Nuno Marques, editor-executivo-adjunto
do Jornal de Notícias (JN), na edição do dia 24 de janeiro, no artigo
de opinião sob o título “O orgulho que nos falta”, denuncia, como consequência do fraco, ou
até inexistente, “sentido de serviço público”, as crises governamentais, os processos
judiciais envolvendo titulares de cargos públicos, a insegurança nas ruas, os protestos
no setor da educação ou “o crescimento de movimentos populistas em Portugal”,
dizendo que todos estes fenómenos têm essa ligação comum.
De um modo geral, são raros os casos de líderes de empresas públicas ou maioritariamente
públicas, de autarcas ou de diretores-gerais ou de presidentes e institutos
públicos que são apanhados nas teias da Lei e nas malhas da Justiça. Porém, estando
no Governo ou mal saltando para a área da governação, alguma comunicação social
vem fazendo aquilo que as polícias ou justiça se esquecem de fazer ou são
incapazes de fazer, alegadamente por falta de meios ou por falta de denúncia.
Obviamente, agora é ou parece maior o número de casos de políticos ou de detentores
de altos cargos públicos que são apanhados e é maior o de casos situados na área
do Partido Socialista (PS). Fala-se de maior sensibilidade da opinião pública e
de maior capacidade de escrutínio, no que assinto. Porém, é não despiciendo o
facto de o PS ter obtido a maioria absoluta nas eleições legislativas, no
decurso da dissolução do Parlamento, tendo esquecido nós o que se passou com
outras maiorias absolutas do Partido Social Democrata (PSD), duas em que
governou sozinho e várias em que governou em coligação, bem como a maioria absoluta
do tempo de José Sócrates. E, se a memória não fosse curta, poderíamos lembrar
coisas que fizeram arrepiar os cabelos, por malévolas e inusitadas. Menciono apenas
alguns, a título de exemplo.
Recordo o caso da exoneração da chefe de segurança pessoal do primeiro-ministro
Sá Carneiro, que suscitou a demissão do tenente-coronel Aparício, comandante da
polícia de segurança pública (PSP) do comando metropolitano de Lisboa, e do general
Lopes da Neta, comandante geral, com quem se solidarizaram os oficiais do exército
que estavam destacados na PSP.
Na governação de Cavaco Silva, lembro um decreto do Parlamento, que entre
São Bento e Belém ganhou uma vírgula, que alterou o sentido do texto e terá beneficiado
alguns interesses instalados; e a febre do ataque judicial a Leonor Beleza,
então ministra da Saúde, a quem pretendiam assacar a responsabilidade pela contaminação
do sangue com o HIV, o célebre Fator VIII, e cujo secretário de Estado, Costa
Freire, foi apanhado nas teias da Lei e nas malhas da Justiça, por má relação com
a gestão dos dinheiros e das obras da Saúde.
Nos consulados de Durão Barroso e de Santana Lopes, foi dramaticamente caótica
a colocação dos professores, eclodiu, sem desfecho em Portugal, o caso dos submarinos
comprados na Alemanha e os ministros da tutela autorizaram corte de sobreiros
em barda, depois de os partidos da coligação terem perdido as eleições
legislativas subsequentes à dissolução parlamentar.
No tempo de José Sócrates, dizia-se à boca cheia que a comunicação social
era amordaçada, foi vergonhosamente privatizada a PT e o Ministério Público (MP)
encerrou o inquérito ao primeiro-ministro sobre o Freeport, deixando mais de seis
dezenas de questões por responder. E quem agora se espanta com as greves e manifestações
dos professores a exigir respeito, pelo britamento da dignidade da classe, pelas
progressões, pela divisão da carreira, pela caricata avaliação do desempenho e
pela sobrecarga burocrática, não tem memória das grandes manifestações em
Lisboa da ordem da centena ou mais entre 2005 e 2009, bem como das
manifestações nas capitais de distrito. Com uma diferença: então, a opinião
pública estava com o Governo; hoje, diz estar com os professores, só porque não
se gosta de António Costa.
No tempo de Passos Coelho, o primeiro-ministro foi apontado como devedor
às Finanças e à Segurança Social; e surgiu o caso da gestão criminosa ou de
duvidosa legalidade dos Vistos Gold.
Diz-se que o PS chama para o Governo, para os gabinetes ministeriais e
para as chefias dos diversos escalões da administração pública, pessoas do
aparelho partidário, gente da família, jovens sem experiência profissional. E
achamos muito mal. Porém, esquecemos que, sobretudo, a partir de 1987, o PSD passou
a fazer quase o mesmo.
Por tudo isto, nada me surpreendem os casos agora em cena na praça
pública. Surpreende-me que não tenha havido muitos mais casos levantados desde
1986 até agora, quer pelas autoridades, quer pela comunicação social. Muitos casos
eram badalados, alguns eram apontados em concreto, mas nada acontecia. Os
poderes estavam surdos.
Fala-se da indemnização conferida pela TAP a uma ex-administradora. Mas
não se faz inquérito sobre quanto ganham os antigos e os atuais administradores
e sobre que indemnizações foram atribuídas aos que saíram. O mesmo se poderá
dizer de outras empresas públicas ou em que o Estado tem participação
maioritária ou mesmo minoritária.
A Caixa Geral de Depósitos (CGD) teve de ser saneada, não por causa dos
clientes habituais, mas pelos desmandos cometidos pelas sucessivas administrações
em favor dos ditos grandes empresários da nossa praça. E, para ser convenientemente
saneada, foi preciso injetar dinheiros públicos, com autorização da Comissão
Europeia, e os administradores não estão sujeitos ao Estatuto do Gestor Público,
a não ser para efeitos de declaração de rendimentos e de património, mas ao
abrigo do Código das Sociedades Comerciais.
Querem dizer-nos quanto a ganham os administradores da CGD, que indemnizações
se pagaram aos que foram exonerados? É que nós já sabemos como é feita a reestruturação
milagrosa: despedimento (ou equivalente) de trabalhadores, encerramento de balcões,
aumento de juros (excessivo no crédito pessoal e equivalentes, moderado no
crédito à habitação), crescimento das taxas de manutenção de conta, redução dos
juros dos depósitos quase a zero, anulação dos juros de conta à ordem e
cobrança de qualquer serviço (levantamento ao balcão, depósitos ao balcão, etc.).
Tudo isto é um peso enorme para as pessoas de magros ou de muito magros
recursos.
E que dizer dos administradores e dos pivôs da RTP, a nossa empresa pública
de televisão?
Criticam-se as portas giratórias do privado para o público e vice-versa,
em nome de interesses, e os contratos, muitas vezes blindados, em que o Estado
é sempre lesado. Isso não é só de agora!
Tem razão o colunista do JN,
quando aponta: “Ao
longo dos quase 50 anos que vivemos após o Estado Novo, nunca conseguimos fazer
vingar um pilar fundamental da sociedade que pretendíamos criar e sobre a qual
tantas vezes nos vangloriamos. Anunciamos com orgulho a conquista da
democracia, a recuperação económica ou mesmo o aumento da literacia. Fomos até
capazes de criar um Serviço Nacional de Saúde que anunciamos como um grande
triunfo, porém nunca conseguimos olhar com orgulho para as pessoas que nele exercem
funções.”
E vai mais longe: “Os serviços públicos, sejam eles da área
da saúde ou das finanças, sejam as escolas ou as autarquias, são olhados com o
desdém com que se olha[m] os indolentes e preguiçosos. […] Foi esse desdém que
matou e continua a afundar o nosso serviço público, substituído muitas vezes
pela glória da pertença a grupos políticos. É por isso que continuamos a
encolher os ombros quando se noticiam mudanças nos dirigentes de serviços
públicos motivadas pelas cores partidárias. Encaramos com cada vez maior
normalidade que técnicos camarários atuem de acordo com os interesses do
partido que comanda a autarquia ou que inspetores tributários recebam ordens
para não incomodar as empresas, de forma a não aumentar a contestação política.”
Tudo isto vem de longe, mas parece que alguns só agora deram
conta do problema. O presidente da Câmara de Caminha pagou por adiantado (com o
consentimento do coletivo) 300 mil euros por obra não feita. Só foi este que
fez isso ou semelhante? Os de Espinho foram apanhados num caso de favorecimento
a um grupo imobiliário. Não me digam que é este o primeiro caso!
Tudo isto acontece porque, vergonhosamente falta o sentido de
serviço público, a dedicação ao serviço da comunidade, serviço que deve ser
compensado com um vencimento razoável e com algumas condições que permitam um
exercício sem mendicidade. Porém, usar o Parlamento, o Governo, a Administração
Central, a Administração Regional ou a Administração Local, as empresas
públicas ou aquelas em que o Estado tem participação e os institutos públicos,
é ignóbil. E, se a lei o permite, não dignifica o interesse público, inverte os
termos, colocando o bem da comunidade e o interesse dos mais frágeis sob a pata
de interesses particulares. Não merece ser a Lei. Não pode o Estado ser o clube
dos amigos, o pátio dos compadres, a açoteia dos familiares!
Percebo que a entrada na política ativa stricto sensu constitua uma mais-valia na teia de conhecimentos e
no capital de relação, podendo abrir algumas portas. Porém, aumentar abusivamente
o pecúlio pessoal e familiar, legal ou ilegalmente, à custa do bem público e
dos interesses dos mais pobres é insulto à comunidade e à miséria. É do pior
que pode suceder em política, seja da parte dos aparelhos partidários, seja dos
que são convidados para parlamentar ou para governar, seja dos juízes que têm a
missão de administrar a Justiça (como valor supremo do direito) em nome do povo.
E a culpa é nossa, que escolhemos mal e depressa, não exigimos que o Governo
governe, que o Parlamento legisle e fiscalize, com autoridade moral, que os juízes
julguem, que o chefe de Estado, em vez de ameaçar com a dissolução do
Parlamento (que nunca deveria ser arbitrária), equacione a hipótese de demissão
do Governo.
E deveríamos exigir que, ao menos, em tempo de crise, todos
os trabalhadores, sobretudo os mais qualificados, fossem obrigados, em nome do
serviço público, a trabalhar para o Estado num período de tempo razoável,
conforme a necessidade de serviço e com remuneração condigna. Não é legítimo
que, alegando a iniciativa privada e a liberdade de trabalho, se deixe ir o
país ao fundo.
2023.01.24 –
Louro de Carvalho
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