Já se feriu de propósito um em cada quatro
adolescentes em Portugal, as sirenes disparam e os especialistas avisam que não
se faz o suficiente para acudir ao sofrimento dos mais jovens.
É a automutilação, em princípio, não suicida (mas
pode levar ao suicídio), que diz respeito a lesões feitas intencionalmente em
si próprio, sem o objetivo de causar a morte. Há exemplos de arranhões
superficiais, de cortes (com faca, navalha de barba, x-ato…) de queimaduras na
pele (com cigarro ou com ferro de ondulação de cabelo), de facadas, de socos
autoinfligidos e de repetida fricção da pele com uma borracha.
Adolescentes que abusem de drogas têm maior
probabilidade de prática de automutilação. E, em algumas comunidades, a
automutilação, subitamente, passa a moda na escola e muitos adolescentes
praticam-na. Não havendo fatores específicos, para com o passar do tempo.
Porém, se há causas, como o bullying ou transtorno mental, o caso agrava-se e
pode ser fatal.
A automutilação sugere que o adolescente está muito
angustiado. Todavia, muitas vezes, não indica risco de suicídio, podendo ser uma
forma de autopunição que o adolescente crê ser merecida. Pode ser usada para
chamar à atenção dos pais e/ou de outras pessoas importantes, para expressar
ira ou para se identificar com um grupo de colegas. Porém, nos adolescentes que
têm perturbações mentais mais graves e menos apoio social, aumenta o risco de
suicídio.
E há outros fatores que podem aumentar o risco de
suicídio, como: a automutilação frequente; a utilização de vários métodos de
automutilação; a sensação de menor ligação social a terceiros, especialmente aos
pais; o sentimento de que a vida faz pouco ou nenhum sentido; a procura frequente
de assistência de saúde mental; e a ideação suicida.
Todos os adolescentes que deliberadamente praticam a
automutilação devem ser avaliados por médico experiente no trabalho com
adolescentes perturbados. O médico tenta saber se o suicídio é um risco e
identificar a angústia subjacente que leva à automutilação, bem como saber se o
adolescente tem problemas com baixa autoestima ou outro problema de saúde
mental, como transtornos de ansiedade, de humor, de padrões alimentares, de
uso de substâncias ou de trauma.
O tratamento geralmente envolve terapia individual (e,
às vezes, de grupo), que se foca em ensinar os adolescentes a estarem mais
cientes das emoções, a aceitarem emoções negativas como parte da vida, a
desenvolverem modos mais adequados de responder ao stresse e a resistirem ao
desejo de se comportarem de maneira autodestrutiva.
***
Uma adolescente entrou nas urgências com um corte
no braço que implicou pontos; outra marcou os pulsos com um x-ato; e outra usou
a lâmina de barbear do pai, para fugir à dor de bullying.
De crianças sociáveis e felizes passaram a mostrar problemas e os pais
ficavam sem saber como reagir. Tentavam o diálogo, mas obtinham o silêncio como
resposta. São problemas na escola, é questão de identidade de género, má
relação com familiares, falta de confiança nos pais…, tudo o que os pais tardam
a descobrir e vão acompanhando como podem, recorrendo a médicos e a psicólogos.
Mas tudo é insuficiente, porque os adolescentes se fecham muitas vezes.
Estas situações de angústia atingem um número crescente de pais. A asserção
é confirmada pelo último estudo “Health
behaviour in school-aged children [comportamentos de saúde de crianças em
idade escolar]”, realizado de quatro em quatro anos pela Organização Mundial de
Saúde (OMS), em 51 países, entre os quais Portugal. A análise, conduzida pela
equipa do projeto Aventura Social, em parceria com várias entidades,
Direção-Geral da Saúde (DGS) incluída, denota um agravamento da saúde mental
dos jovens entre os 11 e os 15 anos (a amostra focada no estudo), traduzido
numa série de parâmetros com resultados preocupantes: 28% dos adolescentes
sentem-se infelizes; 9% estão “tão tristes que não aguentam mais”; 21%
sentem-se nervosos em quase todos os dias (16% admitiram ter tomado medicação por
este motivo no mês anterior); 9% sentem medo diariamente; 64,1% têm dificuldade
em adormecer à noite. Em todos estes itens, há um agravamento em comparação com
os dados de 2018. A perceção de infelicidade escalou quase dez pontos percentuais,
dos 18,3% para os 27,7%. E, neste quadro, sobressai um outro resultado
inquietante: 24,8% dos adolescentes portugueses já se feriu de propósito pelo
menos uma vez, através de cortes, de queimaduras ou de outro tipo de lesões,
número que traduz um aumento superior a 5%, face aos resultados de 2018 e que
faz soar os alarmes.
A automutilação é, para Tânia Gaspar, coordenadora nacional do referido estudo,
“uma forma de os jovens lidarem com as emoções negativas e uma manifestação de
mal-estar psicológico muito preocupante, que requer apoio especializado”. E Sofia
Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, vinca o agravamento do
sofrimento psicológico, manifesto “em mais ansiedade, mais quadros de
depressão, mais distúrbios alimentares e também mais automutilações”. As duas
últimas situações tanto podem ser sintoma de problema de saúde mental (por
exemplo, depressão) como uma situação isolada e situada no tempo, que não
implica perturbação subjacente. Em ambos os casos, há tentativa de
autorregulação emocional e de autocontrolo da dor e da ansiedade, estando
inerente sofrimento psicológico intenso, a requerer intervenção psicológica
especializada.
João Bessa, da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental,
desvaloriza os números, que dependem da metodologia adotada em cada estudo, mas
releva que é problema de saúde pública que tem de ser reconhecido e valorizado,
exigindo a adoção de novas estratégias, até porque, apesar de os comportamentos
autolesivos não terem uma intencionalidade focada no fim da vida, são
significativo fator preditivo do aparecimento de comportamentos suicidários
futuros. Tal correlação não é obrigatória, mas é mais um sinal de que o assunto
é grave.
A relação com os pais não é nota lateral nesta história. Tânia Gaspar
salienta: “O estudo fornece uma visão abrangente, em que tentámos ver a big picture. Por um lado, há a questão
dos indicadores de saúde mental e bem-estar destes jovens; por outro, é
percetível também um agravamento da relação com os pais, uma maior dificuldade
de comunicação, uma perceção de menor apoio dos pais e de que a relação já não
é tão positiva.” A psicóloga clínica foca ainda dois pontos relevantes para uma
interpretação mais ajustada: o aumento do uso das novas tecnologias, que não é
mau em si, mas que pode ser preocupante por aumentar a dependência e enfraquecer
as competências socioemocionais na socialização face a face; e o abuso dos
medicamentos. O estudo em referência mostra que aumentou o uso dos fármacos
como espécie de droga, bem como a medicação sem prescrição médica, o que inibe
as competências para lidar com as coisas de outro modo, pesando na questão da
saúde mental e do bem-estar.
A este quadro juntou-se, nos últimos dois anos, outro fator, que assume
particular relevância no agravamento do estado emocional dos jovens: a
pandemia. Diogo Guerreiro, especialista em psiquiatria de adultos e
adolescentes e autor de uma tese de doutoramento, de 2014, que foca os
comportamentos autolesivos, ressalva que não há explicações 100% precisas,
“porque são sempre multifatoriais”, mas frisa que a crise pandémica, os confinamentos,
o isolamento fizeram com que o aumento da prevalência da ansiedade e da
depressão seja “avassalador em todo o Mundo”, com natural repercussão ao nível
dos comportamentos autolesivos.
Estes comportamentos são forma de comunicação e/ou tentativa de os jovens
regularem emoções que não conseguem controlar. E a privação da socialização, a
incerteza inerente à pandemia, a instabilidade financeira e familiar redundaram
numa espécie de tempestade perfeita para os potenciar. Os adultos têm outras
formas de lidar com a frustração, com o tédio, com os estados mais depressivos;
os adolescentes não, pois até há o efeito de contágio.
O “Estudo em Casa” durante a pandemia não ajudou. Se já passavam muito
tempo no quarto, começaram a passar ainda mais. É certo que os professores e os
coordenadores os serviços de apoio escolar tentaram acompanhar, mas a pandemia
cansou toda a gente.
A pedopsiquiatra Bárbara Romão observa que “os jovens podem sofrer de uma
forma mais internalizante” (sofrimento que provoca maior apatia), mas que, atualmente,
o sofrimento mais comum é o externalizado. Já não há tanto a inibição de
incomodar o outro, de não querer dar nas vistas, que se devia à educação autoritária.
Como o modelo parental prevalente é mais permissivo, isso faz com que o sofrimento
seja mais externalizado, mas também faz com que haja jovens mais narcísicos,
menos gratos, mais exigentes, mesmo em relação aos próprios pais. E, embora
admita que a percentagem apresentada no estudo a surpreende, Bárbara Romão não
duvida de que “é um fenómeno crescente”, que atinge cada vez mais jovens com
“pequenos cortes” e que há um “agravamento enorme”, a todos os níveis.
Ivone Patrão, psicóloga clínica e coordenadora do projeto “Geração Cordão”,
aponta fatores mais relacionados com a esfera pessoal: questões relacionadas
com a imagem corporal, problemas de comportamento alimentar, dificuldades na
socialização e na interação com o grupo de pares ou disfuncionalidades
familiares. Depois, os estudos dizem-nos que adolescentes com personalidade
mais introvertida ou com caraterísticas de neuroticismo mais elevado estão mais
sujeitos. E é de anotar que tais comportamentos são mais típicos nas raparigas
(mas também rapazes o fazem) e, quando acontece uma vez, é grande a probabilidade
de se repetir.
O pediatra Hugo Tavares, responsável pela consulta do adolescente no
Hospital Lusíadas Porto, notando o aumento substancial do número de jovens que
adota comportamentos autolesivos, distingue três situações-tipo: casos em que,
quando chegam ao hospital, há conhecimento de que os comportamentos ocorreram;
casos em que os pais se apercebem da mudança de atitude e, na consulta, se
notam as marcas dos cortes; e casos sem qualquer indício percecionado pelos
pais e acabando os médicos por descobrir. Há quem entenda que tais
comportamentos são atos de autopunição, forma de autoafirmação e fuga aos
problemas.
***
Sejam quais forem os motivos, há que tomar medidas que levem à redução dos números
e à intensificação do cuidado da saúde mental dos mais jovens. O psiquiatra
Diogo Guerreiro aponta pontos cruciais: “É preciso falar mais, aumentar a
literacia dos pais e dos professores, para que saibam reconhecer os sinais de
alarme. É preciso que os próprios jovens saibam a quem podem recorrer. […] Tem
de haver uma abordagem mais geral, que envolva a escola, a sociedade, em que os
professores estejam à vontade para falar sobre estes temas, em que tenham ao
seu dispor um kit básico de
ferramentas para abordar o assunto, em que não haja tabus.” Tudo isto postula o
reforço da rede de psicólogos e pedopsiquiatras no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Está em jogo o bem-estar das pessoas, a saúde pública e o futuro melhor que
almejamos.
2023.01.12 – Louro de Carvalho
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