Nas últimas semanas, Pinchas Goldschmidt, ex-rabino-chefe de
Moscovo, em duas entrevistas órgãos de comunicação internacionais, apelou aos Judeus
que se encontram na Rússia: a que “deixem o país enquanto é tempo”, pois
aumentou o “antissemitismo governamental”.
Exilado, desde julho, em Jerusalém após recusar o apoio
à invasão russa da Ucrânia, Pinchas Goldschmidt diz que “há antissemitismo em
todos os lugares”, mas aponta a “grande diferença entre o que está a acontecer
no Ocidente e o que está a acontecer na Rússia”. E exemplificou: “Vimos o
governo a tentar fechar a Agência Judaica,
que tem sido uma das organizações mais importantes na ajuda a Judeus russos com
a educação informal e também com a imigração.” Depois, mencionou um ataque do
Conselho de Segurança Nacional contra a Chabad,
importante organização judaica na Rússia. E concluiu que, na Rússia, “estamos a
assistir ao retorno do antissemitismo como política de governo.”
Expressando a sua visão do problema, declarou à cadeia canadiana
CBC Radio, a 4 de janeiro: “Tenho
observado, no último mês, uma mudança, uma grande mudança, nos rumos que o país
tomou. O país passou de autoritário a mais totalitário. E a Cortina de Ferro,
que subiu no fim da União Soviética, está a cair e a abaixar-se diariamente. O antissemitismo
está de volta.”
Goldschmidt, atual presidente da Conferência Europeia de
Rabinos, tinha já declarado, a 30 de dezembro, ao jornal britânico The Guardian: “Quando olhamos para a História
da Rússia, sempre que o sistema político esteve em perigo, vimos o governo a
tentar redirecionar a raiva e o descontentamento das massas para a comunidade
judaica. Vimos isso nos tempos czaristas e no fim do regime estalinista.” E vincou:
“Passo a passo, a Cortina de Ferro está a voltar novamente. É por isso que
acredito que a melhor opção para os judeus russos é partir.”
O ex-rabino-chefe de Moscovo crê que, desde a invasão da
Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, entre 25 e 30 por cento dos 165
mil Judeus do país terão fugido ou planeiam fazê-lo.
No entanto, declarou à CBC
Radio que já “é extremamente difícil para os Judeus na Rússia deixar o país
para ir para o Ocidente. Para sair, é difícil conseguir um visto. É difícil
voar. É preciso voar através de um terceiro país. E tornou-se cada vez mais
difícil obter vistos para cidadãos russos nos países ocidentais.” Questionado
sobre se teme que estejam em risco as vidas dos judeus que permaneçam na Rússia,
respondeu que “não iria tão longe”, mas está preocupado com a possibilidade de,
talvez daqui a meio ano, não poderem já deixar o país.
***
O antissemitismo é
o preconceito, a hostilidade ou a discriminação contra os Judeus, embora
não sejam o único povo semita. Também os árabes têm origem semita, tal como outros
povos da antiguidade: Assírios, Babilónios, Arameus, Cananeus e Fenícios. Tido
como um tipo de racismo, exprime-se de vários modos, desde expressões
individuais de ódio e de discriminação contra indivíduos judeus até
violentos ataques organizados (pogrons),
políticas públicas ou ataques militares contra comunidades judaicas. Na modalidade
mais extrema, atribui aos judeus posição excecional entre as outras
civilizações, tendo-os como grupo inferior e negando a sua pertença à(s)
nação(ões) em que residem.
Entre os
casos mais violentos de perseguição, estão a chacina de 1066, em Granada,
os massacres na Renânia, prévios à Primeira Cruzada, de 1096, o édito de expulsão
da Inglaterra, em 1290, os massacres dos Judeus espanhóis, em
1391, as perseguições das inquisições espanhola e portuguesa, a expulsão
da Espanha, em 1492, a expulsão de Portugal, em 1497, o massacre
de Lisboa, em 1506, os massacres pelos Cossacos na Ucrânia de 1648 a 1657, pogrons no Império Russo entre 1821 e
1906, o caso Dreyfus em França (1894-1906) e o Holocausto na Alemanha
Nazi, replicado pelo Estalinismo, segundo alguns, e o envolvimento árabe e
muçulmano no êxodo judaico dos países árabes e muçulmanos.
Embora, etimologicamente,
o antissemitismo pareça direcionado aos povos semitas, o termo foi criado
nos fins do século XIX, na Alemanha, como alternativa, com
aparência mais científica, à Judenhass (aversão a judeus), sendo
utilizada amplamente desde então. E foi utilizado para expressar o ódio a
outros povos falantes de idiomas semitas, mas tal utilização já não é aceite.
Ora, pela
etimologia, antissemitismo quer dizer aversão aos semitas, descendentes bíblicos
de Sem, o filho mais velho de Noé. E é o grupo étnico-linguístico que abrange
os Hebreus. Porém, o termo antisemitismus foi cunhado, em
Alemão, quando a ciência racial estava na moda, e foi usado, a primeira vez, no
sentido de aversão aos judeus, pelo jornalista alemão, Wilhem Marr,
em 1873, por soar mais científico do que Judenhass. Alguns autores
preferem o termo judeofobia, a significar “aversão a tudo o que é
judaico”.
Para Helena
Fein, estudiosa do Holocausto, o antissemitismo é: “uma estrutura latente persistente de crenças
hostis em relação aos judeus como um coletivo, manifestada em indivíduos como
atitudes e na cultura como mito, ideologia, folclore e imagens, e em ações – discriminação
legal ou social, mobilização política contra os judeus e violência coletiva ou
estatal.”
Segundo Dietz
Bering, para os antissemitas, os Judeus
são “totalmente maus por natureza”, pelo que “os seus maus traços são
incorrigíveis”. Portanto, são vistos não como indivíduos, mas como um coletivo;
permanecem estranhos nas sociedades vizinhas; e trazem desastre às sociedades
de acolhimento e ao Mundo. E, como o fazem em segredo, os antissemitas desmascaram
o conspiratório e mau caráter judaico.
Para Sonja
Weinberg, o antissemitismo de hoje mostra inovação conceitual, recorrendo à
ciência, e novas formas funcionais e diferenças organizacionais. Foi
antiliberal, racialista e nacionalista; criou o mito de que os judeus queriam “judificar”
o Mundo; consolidou a identidade social; canalizou as insatisfações entre as vítimas
do capitalismo; e serviu de código cultural para combater a emancipação e o
liberalismo.
Bernard Lewis
define o antissemitismo como forma de preconceito, de ódio ou de perseguição a
pessoas, de alguma forma, diferentes das demais, marcada por duas
caraterísticas: os Judeus são julgados segundo um padrão diferente do aplicado
aos outros, e são acusados de mal cósmico.
Em 2005,
o Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia (European Monitoring
Centre on Racism and Xenophobia) desenvolveu uma definição, segundo a qual o antissemitismo é uma certa perceção dos Judeus,
expressa como ódio para com eles. Dirigem-se manifestações retóricas e físicas
do antissemitismo a indivíduos judeus ou não judeus e/ou à sua propriedade, a
instituições comunitárias judaicas, a instalações religiosas e ao Estado de Israel, concebido como
coletividade judaica. Porém, a crítica de Israel, semelhante à feita contra outros países, não é antissemita. Já,
por exemplo, negar ao povo judeu o direito à autodeterminação, alegando que o Estado
de Israel é um empreendimento racista, é uma manifestação de antissemitismo,
tal como aplicar critérios duplos, exigindo de Israel um comportamento não
esperado ou não exigido a outras nações democráticas, ou fazendo dos Judeus responsáveis
pelas ações do Estado de Israel.
Esta
definição, nunca oficializada, ganhou uso internacionalː foi adotada pelo
Grupo de Trabalho do Parlamento Europeu sobre Antissemitismo, pelo
Departamento de Estado dos Estados Unidos da América (EUA), pela Campanha
Contra o Antissemitismo e pela International Holocaust Remembrance
Alliance, tornando-se a mais amplamente adotada de antissemitismo no Mundo.
Muitos
fatores motivaram e fomentaram o antissemitismo, nomeadamente sociais, económicos,
nacionais, políticos, raciais e religiosos, ou combinações de todos ou alguns destes.
A ação de autoridades locais, de governantes e de funcionários da Igreja vetou
muitas ocupações aos judeus, permitindo-lhes, no entanto, as atividades de
coletores de impostos e emprestadores, o que sustenta as acusações de que os Judeus
praticam a usura. Por outro lado, a religião Islâmica e os países árabes incitam
manifestações contra a existência do Estado de Israel.
O mais
antigo caso de manifestações de antissemitismo é o de Elefantina, ilha do
Nilo, cerca de 410 a.C., onde egípcios revoltados contra o domínio persa
queimaram o templo da comunidade judaica. Porém, os primeiros casos claros de antijudaísmo
remontam ao século III a.C., em Alexandria, lar da maior comunidade
da diáspora judaica à época. Manetão, sacerdote e historiador egípcio,
escreveu mordazmente sobre os judeus. Segundo os seus escritos, o
antissemitismo ter-se-á originado no Egito e espalhado pela recontagem grega
dos antigos preconceitos egípcios. Fílon descreve um ataque mortal aos
judeus em Alexandria em 38 d.C.
O fenómeno
perpassou todas as épocas históricas. E, no século XXI, aumentou o
antissemitismo e as suas manifestações na Europa e no Mundo, o que foi sendo
observado em diversos relatórios anuais do Departamento de Estado dos EUA e por
outros governos, instituições, líderes mundiais e figuras públicas. A
Conferência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) sobre
antissemitismo, de abril de 2004, culminou com a Declaração de Berlim, segundo
a qual o antissemitismo assumiu novas
formas e expressões que, juntamente com outras formas de intolerância, ameaçam a
democracia, os valores da civilização e, portanto, a segurança geral. Hoje
o antissemitismo é transversal à extrema-esquerda, à extrema-direita, aos
moderados e aos islamitas, misturando a oposição a Israel, o sionismo
e a aversão aos Judeus. E emprega motivos antissemitas tradicionais, como
o libelo de sangue.
Robert L.
Bernstein, fundador da Human Rights
Watch, sustenta que o antissemitismo está profundamente enraizado e institucionalizado nos países
árabes, nos tempos modernos. Segundo a pesquisa realizada em 2011 pelo Pew Resarch Center, em todos os países
de maioria muçulmana do Médio Oriente, havia poucas opiniões positivas sobre os
Judeus. Os clérigos muçulmanos referem-se aos Judeus como descendentes de
macacos e de porcos, epítetos para Judeus e Cristãos. Os Judeus em vários
países da Europa estão em crescente fuga para Israel, dado o aumento constante
do antissemitismo e dos ataques terroristas islâmicos. Mais de 8 000
judeus deixaram a França em 2015. Os Judeus alemães e britânicos não
se sentem seguros. Todas as sinagogas, creches e escolas judaicas na
Alemanha estão sob proteção policial. A
migração muçulmana para os países da Europa traz o antissemitismo das suas
culturas e o apelo a ataques pelo ISIS aumentou o medo nas comunidades
judaicas.
A pesquisa
da União Europeia (UE) em 2013 revelou que 74% dos Judeus franceses têm medo de
ser atacados pela sua religião e evitam ser identificados. E, a 23 de março de
2018, Mireille Knoll de 85 anos, sobrevivente do Holocausto, foi
assassinada no seu apartamento em Paris.
O antissemitismo nunca foi tão forte como na contemporaneidade:
foi racionalizado para ser função exclusiva do Estado e nunca foi tão
escondido. Hoje o mundo tem uma conscientização coletiva sobre todos os
tipos de preconceito existentes e o espaço para o antissemitismo ficou escasso
e vergonhoso para quem o usa. Os Judeus são comparados por Hitler a germes de
doenças infeciosas transmissíveis, como os bacilos da tuberculose. Por
isso, o antissemitismo, além das formas clássicas, apresenta, hoje, duas novas
formas: a retroativa e a descaraterizada. A primeira, acusando o povo Judeu de causar
mal aos outros, cria um ambiente propício para desenvolver o ódio aos Judeus
sem culpa; e a segunda acusa os judeus de criarem a sua própria perseguição no Holocausto
ou em outros eventos, com o propósito de dominar o mundo.
***
Tem razão Pinchas Goldschmidt no
apelo aos Judeus russos, mas a judeofobia, como outras formas de racismo, está
em todo o lado. E não se pode emigrar para a Lua ou para Marte. Resta a
vigilância e o espírito combativo.
2023.01.07 –
Louro de Carvalho
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