O
Presidente da República (PR) assegurou, a 31 de janeiro, em declarações aos
jornalistas, a meio de
uma sessão do programa “Músicos no Palácio de Belém”, no antigo picadeiro real,
em Lisboa, que não quer uma crise política a seguir às eleições europeias de
meados de 2024, mas não se coíbe de sugerir que pode acontecer, recordando até
exemplos passados.
Esta declaração,
aliás como outras, vem na sequência de asserções do primeiro-ministro (PM) em
entrevista à RTP1, no dia anterior, a propósito do primeiro aniversário das eleições
legislativas que outorgaram a maioria absoluta ao Partido Socialista (PS),
liderado por António Costa.
Questionado
o PM sobre a fragilidade do Governo, manifestada nos “casos e casinhos” que brotaram
do seio do executivo em 10 meses de governança, não por obra dos partidos da oposição,
a resposta foi multiforme. Por um lado, as situações de ilegalidade duvidosa ou
de suspeitas de falta de ética foram sendo resolvidas e os responsáveis,
diretos ou indiretos, pelos criticáveis atos ou omissões foram tirando as
consequências políticas; por outro, em certa medida, o Governo pôs-se a jeito e
teve de corrigir os erros, na certeza que, nestes meses de governação, o PM
prendeu muito com os portugueses, nessa matéria.
Respondendo
à questão se um membro do Governo a braços com a Justiça tem condições para
governar, declarou que o facto de alguém ser arguido não significa ter incorrido
em ilícito criminal (antes implica a possibilidade de ter melhores condições para
se defender, bem como o direito ao silêncio) e, ainda que acusado, não
significa que venha a ser condenado. É sempre necessário esperar pelo trabalho
da Justiça, independente dos demais poderes. E disse que, em princípio, um membro
do Governo, se acusado de crime, deve deixar a governação. Porém, é preciso
analisar caso a caso, ponderando, por exemplo, o tipo e a gravidade do crime,
cabendo à Assembleia da República (AR) a autorização para responder aos
tribunais ou o levantamento da imunidade.
Interpelado
sobre determinadas afirmações do PR e sobre algum prurido na relação entre o
Governo e o chefe do Estado acentuou dois elementos interessantes, que outros,
a meu dever, deveriam ter em conta: não é comentador das asserções do Presidente
da República; e não tem por hábito referir, na comunicação social o teor das conversas
que mantém com o chefe do Estado.
No
atinente a uma eventual crise política após as eleições europeias, pelo facto
de eventualmente o PS ter perdido as eleições, o PM observou que só por três vezes,
um partido do Governo ganhou as europeias. Com efeito, são eleições para o
Parlamento Europeu e algumas pessoas aproveitam para exprimir protesto contra a
governação através do voto. Poderia ter acrescentado – digo eu – que o painel de
escolhas é muito pouco diversificado, tratando-se de apenas um círculo
eleitoral com um número reduzido de eurodeputados a eleger. Disse que pretendia
que o seu partido as ganhasse, mas sabe que as pode perder, não advindo daí
prejuízo para a governação.
Tendo
o entrevistador insistido no que o PR tem apontado, o PM recordou que o Chefe
do Estado, aquando da tomada de posse do XXIII Constitucional, frisou que o
eleitorado resolvera entregar a governação do país ao partido liderado por
António Costa por quatro anos, tendo até personalizado a eleição no atual líder
do PS, mal a meu ver esta personalização.
Já
na ocasião exprimi a minha discordância neste ponto: os eleitores votam em
partidos e cabe ao PR, nos termos constitucionais, nomear o primeiro-ministro,
tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidos os partidos com assento
parlamentar. Isto implica, em meu entender, que a mudança de líder partidário
não legitima a dissolução parlamentar, embora possa implicar a formação de
outro governo. Assim, entendi que Jorge Sampaio não devia ter dissolvido a AR.
Entretanto,
João Henriques escreveu, no Diário de
Notícias (DN) online, a 31 de janeiro,
que “o
Presidente
produziu, esta terça-feira, extensa doutrina sobre como há maiorias absolutas
que são “de nome e de obra” e outras que acabam por se “esgotar” muito antes de
eleições.
Na verdade,
o PR apontou o fim da segunda maioria absoluta do Partido Social Democrata (PSD)
liderado por Cavaco Silva, na década de 1990, como exemplo a não seguir: “Essa
maioria foi-se esvaziando, enfrentou eleições europeias.” E o jornalista anotou:
“Na altura, o partido no Governo perdeu as eleições europeias, não houve
dissolução do Parlamento, a maioria formalmente continuou de pé, mas estava
morta, e, nessa fase final, ‘foi uma maioria que depois se limitou apenas a
discutir a sucessão do chefe do Governo e a transição para outra realidade’. ‘Ora
– acrescentou – nós o que queremos é uma maioria absoluta que não seja dessas’.”
Não creio
que se produza extensa doutrina, sobretudo consolidada, com base num caso quase
esquecido e de duvidosa aplicação e, muito menos, ao dobrar da esquina, refletindo
sobre uma entrevista da véspera.
Respondendo
a perguntas sobre a entrevista do primeiro-ministro à RTP1, no dia 30 de
janeiro, o PR defendeu que se espera do Governo que seja “maioria absoluta de
obra” (todos o sabemos), que aproveite os fundos europeus (Irra! Sempre os
fundos europeus! Estará em jogo caça ao dinheiro?) e dure até ao fim da
legislatura, sem entrar em “dissolução interna”.
Espera-se “que,
neste ano decisivo, utilize os fundos e que possa, portanto, ser motora de uma
recuperação económica que tire proveito dos números de 2022 e projete para o
futuro, e com isso ganhe um dinamismo que lhe permita ultrapassar o resultado
das eleições europeias, qualquer que ele seja”, insistiu o PR. “E que chegue ao
fim do seu mandato com os portugueses a dizerem: valeu a pena dar maioria
absoluta, porque a maioria absoluta não se esgotou, não se cansou, não descolou
do país. É isso que os portugueses querem.”
Marcelo Rebelo
de Sousa distinguiu entre maiorias absolutas em “de nome e de obra” e outras
que, a partir de certo momento, passam a ser só de nome, por se terem
esvaziado, cansadas e descoladas da realidade do país. Pegando numa expressão utilizada
pelo PM, observou que a função do PR “é ajudar o Governo a não se pôr a jeito
de a maioria absoluta que é de nome deixe de ser uma maioria absoluta de obra
também”. E disse que é essa a situação atual: “queremos que haja uma
legislatura que seja cumprida e queremos que seja uma maioria não apenas de
nome, mas de obra.”
Não creio
que a função do PR seja de ajudar ou de desajudar o Governo. Recordo o brado do
primeiro-ministro em 1994-1995: “Deixem-nos trabalhar!” Cavaco Silva acusava as
“forças de bloqueio”; agora Marcelo Rebelo de Sousa acusa a maioria desgastada.
Em que ficamos?
Cavaco Silva
tinha obtido a segunda maioria absoluta para o PSD em outubro de 1991. Em 1992,
colapsaram algumas das moedas europeias, que o PS ganhou, embora o PSD tenha
obtido 33,7% dos votos em câmaras municipais. E, em 1995, apesar de ter perdido
as eleições legislativas para o PS, ainda obteve, com Fernando Nogueira, 34,12%
dos votos. Por isso, em minha opinião, é de duvidosa legitimidade apontar a maioria
de 1991-1995 como sendo maioria só de nome ou maioria esvaziada. Tanto assim
foi que Mário Soares, dito animal político, não arriscou a dissolução da
Parlamento. E, agora, é difícil sustentar a debilidade política da maioria. O
protesto é notório, os casos abundaram, o PS desce nas sondagens (que valem o
que valem), mas não é líquido que haja solução melhor, nos próximos tempos. Aguarde-se
o refrescamento político.
Interpelado sobre
a sucessão de “casos e casinhos” no Governo, o PR considerou que são “sinal de
que a democracia portuguesa está mais forte”, sendo preferível uma “democracia
viva” a uma “democracia pantanosa”. E explicitou: “É bom para a democracia
haver exigência em antigos e novos partidos políticos no sistema partidário, na
comunicação social. O contrário é que seria uma situação pantanosa. Mais vale
ver se há problemas, levantá-los, depois uns são, outros não são, e isso é uma
democracia viva, a ser uma democracia pantanosa.”
Neste ponto,
concordo: mais vale emergir a verdade dos casos e eles serem resolvidos de
imediato do que ficarem submersos no limbo da hipocrisia.
E o PR, ao
apontar o exemplo do Governo britânico, chefiado por Rishi Sunak, que “em cem
dias já teve não sei quantas demissões, por razões éticas”, deslegitima os permanentes
ataques ao Governo pela abundância de casos “em apenas 10 meses”. Tem é de se
conter nos comentários personalizados neste ou naquele governante, privilegiando
a separação de poderes e a cooperante interdependência, através de mensagens mais
discretas e mais eficazes.
A seu ver, o
que sucede no Reino Unido sucede em Portugal “mais do que acontecia”, porque, “nas
democracias de hoje, o escrutínio é muito apertado”. E isso “é bom, é sinal de
que a democracia portuguesa está mais forte, não está mais fraca”. E sentenciou:
“O haver capacidade de controlar e haver a capacidade de em função desse
controlo haver respostas que correspondam a padrões de exigência crescente dos
portugueses, quer dizer que os portugueses estão muito, muito mais exigentes.”
Porém, defendo que, em vez de nos atermos ao legítimo escrutínio da comunicação
social (não sei o que move alguma), deviam as instituições com função
reguladora e/ou fiscalizadora estar atentas aos eleitos e aos nomeados. Não há nisto
doutrina alguma!
***
O professor
e constitucionalista Vital Moreira, comentando o caso da maioria social,
contraposta à maioria política, evoca o revelho argumento antidemocrático de que
“a democracia política, baseada nas eleições, dá o mesmo peso a todos”: elite e
plebe, letrados e analfabetos, ricos e pobres, cidadãos empenhados e cidadãos
desinteressados, prevalecendo o governo da maioria sobre o dos melhores. E
aplica-o à extrema-esquerda, “boa a explorar os descontentamentos sociais” e a
sustentar que “uma coisa são as maiorias eleitorais, que governam, e outra, as
alegadas ‘maiorias sociais’, ou seja, a coligação de organizações e movimentos
que comandam as reivindicações sociais, e que são tudo menos maioritárias,
política ou sociologicamente”.
Refere-se, em
concreto, à logica antidemocrática do discurso
da coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), que tenta “fazer esquecer a enorme derrota que sofreu nas últimas eleições”.
E diz Vital Moreira que “o antigo
argumento antidemocrático – a elite contra a maioria da plebe – só mudou de
sinal”: agora, as minorias nas ruas pretendem prevalecer sobre a maioria das
urnas.
Dá que
pensar se não será este o pensamento larvado do PR e de algumas forças da oposição,
que vêm para a rua contestar a revisão constitucional em curso.
2023.01.31 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário