O “aeremoto”
provocado pela atribuição da indemnização de quinhentos mil euros a Alexandra
Reis, pela saída forçada ou voluntária da administração da TAP (a
transportadora aérea nacional), a que se seguiram a passagem pela presidência
da NAV Portugal (a controladora do tráfego aéreo) e a integração no XXIII
Governo Constitucional como secretária de Estado do Tesouro, a 2 de dezembro de
2022, ditou a queda da governante (imposta pelo ministro das Finanças), o
pedido de demissão do secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos
Mendes, e o pedido de demissão do Ministro das Infraestruturas e da Habitação,
Pedro Nuno Santos.
Perante o facto, o
primeiro-ministro (PM) procedeu a remodelação governamental, sendo João Saldanha de Azevedo Galamba ministro das
Infraestruturas, Marina Sola Gonçalves ministra da Habitação, Pedro Nuno
Pereira de Sousa Rodrigues secretário de Estado do Tesouro, Ana Cláudia
Fontoura Gouveia secretária de Estado da Energia e Clima, Hugo Alexandre Polido
Pires secretário de Estado do Ambiente, Frederico André Branco dos Reis Francisco secretário
de Estado das Infraestruturas, Maria Fernanda da Silva Rodrigues secretária de Estado da
Habitação e Carla
Maria Gonçalves Alves Pereira secretária de Estado da Agricultura.
Vão para o governo quase só pessoas do aparelho partidário, pois as outras dificilmente
aceitam ver permanentemente escrutinada a sua vida e a dos seus e ganhar pouco dinheiro
no cargo!
Esperava-se que os cidadãos,
os partidos da oposição, alguns militantes do Partido Socialista (PS) e o Presidente
da República (PR) se indispusessem contra o que se passou na TAP, mas na
certeza de que o sucedido com Alexandra Reis é apenas a ponta do icebergue. E
queira Deus que a administradora não tenha sido “corrida”, só depois de ter
feito o trabalho que mais ninguém queria fazer, por exemplo o processo de
milhares de despedimentos, com indemnizações bem modestas em comparação com a
sua, que baixou de cerca de um milhão e meio de euros para 500 mil euros, por
obra e graça da sociedade de advogados (um irmão do PR integra-a) que assessorou
a TAP no caso da ex-administradora. Entende-se que a oposição considere
minimalista a remodelação e que diga que temos mais do mesmo, que aumentou a
mediocridade ou que o PM se valeu da prata da casa e do aparelho partidário,
esquecendo que as pessoas escolhidas para ministro/a ganharam traquejo na
governação, rede de conhecimentos, capital de relação e até mais competências.
Todavia, a luta
político-partidária faz-se também desta maneira, o que pode levar os
governantes a enervarem-se ou a melhorem o seu modus operandi. E compreende-se que o chefe do Governo defenda até
ao fim os escolhidos, deixando-os cair só quando perde a confiança neles ou
quando eles se tornam inequívoco estorvo para a eficácia governativa, a que o
PM não é alheio.
Já não se entende que
o PR – o garante constitucional do “regular funcionamento das instituições
democráticas” (CRP, artigo 120.º), não o seu perturbador mor – haja tecido “publicamente”
considerações individualizadas a governantes e à remodelação. Os presidentes
que serviram o país em democracia influenciaram como puderam a queda de
ministros e de secretários de Estado. Conheceram-se algumas simpatias e
antipatias de António de Spínola, de Mário Soares e de Jorge Sampaio, para não
falarmos da hostilidade inicial de Cavaco Silva para com o primeiro governo de
António Costa, por ter, supostamente, quebrado a tradição portuguesa segundo a
qual formava governo o líder cujo partido tivesse ganhado aritmeticamente as
eleições. Porém, nenhum dos chefes de Estado anteriores a Marcelo Rebelo de
Sousa criticou “publicamente” um ministro ou secretário de Estado em concreto. Provavelmente
tê-lo-ão feito em conversas telefónicas com o primeiro-ministro ou nas
conversas semanais em que o chefe do Governo se desloca a Belém ou a outro
lugar em que se encontre o PR.
Parece que o chefe de
Estado, que logrou pôr em sentido um ministro das Finanças e banir uma ministra
da Agricultura, mas não um ministro da Administração Interna, rivaliza com a
oposição no combate ao governo, que é apoiado pela maioria absoluta de um só
partido. Já não bastava o PR comentar tudo e todos, explicar por que motivo
veta diplomas legislativos ou os promulga, acentuando-lhes os aspetos positivos
e os negativos. Só me lembro de dois casos em que os PR justificaram a
promulgação: Ramalho Eanes, quando se pronunciou publicamente a propósito da
promulgação da lei da interrupção voluntária da gravidez (Lei n.º 6/84, de 11
de maio); e Mário Soares, aquando da promulgação da lei dos coronéis (Lei n.º
15/92, de 5 de agosto).
Neste segundo mandato,
Marcelo pré-avisou a dissolução do Parlamento, caso este não aprovasse o Orçamento
do Estado para 2022, o que acabou por acontecer, mas tendo os eleitores
conferido a maioria absoluta ao PS, pelo que agora não arrisca a mesma medida
implosiva do governo, esperando que haja condições lá mais para diante. Aliás,
prometeu-o na tomada de posse do XXIII Governo Constitucional (esquecendo que
são os partidos com assento parlamentar que têm legitimidade para a formação do
governo – os resto será brincar à política), para o caso de o PM migrar para
cargo europeu em 2024 e vai dizendo que 2023 é o ano decisivo.
Não se me conhece
simpatia para com o atual primeiro-ministro, nem para com qualquer um dos
atuais governantes, mas lamento, de coração, como diria Bento XVI, as
turbulências que o PR fornece à governação. Disse “publicamente” não perdoar à
ministra da Coesão Territorial, se vierem a perder-se fundos europeus, como se
isso não dependesse também da capacidade das autarquias e dos agentes
económicos. Disse “publicamente” que a então secretária de Estado do Tesouro
deveria avaliar se tinha condições para continuar no governo, mas que, embora a
indemnização tenha sido legal, não será compatível com o exercício de funções
governativas.
Após as demissões da
secretária de Estado do Tesouro, do secretário de Estado das Infraestruturas e
do ministro das Infraestruturas e da Habitação, referiu “publicamente” que era
de pensar se tais demissões eram suficientes, que se ia vendo e que, se fosse
necessário mudar mais, se mudaria, pois iria estando atento e controlando. Sobre
a remodelação em referência, apontou que o PM, sobre quem recai toda a responsabilidade
da remodelação, preferiu a continuidade e a solução com a prata da casa. “Vamos
ver se dá resultado” – atirou. Entretanto, a secretária de Estado da
Agricultura, empossada a 4 de janeiro, foi apontada, de imediato, pelo facto de
o marido estar acusado de corrupção ativa e de prevaricação. E, enquanto
António Costa perguntava
aos deputados: “Vou demitir alguém porque o
marido é acusado?”, o PR colocou o problema a partir da visão contrária,
como uma questão “política” e não de “legalidade ou constitucionalidade”. E
sustentou que a governante tinha “limitações políticas” e constituía um “ónus
político”, pelo que devia “formular um juízo sobre si própria”. E argumentou: “Esse é o juízo que a pessoa devia
formular sobre si própria, quando avançou para determinado lugar.” Carla
Alves ajuizou e demitiu-se pouco depois, tendo permanecido no cargo 26 horas.
O PR fez a sua intervenção,
quando estava a decorrer o debate parlamentar
da moção de censura ao governo, que tinha como desfecho a não aprovação. Criou mais um facto político em direto,
pelas televisões, ao convidar a nova secretária de Estado da Agricultura a
demitir-se. Contrariou a teoria, defendida por António Costa, da “legalidade ou
constitucionalidade”.
Marcelo Rebelo de Sousa falou pelas 19 horas e, quase às 20, as redações
recebiam um comunicado do Ministério da Agricultura: “A secretária de Estado da Agricultura,
Carla Alves, apresentou esta tarde a sua demissão por entender não dispor de
condições políticas e pessoais para iniciar funções no cargo. A demissão foi prontamente
aceite.”
O primeiro-ministro dissera a Catarina Martins, coordenadora do BE, que
estava “espantado” por uma deputada do Bloco de Esquerda colocar “a questão de saber a necessidade de demitir uma mulher no
Governo, porque o marido é acusado num processo-crime”. E atirou que “não se
combate o populismo de direita com populismo de esquerda”.
Ora, o PR está com os supostos populistas (na ótica de
Costa), quando evidencia as “limitações políticas” de Carla Alves, por ser
mulher do ex-presidente de câmara de Vinhais,
em investigação da Polícia Judiciária (PJ), por suspeita de crimes de
corrupção ativa e de prevaricação em negócios entre 2006 e 2015. E António Costa assumiu, no
Parlamento, que ele próprio pegou no dossiê, ao afirmar que a secretária de
Estado lhe garantiu, que “na conta dela, não há rendimento não-declarados, não
sabe se consta ou não nas contas do marido e que tudo o que ganhou declarou.”. Porém,
deixou uma fresta: “Em abstrato, se um membro do governo tiver na sua conta
rendimentos não declarados, claro que não pode continuar”.
Questionado sobre se a secretária de Estado devia ser demitida, o PR
respondeu que não se queria pronunciar porque ainda estava a decorrer o debate
da moção de censura, mas insinuou que a saída devia ser da iniciativa da
própria, que devia saber que se tornaria num embaraço para o Governo, devido ao
processo do marido: “O problema não é jurídico nem para já ético, é um peso
político negativo, na pessoa que sabe que apareceu com esse peso”. O PR pisa
terreno perigoso.
Porém, quanto à ideia do PM de criar um circuito de avaliação entre a
proposta de um membro do Governo e a efetiva nomeação, o PR reagiu, quase
afastando essa hipótese por ser um modo de o primeiro-ministro se
desresponsabilizar e de presidencializar o regime. Sugeriu que se estudassem os
modelos de outros países. E aludiu a hipotético reforço do presidencialismo: “O
Presidente da República não se pode substituir ao primeiro-ministro.”
Ora, a meu ver, a cooperação institucional entre PR e governo compromete muito
menos o semipresidencialismo do que a turbulência a partir da Presidência da República.
Mas o PR quer manter-se a falar de alto, sem a corresponsabilidade nas escolhas,
o que agrada à onda populista a quem interessa um D. Sebastião que não seja da
família política de António Costa.
***
Em suma, a oposição e o PR não querem uma remodelação governo, mas o seu desgaste.
A esquerda está na dinâmica do protesto e de algum ganho político, porque o
governo não responde às exigências do tempo; a direita espera que venha
depressa o tempo da sua ascensão ao poder; e o PR, sob a capa da valia política
– já não basta a lei, nem a ética (perigoso) – faz o pisca para a direita (Será
a direita social de que se reclama?), pensando que o cruzamento está perto.
Que se habitue o PM a governar sob o látego ameaçador da dissolução
parlamentar em 2024!
2023.01.06 – Louro de Carvalho
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