Há cada vez mais empresas estrangeiras a
recrutar portugueses para trabalharem à distância, sem terem de sair do país,
os quais chegam a receber o dobro, têm melhores condições laborais do que no
mercado de trabalho nacional e nem precisam de emigrar.
A tendência está a crescer e já ameaça as empresas
nacionais, bem como o setor do Estado. Com efeito, o regime de trabalho “para fora cá
dentro” começou há alguns anos, sobretudo no setor tecnológico, mas cresceu
bastante com a pandemia e com a generalização do trabalho remoto. Já abrange
muitas outras áreas, para lá deste setor, e ninguém tem dúvidas de que se
generalizará.
Um jovem de 23 anos, recém-licenciado em Engenharia
Informática, que é programador numa empresa norte-americana e costuma trabalhar
a partir de um café, recebeu quase em simultâneo duas propostas de trabalho
para a mesma função provindas de empresas da mesma área, uma portuguesa e outra
dos Estados Unidos da América (EUA). O ordenado oferecido por esta era bastante
mais alto e não tinha de emigrar. Trabalhava perto da família e dos amigos e em
condições melhores do que as do mercado nacional.
Como este, há já muitos portugueses que estão a seguir
tal rumo. Por exemplo, um designer trabalha
para uma empresa norte-americana. Ganha mais do dobro do que recebia numa
empresa nacional. A empresa está sediada na Califórnia, com a diferença de oito
horas face à hora de Portugal. A princípio trabalhava, regularmente, à noite,
mas já tem horário compatibilizado: trabalha com um colega da Turquia e com outro
do Midwest americano. Marcam as reuniões para o início da tarde portuguesa. Um
está a arrancar o dia, o outro a terminar e ele está a meio.
Além do salário, encontrou outras vantagens de ouro,
como os incentivos à formação, os dias de férias ilimitados e “uma organização
e visão de futuro muito bem estruturadas”, que nunca viu em Portugal. Por isso,
se vier a deixar a empresa, não será para trabalhar no mercado nacional.
Está visto que, para os trabalhadores portugueses, são
inequívocas as vantagens de trabalhar para fora, nomeadamente a nível salarial,
de currículo, de flexibilidade e de progressão na carreira.
Segundo o relatório “Global Tech Talent Trends 2022”,
no atinente à remuneração, os profissionais portugueses que trabalham para
empresas estrangeiras do setor tecnológico, por exemplo, recebem, em média,
mais 30%.
Porém, as organizações estrangeiras também ganham
muito, pois os portugueses são vistos como profissionais sérios, competentes,
com boa formação superior, com facilidade em falar línguas e com bom relacionamento
interpessoal. Por isso, começam a aparecer no topo das preferências de
recrutamento a nível internacional, sobretudo para a Europa e para os EUA.
Segundo a Autoridade Tributária (AT), 24660 residentes
em Portugal declararam rendimentos obtidos no estrangeiro em 2021. Todavia,
estes números incluem os portugueses que trabalham para fora, mas também os
estrangeiros que vivem no nosso país como nómadas digitais, não sendo possível
desagregar uma e outra situação. A grande maioria (87%) é trabalhador por conta
de outrem, mas o número dos que declaram rendimentos como trabalhadores
independentes duplicou desde 2018.
É claro que os baixos salários pagos em Portugal
constituem fator de peso nesta equação, tornando os portugueses recetivos a
propostas que nem são altas à luz dos valores internacionais. Em Portugal, um
recém-licenciado, ao entrar no mercado de trabalho, ganha mil euros – e há
muita dificuldade em entrar, a não ser que tenha um padrinho –, enquanto nos
EUA ou no Norte da Europa o nível de entrada está nos €3 mil. Se a empresa lhe
pagar €2 mil, dá-lhe o dobro do que ele ganha. Mas paga um terço abaixo do que
pagaria, se recrutasse no próprio país. Por isso, se ganha o trabalhador, a
empresa também ganha. E, enquanto se esvaem os recursos humanos no mercado de
trabalho nacional, no estrangeiro, depaupera-se grossa fatia dos trabalhadores.
No tempo da Troika, de 2011 a 2013, o aliciamento dos
trabalhadores portugueses por empresas estrangeiras implicava emigração; hoje,
não precisam de sair do país. Até podem muitos regressar, o que pode ajudar a
conter o despovoamento. Esta é uma das vantagens do trabalho remoto.
Residindo em Portugal, estes profissionais contribuem
para o consumo interno, pagam cá os impostos e têm aqui os filhos, mantendo
vivos os laços familiares e ajudando a amenizar o problema demográfico. Além de
fixar profissionais que de outra forma poderiam emigrar em busca de melhores
salários, esta tendência pode até incentivar portugueses a regressar ao país.
Isto aconteceu com uma
arquiteta de 44 anos, consultora de uma empresa na Irlanda, que voltou para
Portugal e passou a trabalhar à distância a partir de um coworking
(trabalho a com partilha de espaço e
de recursos de escritório, reunindo pessoas que podem não trabalhar para a
mesma empresa ou na mesma área de atuação).
Uma coisa certa. Se o
Estado não aumentar consideravelmente, muito em breve, os salários na
administração pública, arrisca-se-á a ficar sem quadros ou ater-se-á a quadros
medíocres, que mais ninguém aceita. Se as empresas nacionais não aumentarem
salários, estarão condenadas a perder os mais trabalhadores qualificados. E não
vale a pena o lamento de que perdemos a geração mais qualificada de sempre.
Paguem, que eles ficam.
Não sei se isso da “geração
mais qualificada” corresponde mesmo à realidade, porque a qualificação não se
cinge à competência meramente técnica. Pauta-se também por valores de
inter-relação, sentido de pertença, sentido de solidariedade, respeito,
humanidade e outros mais.
Na competição dos salários o país estará sempre
condenado a perder, dado que o nível de vida é bastante inferior aos dos países
donde surge a tentativa de recrutamento. As empresas portuguesas e a
Administração Pública estão a sentir enormes dificuldades em reter e recrutar
talentos, porque não têm capacidade de rivalizar com os ordenados oferecidos
pelas empresas estrangeiras.
Sobretudo na área tecnológica, se os recém-licenciados
não tiverem aumentos na casa dos 20% será impossível fixá-los. Às empresas
nacionais e ao Estado restará recrutar pessoas de menor qualidade ou com menos
formação. Por outro lado, os trabalhadores portugueses precisam de ver, nas
empresas e no Estado, outras condições: maior capacidade de organização e de
planeamento, apreço pela formação inicial e contínua adequadas,
desburocratização (reduzir ao mínimo necessário a burocracia), eliminação das
tarefas desnecessárias, comunicação na empresa ou serviço, respeito pelas
pessoas e equidade na apreciação do mérito (contra o amiguismo).
O problema está longe de se resumir ao setor
tecnológico. O recrutamento de portugueses por empresas estrangeiras ganha cada
vez mais expressão. Já abrange a banca e toda a área dos recursos humanos e
estender-se-á a praticamente todas as áreas qualificadas, com exceção das que
exigem trabalho presencial
No Estado já são visíveis os sintomas de uma crise de
recursos humanos. Se o problema não for tratado rapidamente, haverá colapso de
vários serviços públicos. E o setor privado não escapará à debandada, pois
muitas empresas já viram sair equipas inteiras, recrutadas por estrangeiros.
É, pois, necessário aumentar salários e criar melhores
condições de trabalho. Para isso, as empresas têm de se focar em áreas
efetivamente produtivas. Se não pagarem melhor, terão de contratar noutras
geografias, como a Europa de Leste, a Ásia ou o Brasil, onde, com o trabalho remoto, as
próprias empresas portuguesas já começaram a contratar. Deixarão de contar com os portugueses mais
qualificados. Continuarão a viver cá, mas o seu talento estará lá fora.
***
Se o setor privado tem dificuldade em reter profissionais qualificados, por
não poder competir com os salários oferecidos por empresas estrangeiras, o
cenário é mais negro quando o Estado tenta contratar e fixar trabalhadores. Sem
grande margem de manobra para aumentar ordenados, vários setores do Estado vêm
perdendo profissionais: uns vão para empresas privadas, outros vão para o estrangeiro,
muitos outros aposentam-se e, ultimamente, muitos trabalham “para fora cá
dentro”, com salários que chegam a saltar para mais do dobro em áreas como a
programação.
Muitos serviços públicos enfrentam situações de
contingência onde já só se pretende que alguém aceite o trabalho, mesmo que não
seja das pessoas mais qualificadas ou com mais experiência. Nos últimos anos,
entre 25% e 33% das vagas têm ficado por preencher, o que revela uma crise,
ainda que incipiente, dos recursos humanos no setor público. A primeira
debandada deu-se na crise de 2009 a 2014. Depois, houve um reajustamento na
pandemia, com o trabalho remoto. E agora basta uma nova crise, que parece já em
curso, para a Administração Pública entrar num ponto sem retorno e alguns dos serviços
públicos poderem colapsar.
As tecnologias de informação (TIC) são uma das áreas mais
críticas. Há organismos que perderam equipas inteiras de programadores. Mas a
falta de profissionais atinge áreas como engenharias, finanças, educação ou serviços
jurídicos, o que tem impactos muito negativos na gestão pública.
Para evitar que a situação dê em crise, é preciso começar
a tratar já o problema. Há que reforçar os salários, sobretudo em setores
críticos, criar benefícios para os trabalhadores e apostar na valorização das
carreiras, no teletrabalho, nos horários bem definidos e na estabilidade.
Por fim, diga-se que o Estado tem o problema do envelhecimento
dos seus trabalhadores, cuja idade média supera os 50 anos. É difícil competir
com o setor privado, mas tem de o fazer!
2023.01.22 – Louro de
Carvalho
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