escândalos de corrupção, de abusos sexuais e de poder considerou urgente a
limpeza da casa, mas, face à imensidão da tarefa, deixou-a a outro, mais enérgico
e com maior força anímica, passando ele a servir a Igreja no recolhimento e na oração,
mas aparecendo, escrever e falando, quando necessário, sem beliscar a
autoridade do sucessor.
A renúncia ao papado foi a grande rutura
que introduziu na Igreja Católica. Não foi o primeiro a fazê-lo, mas os que
tinham renunciado fizeram-no para resolverem lutas de poder ou conflitos entre
monarcas europeus ou entre famílias nobres de Roma. Bento XVI fê-lo por opção.
Era o termo da primeira dezena de dias de
fevereiro de 2013. O Papa disse aos cardeais reunidos em consistório que as
forças lhe faltavam para enfrentar os desafios a que urgia responder,
nomeadamente os escândalos que se vinham acumulando no Vaticano ou em redor
dele: dinheiros, luta pelo poder, corrupção, abusos sexuais, abusos de
consciência. Por isso, retirava-se para uma vida de oração e entregava a
solução ao futuro conclave. Fê-lo por causa de “uma Igreja que ele amava mais
do que a si mesmo”. Esse extraordinário ato (parecido com o de Celestino) fez
do seu pontificado algo grandioso, pois, trouxe a Igreja para a
pós-modernidade, pôs fim à visão sagrada e intocável do papado, restaurou-o na dimensão
evangélica de serviço e mudou a história dos futuros papas. Deu a perceber que
um homem é maior do que o seu próprio destino e fez jus ao lema com que se
apresentara, a 19 de Abril de 2005, à Praça de São Pedro, por entre aplausos
pontuados por algumas vaias: o de “trabalhador da vinha do Senhor”.
A dessacralização do papado na rutura com
a tradição eclesiástica (não com a eclesial) e a sua recolocação no trilho do
serviço ao povo de Deus constituíram a consequência maior do seu gesto, que
abriria caminho a quem, no conclave de 2005, reunira votos para poder ser a
alternativa a Ratzinger: Jorge Mario Bergoglio, que escolheria, a 13 de março
de 2013, o nome de Francisco. Em 2005, só depois de Bergoglio anunciar que não
queria que votassem nele, os votos se concentraram rapidamente no alemão
originário da Baviera, que vinha com a fama de inquisidor, pelo desempenho como
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), cargo em que erigiu a sua
teologia como o único caminho possível para o labor teológico.
Cerca de cem teólogos e teólogas de todo o
mundo foram chamados a Roma, questionados e até sancionados sem direito a
réplica. Nomes incontornáveis da teologia católica do século XX como Bernard
Häring, Edward Schillebeeckx, Johann Baptist Metz, Hans Küng, Leonardo Boff,
Charles Curran, Eugen Drewermann, Tyssa Balasuriya, Anthony de Mello, Jacques
Dupuis ou Lavynia Byrne, foram censurados por Ratzinger. Isto, a par de
admoestações coletivas a grupos de teólogos e congregações religiosas
(inclusive os jesuítas, de que provém o atual Papa), que ousavam criticar as
estruturas do Vaticano ou a doutrina moral da Igreja e a correntes como a
teologia da libertação na América Latina, objeto de forte controlo e
perseguição, ou às aberturas da Igreja Católica na Alemanha. Porém, feito Bento
XVI, reconciliou-se com Hans Küng e com Gustavo Gutierrez, pai da teologia da
libertação, encetou o diálogo com cardeais e bispos alemães, abriu as portas a
perspetivas morais, como a do uso do preservativo para evitar males maiores.
Outro dos fatores de dessacralização do
papado, em antítese com o seu papel na CDF, foi que, enquanto Papa, continuou a
publicar textos em nome próprio. A sua teologia, ao invés do que sucedia antes,
fragilizava-se na ágora teológica e no conflito das interpretações. A
obra Jesus de Nazaré, em três volumes, é o exemplo maior
disso.
Personalidade reservada, amante da música,
exímio pianista e simpático, Joseph Aloisius Ratzinger nasceu em Marktl am Inn
(Alemanha), a 16 de abril de 1927, Sábado Santo.
A primeira polémica tem a ver com a
acusação de ter prestado serviço na Juventude Hitleriana. Com efeito, Ratzinger
foi obrigado a servir na defesa antiaérea do regime nazi. Escapou logo que pôde
e nunca se lhe percebeu simpatia pelo regime. Ao invés: na visita a Auschwitz, condenou
o regime de “criminosos” que quis “matar Deus” e, apresentando-se como filho da
Alemanha, confessou: “Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode
haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus:
Porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Com pudeste tolerar isto? Onde estava
Deus nesses dias?”
A visita a Auschwitz e as idas à Sinagogas
de Colónia e de Roma foram grandes momentos de aproximação ao judaísmo. Mas,
para o grande teólogo, a aproximação, mais do que feita de gestos simbólicos,
deverá passar pela teologia e pela valorização da Bíblia. Em Israel, são essenciais
a Torá, o olhar de esperança, a espera do Messias (a espera reside na certeza
de que Deus entrará na História e realizará a justiça, de que podemos
avizinhar-nos de formas muito imperfeitas. Também a Igreja espera o Messias, que já conhece e à qual Ele manifestará
a sua glória.
Já com o islão, o Papa Bento – que tinha
expressado várias reticências ao movimento de diálogo inter-religioso
propulsionado por João Paulo II –, foi forçado pelas circunstâncias a encetar
uma aproximação que se revelou frutífera, após um discurso em Ratisbona
(Alemanha), em setembro de 2006, que incendiou a rua de várias países árabes
por causa de uma frase não diplomática e mal interpretada. Porém, Ratzinger
promoveu encontros com responsáveis e teólogos do islão, recebeu um rei saudita
no Vaticano e com ele decidiu criar um centro de diálogo inter-religioso (que
reúne também a Áustria e a Espanha e, desde há meses, tem sede em Lisboa), processo
que abriu a via para a Declaração sobre a Fraternidade Humana, que o Papa
Francisco assinou com o Grande Imã de Al Azhar, a mais alta autoridade do islão
sunita, o xeque Ahmad Al-Tayyeb.
Com a ideia de pôr o cristianismo a falar
uma linguagem racional e contemporânea, Ratzinger quis, paradoxalmente,
recuperar rituais, vestes e fórmulas. A aproximação aos lefebvrianos, no início
de 2010, pouco antes da viagem a Portugal, foi outro ponto crítico do
pontificado. Não surtiu efeito: após várias críticas de bispos e muitas
ambiguidades na própria recusa e aceitação dos tradicionalistas, Bento XVI
retrocedeu.
Outro dos processos que não correu bem foi
a aproximação aos protestantes e ortodoxos. Ratzinger era profundo defensor do
diálogo ecuménico entre cristãos – sobretudo com as igrejas luteranas e
orientais – do que fez uma prioridade para o seu pontificado. Logo após ter
sido eleito, na missa com os cardeais, afirmava que assumia “como compromisso
primário o de trabalhar sem poupar energias na reconstituição da plena e
visível unidade de todos os seguidores de Cristo” assumindo que era a sua
ambição e dever. E acrescentava serem “necessários gestos concretos que entrem
nos corações e despertem as consciências”, no sentido do diálogo teológico e do
aprofundamento das motivações históricas”. Porém, apesar de ter insistido nessa
ideia por várias vezes, não propôs nenhuma iniciativa de vulto. Nem conseguiu reunir
com o patriarca ortodoxo russo, que, só em fevereiro de 2016, aceitou
encontrar-se com Francisco.
Como enquanto cardeal, o magistério de
Bento XVI ficou marcado pela condenação do relativismo contemporâneo: “Vai-se
constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e
que deixa como última medida só o próprio eu e as suas vontades.”
A esta ideia não era alheio o trajeto do
próprio que, enquanto jovem teólogo, participou no Concílio Vaticano II
(1962-65). Mas, face a crise do Maio de 1968, em França, e à crise em que a
Igreja Católica se envolveu apesar do Concílio, Ratzinger retrocedeu em várias
ideias, como por exemplo, na possibilidade de repensar o celibato obrigatório
dos padres. O pensamento sobre o relativismo expressou-se entre afirmações ancoradas
na realidade e na perceção de que parte delas decorria do receio pessimista das
mudanças sociais. As crises, medos, incertezas e ambivalências de Bento XVI
eram os da Igreja. Não obstante, Bento era acérrimo defensor de que a fé tem
uma profunda ancoragem na razão e se relaciona em profundidade com a ciência e com
a ação política, no sentido mais largo do termo.
O magistério de Bento XVI teve três momentos
altos com as três encíclicas sobre o amor e a esperança. Na Deus Caritas Est – publicada no dia de Natal de
2005 –, Ratzinger reabilitava a dimensão do eros para o
cristianismo, pedindo um novo fôlego para a atividade caritativa da Igreja. Mas
o centro da reflexão estava na proposta de que “toda a atividade da Igreja”,
incluindo a social e caritativa, “é manifestação dum amor que procura o bem
integral do homem”.
Esta reflexão teve sequência na Caritas in Veritate (“Caridade na Verdade”), de 29 de junho
de 2009, no auge da crise económico-financeira. Embora toda a ajuda ao
desenvolvimento deva ser acompanhada de medidas para desenvolver e aperfeiçoar
o Estado de direito democrático, Ratzinger afirmava: “Perante o crescimento
incessante da interdependência mundial, sente-se imenso – mesmo no meio de uma
recessão igualmente mundial – a urgência de uma reforma, quer
da Organização das Nações Unidas, quer da arquitetura económica
e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização
do conceito de família de nações.” E vários parágrafos como que antecipavam
várias ideias que seriam consagradas, de forma mais veemente, pelo Papa
Francisco na encíclica Fratelli Tutti (“Todos
irmãos”).
Entre os múltiplos temas que Bento XVI
teve de afrontar, o que mais perturbou o seu pontificado foi o escândalo dos
abusos. Nos oito anos no cargo, foram vários os encontros que protagonizou com
vítimas (vários deles anunciados só depois de terem ocorrido) e foram vários os
documentos em que falava uma linguagem até aí não vista da parte do magistério
católico. Foi criticado por uma alegada falta de ação em relação a padres
agressores enquanto era prefeito da CDF. Porém, só no final do pontificado de
João Paulo II é que ficou com poderes para poder atuar e começou a tomar várias
medidas, que prosseguiu, depois, como Papa, apesar de ter sido acusado, numa
investigação recente na Alemanha, de ter, no mínimo, tido atitudes em relação a
um caso de um padre acusado de abusos enquanto era arcebispo de Munique.
Em fevereiro de 2012, em mensagem aos
participantes numa cimeira que debatia estratégias de combate à pedofilia, com
académicos, psicólogos, responsáveis católicos e outros especialistas, vincava
que os abusos são uma “tragédia” para a Igreja e a atenção às vítimas deveria
ser uma “preocupação prioritária”. E foi a imensidão da tarefa e da limpeza da
casa que o fez perceber que não tinha a energia e a força anímica que se
exigiam. Por isso, quis dar o lugar a outro.
A escolha do nome Bento – evocando Bento
de Núrsia, fundador do monaquismo ocidental, e Bento XV, protagonista da
vontade de paz na Guerra 1914-18 – traduzia a preocupação com a decadência do
cristianismo na Europa. Na véspera da morte de João Paulo II, proferiu um discurso
em Subiaco (na Ordem de S. Bento), em que vincou: “Temos necessidade de homens
como Bento de Núrsia, que […], a partir de tantas ruínas, juntou as forças das
quais surgiu um mundo novo.”
Bento XVI deixou o cargo em que ajudou a
sua Igreja entre ruínas e passou a servi-la na solidão.
No seu testamento espiritual, escreveu: “A
todos aqueles que, de alguma forma, prejudiquei, “peço perdão de coração”.
E a sua vida terrestre terminou com a oração:
“Amo-te, Senhor!”
2022.01.03 – Louro de Carvalho
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