O
livro O Mundo pelos olhos da língua,
de Manuel Monteiro, editado pela Objetiva, em novembro de 2022, dedica um
capítulo ao fenómeno da aporofobia, que está na raiz de alguns fenómeno de
racismo e de xenofobia.
Diz
Manuel Monteiro que, efetivamente, não repelimos os estrangeiros ou os de
outras etnias como tais, mas por serem pobres e, por consequência, não nos
trazerem qualquer mais-valia, antes constituírem um estorvo para os nossos
interesses. E, na verdade, nós absorvemos, atualmente os estrangeiros e os de
outras etnias que ostentem riqueza, poder e prestígio (Veja-se como tratamos os
turistas estrangeiros e os detentores de grandes fortunas, mesmo que de etnias diferentes).
Porém, temos dificuldade em incluir no nosso ambiente político, social,
económico e cultural os pobres e acusamo-los de serem culpados da sua condição
de vida e responsabilizamo-los por todos os desmandos que se verificam entre
nós, enquanto vamos clamando que não somos racistas, que não somos xenófobos,
mas que somos democratas, cosmopolitas, cidadãos do Mundo.
Assim, “aporofobia”
(do Grego áporos, sem recursos, indigente, pobre; e phóbos, medo, aversão, fuga) significa medo,
rejeição, hostilidade e aversão às pessoas pobres e à pobreza.
O conceito de
“aporofobia” foi proposto, nos anos 1990 (mais exatamente em 1995), pela
filósofa Adela Cortina, professora catedrática de Ética e Filosofia
Política da Universidade de Valência, para diferenciar essa atitude
da xenofobia, que só se refere à rejeição do estrangeiro, e do
racismo, que é a discriminação por grupos étnicos. A diferença entre aporofobia
e xenofobia ou racismo é que não se discrimina nem se marginaliza, socialmente, o
imigrante ou o membro de outra etnia, quando tem recursos económicos
ou relevância social e mediática.
Em
2020, a editora brasileira Contracorrente editou, em Português do Brasil, o
livro Aporofobia.
A aversão ao pobre um desafio para a democracia, da autoria de Adela Cortina.
E explicava que o neologismo “aporofobia” fora escolhido como a palavra do ano
2017 pela Fundación del Español Urgente (Fundéu BBVA) e incorporado ao Diccionario de la lengua española no mesmo
ano. Segunda a autora, os que produzem verdadeira fobia são os pobres. Os
estrangeiros com dinheiro não produzem rejeição. Ao invés, espera-se que tragam
recursos e são recebidos com entusiasmo. Aqueles que inspiram desprezo são os
pobres, os que parecem não poder oferecer nada de bom, sejam migrantes, sejam
refugiados políticos, sejam trânsfugas.
E, no
entanto, não havia nome para esta realidade social inegável. Face a tal
situação, Adela Cortina procurou no léxico grego a palavra “áporos”, que significa
pobre, e cunhou o termo “aporofobia”. No livro, além de definir e contextualizar
o termo, explica a predisposição que todos nós temos para esta fobia e propõe
formas de a superar, através da educação, da eliminação das desigualdades económicas,
da promoção de uma democracia que leva a igualdade a sério e da promoção de uma
hospitalidade cosmopolita. Enfim, o conceito desenvolvido
por Adela Cortina evidencia o que a filósofa chama de sistémica rejeição da pobreza e das pessoas sem recursos.
A
autora estabelece as fronteiras conceituais entre xenofobia e aporofobia,
indicando o apreço xenofílico pelos milhões de turistas estrangeiros que
aportam, anualmente, aos países da Europa, provindos de países e de regiões de
diversidade étnica, racial, linguística, religiosa, fortalecendo a indústria
económica do turismo em cada país do continente. A estes turistas capazes de
mover a economia a Europa rende-se com mimos e com possibilidades variadas de
lazer e de cultura, para os seduzir com a possibilidade do retorno breve.
Em
contraste, grassa a milenar hospitalidade ocidental convertida em ódio, quando
se trata do acolhimento aos refugiados da guerra, da miséria e da fome,
provenientes do outro lado do Mediterrâneo, mais acentuadamente a partir de
2007, após o início dos conflitos bélicos em países da Ásia e da África,
notadamente desde 2011 com o advento da guerra na Síria, o que instalou –
talvez consolidadamente – novos e arrebicados populismos e nacionalismos.
A
xenofobia como rejeição do estrangeiro, de raça ou etnia distinta, coexiste,
com a misoginia, com a cristianofobia, com a islamofobia, com a homofobia,
instaladas como patologias sociais, milenares, necessitando de reconhecimento e
de intervenção para erradicá-las. Porém, na raiz dessas modalidades de fobias
sociais está a aporofobia, a rejeição do pobre, do que não participa no jogo político-económico
senão para demandar, para exigir atenção do Estado e do contrato político, sem
possibilidade de devolução financeira. Esta aporofobia representa um atentado
diário, universal, quase invisível, contra a dignidade de pessoas concretas, às
quais o preconceito é direcionado e vinculado a caraterísticas negativas de um
coletivo.
Ora,
o reconhecimento de que somos todos aporófobos
permitir-nos-á modificar as raízes sociais e culturais, para evitar essa forma
de preconceito, agindo com compromisso para a defesa da igualdade e da dignidade
das pessoas com o sentido de inclusão, de integração, de convivência social efetiva
e de comparticipação no devir da comunidade.
A
história humana precisa de dar nomes às coisas, aos factos e aos fenómenos
sociais, para os incorporar no mundo humano do diálogo, da consciência e da reflexão.
No entanto, é impossível apontar a dedo a democracia, a liberdade, a
consciência, a beleza, o totalitarismo, a hospitalidade, o capitalismo financeiro,
como é impossível sinalizar fisicamente preconceitos, realidades sociais que
necessitam de ser nomeadas para terem reconhecimento e se poder analisar e
tomar posição, reduzindo assim a força ideológica que o anonimato lhes impõe.
Assim
acontece com a xenofobia e com o racismo, preconceitos tão velhos como a Humanidade
e que só foram reconhecidos como realidades sociais num determinado período
histórico, conferindo-se, desde então, o compromisso com o respeito pela dignidade
humana. Porém, somente a xenofobia não explica a rejeição dos refugiados
políticos, dos imigrantes pobres, dos ciganos, dos mendigos, mundialmente
invisíveis. Os imigrantes qualificados e os aposentados estrangeiros instalados
noutros países não são alvos de rejeição, de medo ou de aversão, já que trazem
qualidade aos serviços e incrementam a economia local. O problema reside na
pobreza. E o mais sensível é que há muitos xenófobos e racistas, mais
aporófobos, quase todos.
Daí
deriva muito do discurso do ódio (expresso de vários modos) e do delito de ódio
ao pobre. As agressões dirigem-se a pessoas concretas, mas identificadas com um
grupo; e o discurso é dirigido a um indivíduo identificado com um traço caraterístico
de um grupo. Os delitos de ódio estigmatizam a pessoa ou o grupo, atribuindo-lhes
risco para a sociedade, difícil de comprovar, baseado em preconceitos e na tradição
oral (Assim tem acontecido com os judeus); põem o grupo no ponto de mira do
ódio com a criação de lendas para justificar a incitação ao desprezo e à
agressão; impõem a crença na naturalização da desigualdade estrutural entre a
vítima e o agressor, que se crê em posição de superioridade perante ela; e
incitam ao compartilhamento do desprezo.
Nestes
termos, para Adela Cortina, não é fácil organizar a construção de uma sociedade
pluralista com o compartilhamento de uma justiça mínima, porque não há uma
relação de igualdade, de respeito e de reconhecimento da dignidade merecida
pelo agredido, supondo-se uma violação flagrante do imperativo ético categórico
kantiano.
Se
Ronald Dworkin, filósofo e jurista estadunidense,
considera a igualdade como a virtude soberana, Cortina utiliza-a como o caminho
a construir pela educação formal e informal para suplantar os delitos e os discursos
de ódio, pelo recurso institucional ao direito penal e civil para a punição e
reabilitação, e pela função comunicadora e de intolerância a determinadas ações
violadoras de valores que dão sentido e identidade à sociedade. Por isso, é de
relevar o papel da sociedade na erradicação da pobreza e das desigualdades e no
cultivo de valores e de sentimentos de igual dignidade para todos. Obviamente, a
lei não é suficiente para resolver o problema; requer-se a ética cívica,
estribada numa eticidade democrática que tenha como sagrada a liberdade, construída
no diálogo e no reconhecimento mútuo da dignidade inerente e toda a vida
humana.
Isto
implica a construção de uma consciência pessoal e social que assuma uma
consolidada moralidade definida como um conjunto de valores, princípios,
costumes, que nos leve a controlar o egoísmo e a reforçar a cooperação e a
solidariedade, entre os mais próximos, inicialmente, e ao conjunto da
humanidade, em seguida, resultante de pressões evolucionárias forjadoras de
experiências humanizadoras, fautoras de generoso altruísmo tornado eficácia,
visando a cultura do respeito, da cooperação e da implantação da verdadeira cidadania
que realize cabalmente o ser humano e a comunidade justa, fraterna e solidária,
sem fobias de qualquer matiz e sem filias descabidas, nomeadamente a “plutofilia”
(amor desmedido à riqueza e aos ricos) e a “filiocracia” (apego desmedido ao poder
e aos poderosos).
O
posicionamento ético e político de Adela Cortina instiga à reflexão para uma
cidadania ativa que promova e assegure a toda a pessoa, na condição de
vulnerabilidade extrema como refugiado, o direito à hospitalidade –
materializada no acolhimento, na integração e na inclusão –, que devia ser
incorporado, por exemplo, como princípio, na Declaração Universal de Bioética e
Direitos Humanos, da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Na
verdade, somos pessoas, somos comunidade humana, com direitos e com deveres.
2023.01.27 – Louro de Carvalho
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