As sedes dos três poderes da República Federal do Brasil, em Brasília, foram
invadidas e vandalizadas, a 8 de janeiro (oito dias depois de Lula da Silva ter
sido empossado como presidente), por milhares de apoiantes de Jair Bolsonaro.
Numa iniciativa que parecia replicar a invasão do Capitólio nos Estados Unidos
da América (EUA), a 6 de janeiro de 2021, os manifestantes radicais
apelavam a intervenção militar para o derrube do presidente e para a libertação
do Brasil do comunismo. Porém, em Brasília, a ação invasiva foi mais abrangente
do que em Washington, porque atingiu as cúpulas de todos os órgãos de
soberania: o Palácio do Congresso Nacional (sede dos órgãos do poder
legislativo: Senado Nacional e Câmara dos Deputados), o Palácio do Planalto
(sede do poder executivo: presidência, governo e seus serviços) e o Palácio do
Supremo Tribunal Federal (sede do órgão máximo de
apelação e corte constitucional do Brasil – a cúpula do poder judicial).
O caso não surgiu de súbito, antes foi premeditado e preparado. Centenas de
militantes radicais (bolsonaristas), estavam acampados em frente do
Quartel-General do Exército, na capital, desde 31 de outubro, dia seguinte à
segunda volta eleitoral, em que o ex-presidente foi derrotado por Lula da
Silva. E, há várias semanas, decorriam manifestações por todo o país, recusando
a vitória de Lula e pedindo a intervenção do exército para que tomasse o poder.
Assim, a 8 de janeiro, após terem derrubado uma
barreira policial, os acampados junto ao quartel-general, vestidos de verde e
amarelo, subiram a rampa de acesso à cobertura dos prédios da Câmara dos
Deputados e do Senado, invadindo o edifício e mostravam uma faixa com a
palavra “intervenção”. E iam chegando a Brasília dezenas de autocarros que
transportavam mais manifestantes, muitos dos quais, segundo as autoridades, não
precisaram de pagar a viagem.
O objetivo é a desordem. Não têm receio da polícia, pois a impressão é de que as autoridades “são patriotas e estão com o
povo”, a não ser “alguns policiais que são comunistas”. Nestes termos, pensam
que, “se houver uma convulsão social, pode ser acionada a garantia da lei da
ordem” e os militares tomam o poder. Porém, o ministro da Justiça, Flávio Dino,
afirmou ter, antes da invasão, conversado com os governadores sobre os protestos
e esperava que a polícia não precisasse de atuar para conter atos violentos. A
Polícia Militar de Brasília montou barreiras de proteção, mas os manifestantes furaram o cerco policial, arrancaram grades e entraram
na Praça dos Três Poderes, enquanto os agentes tentavam contê-los com spray de
gás pimenta.
Pelas 15 horas, já a Polícia Militar tentava travar o avanço dos
bolsonaristas, que se concentraram às portas do Palácio do Planalto e diziam
querer “tomar os Três Poderes” e “salvar o Brasil do comunismo”. Ao tomar
conhecimento do que sucedia, o presidente decretou a
intervenção federal “para pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”
até 31 de janeiro, classificando a invasão como “barbárie” organizada
por “fascistas fanáticos”. Porém, o controlo das sedes foi recuperado
ainda no dia 8, numa operação em que, pelo menos, 300 pessoas foram detidas.
A Polícia Civil de Brasília prometeu que as investigações seguem até à
identificação do último integrante. E Lula garante a punição de todos os
responsáveis pela desordem.
Entretanto, Alexandre de Moraes, juiz do Supremo Tribunal
Federal (STF) – a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) – órgão que
representa o Governo Federal em tribunais – e de Randolfe Rodrigues, senador e
líder do governo no Congresso, determinou o afastamento de
Ibaneis Rocha, por 90 dias, de governador do Distrito Federal. Moraes alega
que Ibaneis atuou com negligência e omissão, como Anderson Torres, exonerado do
cargo de secretário de Segurança do Distrito Federal e que foi ministro da
Justiça no governo de Bolsonaro.
Entretanto, o jornal Folha de São Paulo divulgou,
a 9 de janeiro, um áudio que parece confirmar a tese de Moraes relativamente a
Ibaneis Rocha, ao mostrar que as autoridades de segurança do
Distrito Federal negociaram com os bolsonaristas que invadiram a Praça dos Três
Poderes e informaram o governador de Brasília que fariam um ato pacífico na
Esplanada dos Ministérios.
A autoridade local disse que os bolsonaristas desciam de forma controlada
sob escolta policial do quartel-general do Exército para a Praça dos Três
Poderes, onde invadiram e causaram grande destruição nos edifícios públicos.
Porém, embora sob alerta para possíveis ataques às refinarias da petrolífera Petrobrás,
a Polícia Militar e o Exército foram desmantelando, por decisão
do juiz Alexandre de Moraes, os acampamentos montados
em frente ao Quartel-General do Exército e noutras unidades militares do país.
Os militares deram o prazo de uma hora aos bolsonaristas para deixarem o
acampamento em Brasília e a saída deles parecia estar a ocorrer sem
resistência, sendo que as informações mais recentes do Ministério da Justiça dão
conta de 1.200 pessoas detidas e a serem levadas para a sede da
Polícia Federal em, pelo menos, 40 autocarros.
Aquando da leitura do decreto em que ordenou uma intervenção federal em
Brasília, Lula da Silva – que se encontrava em Araraquara (São Paulo), para
avaliar os danos ali causados pela chuva – acusou o antecessor (sem dizer o
nome dele) de ter instigado a invasão: “Esse genocida não só provocou e
estimulou isso como, quem sabe, está estimulando ainda pelas redes sociais,
lá de Miami para onde ele fugiu, para não me colocar a faixa [presidencial].” E
foi mais longe, ao acusar a Polícia Militar do Distrito Federal de conivência
com os ataques: “Houve incompetência, má vontade ou má-fé de quem cuida da
segurança pública do Distrito Federal.”
Por sua vez, Jair Bolsonaro, que está nos EUA desde o final do ano passado,
agora internado, demarcou-se das invasões e repudiou as acusações do sucessor,
apontando que fazem parte da democracia manifestações pacíficas, dentro da lei,
mas que depredações e invasões de prédios públicos como os de agora, tal como
os atos da esquerda em 2013 e 2017, “fogem à regra”. Mais disse que, ao longo
do seu mandato, sempre esteve dentro das quatro linhas da Constituição
respeitando e defendendo as leis, a democracia, a transparência e a liberdade.
Também o líder do Partido Liberal, partido de Bolsonaro, publicou um vídeo
nas redes sociais a demarcar-se da “vergonha” que aconteceu em Brasília,
dizendo que os responsáveis pelo ataque às instituições em Brasília “não
representam” o antigo presidente.
De Marcelo Rebelo de Sousa a Joe Biden, a comunidade internacional condenou
a invasão e manifestou apoio ao poder legitimado nas urnas. “É de repúdio por estes atos inconstitucionais e ilegais a que
todos assistimos”, vincou o presidente português na noite do dia 8, em
declarações ao Jornal da Noite da
SIC, demonstrando “solidariedade total relativamente à legitimidade democrática
atribuída pelo povo brasileiro”. E, classificando o “atentado à democracia” no
Brasil como ultrajante, o Presidente dos EUA reiterou, no Twitter, o apoio às
instituições do país e reafirmou a vontade de “continuar a trabalhar com Lula”.
Também a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, considerou
a invasão ao Congresso, ao STF e ao Palácio do Planalto do Brasil um “ataque à
democracia” e reiterou o apoio a Lula da Silva. E o secretário-geral das Nações
Unidas, António Guterres, disse estar consternado com os
incidentes, mas considerou que “os brasileiros estarão à altura da situação”,
defendendo que deve haver consequências no Brasil e nas suas instituições.
O repúdio aos acontecimentos veio ainda da Rússia. O porta-voz do Kremlin,
Dmitry Peskov, disse que Moscovo apoia “absolutamente” o presidente brasileiro.
Sem prestar declarações, o presidente brasileiro visitou o Palácio do
Planalto, sede do Executivo, ainda no dia 8, para verificar os estragos feitos.
Um ministro e um deputado denunciaram que os apoiantes roubaram armas de
fogo guardadas no palácio presidencial, enquanto o gabinete de Lula da Silva terá ficado a salvo, graças ao sistema
de segurança próprio e aos vidros blindados.
Contudo, várias zonas do piso térreo do edifício, como a galeria dos
presidentes, foram vandalizadas, bem como outras áreas do segundo e terceiro
andares. O quarto andar, onde ficam as salas dos ministros e a Secretaria-Geral
da Presidência, não sofreu tantos danos.
Em nota conjunta divulgada no dia 9, Lula da Silva, os chefes do Congresso,
Rodrigo Pacheco (do Senado) e Arthur Lira (da Câmara de Deputados), e a
presidente do Supremo Tribunal, Rosa Weber, rejeitaram os “atos terroristas, de
vandalismo, criminosos e golpistas”. Ao mesmo tempo, foi entregue o pedido de abertura de comissão parlamentar de inquérito à invasão pela
senadora Soraya Thornicke, do partido União-MS, que já conta com o apoio de 22
dos, pelo menos, 27 senadores de que precisa para ir avante.
Em entrevista à Deutsche Welle Brasil,
o cientista político Christian Lynch afirma que a extrema-direita, que ainda
representará entre 10% a 15% da população, “assinou o seu atestado de óbito”
com estes ataques. E a tolerância do sistema político
para figuras da extrema-direita terá acabado com a invasão, que “vai recriar as
condições de estabilidade do sistema político”.
Lynch critica ainda a atuação das forças de segurança e de Ibaneis Rocha e
diz que Bolsonaro, do ponto de vista da liderança, “não está tão interessado no
eleitorado”, o qual só serve para tentar impedir a sua eventual prisão ou para negociar
a sua impunidade.
Ao nível económico, os ataques também terão consequências. Segundo a
agência de informação financeira Bloomberg, o receio de instabilidade política e social pesará no sentimento
dos investidores. O sentimento no mercado já tem estado negativo desde o
fim da segunda volta das eleições e a evolução dependerá do modo como o Governo
vier a reagir.
***
As pessoas e os partidos têm o direito de discordar
e de continuar a propor as suas ideias, mas de forma ordeira. Desacatos,
vandalismos, invasão de sedes de órgãos do poder não são toleráveis em
democracia, que postula o respeito pela vontade popular expressa nas urnas. A
democracia, além de sistema político, é um jogo, em que, ora se ganha, ora se
perde. Porém, deve colocar, acima de tudo, o interesse do país, o bem comum.
Por isso, a maioria, que manda, deve respeitar os direitos das minorias e
esbater as desigualdades. Mas a desordem suscita a repressão, que é inimiga da
sã democracia e da sujeição dos interesses privados ao interesse público.
Não basta que o Brasil seja um país grande, tem de
ser um grande país. E pode sê-lo.
2023.01.10 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário