A Liturgia da Palavra do 2.º domingo do Tempo
Comum no Ano A insta a que situemos a temática da vocação no âmbito do desígnio de Deus para os homens e para o mundo.
Deus quer oferecer a vida plena aos homens e, para tanto, escolhe pessoas para
testemunhas do seu projeto na história.
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Na primeira
leitura (Is 49,3.5-6), surge uma personagem misteriosa, o Servo de Javé, a
quem Deus elegeu, desde o seio materno, para sinal no mundo, com a missão de
levar aos povos de toda a terra a Boa Nova do projeto libertador.
O Deuteroisaías
é um profeta do exílio que profetizou na Babilónia, entre os exilados. A sua
mensagem – de consolação e de esperança – vem plasmada nos capítulos 40-55 do
Livro de Isaías. Porém, nesses capítulos, sobressaem quatro textos (Is 42,1-9;
49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12), em termos literários e temáticos. São os cânticos
do Servo de Javé, em torno de um misterioso servo de Deus, a quem Javé confiou
uma missão concreta, a cumprir no sofrimento e nas perseguições, daí resultando
a redenção para o Povo e, como recompensa, a exaltação do Servo por Javé.
Esta dominga
propiciou-nos um trecho do segundo cântico do Servo de Javé, em que o Servo é identificado
com Israel, o Povo de Deus, chamado a ser testemunha de Javé no meio dos outros
povos. Nestes termos, a profecia antecipa a vocação ao sofrimento redentor e ao
testemunho apostólico-missionário. Não basta apregoar de modo que se veja e ouça
ao longe, é preciso ir ao encontro levar a luz do testemunho e da mensagem, a
todas as nações, a todas as pessoas.
O trecho em referência
abre como uma declaração solene do Servo “às ilhas” e “às cidades longínquas”.
Nesta declaração, o Servo manifesta a consciência da sua eleição: foi escolhido
por Deus desde o seio materno, o que releva a origem de toda a vocação
profética. Na verdade, é Deus que escolhe, que chama, que envia. Ninguém se
voluntaria ou autocandidata à profecia.
Assim, a
declaração do Servo alude às origens do Povo, à eleição e à aliança: Israel
existe porque Deus o escolheu entre todos os povos, revelou-lhe o seu rosto,
constituiu-o como Povo, libertou-o da escravidão, conduziu-o pelo deserto e
estabeleceu com ele uma relação de comunhão.
A missão do
Servo é, antes de mais, reconduzir Jacob e tornar a unir Israel a Javé, o que se
concretizará, a curto prazo, no regresso do Povo à órbita da aliança (rompida
pelo pecado do Povo), à reunião dos exilados e ao regresso à Terra Prometida.
Depois, como a eleição e a aliança postulam a missão e o testemunho, a missão
do Servo é ampliada “às nações”, ou seja, Israel deve dar testemunho da salvação,
de modo que ela chegue, por meio do Servo/Povo aos homens e mulheres de toda a
terra. A grandiosidade da missão contrasta com a situação de opressão e de
fragilidade os exilados, evidenciando-se que é Deus quem age no mundo e salva,
quase sempre através dos mais pequenos e humildes.
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O Evangelho
(Jo 1,29-34) apresenta Jesus, “o Cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo”, que veio ao nosso encontro, investido de uma missão pelo Pai,
a missão em libertar os homens do “pecado” que oprime e não deixa ter acesso à
vida.
A perícopa
em causa integra a secção introdutória do Quarto Evangelho (Jo 1,19-3,36), em
que o evangelista responde à pergunta: “Quem é Jesus?”
As diversas
personagens que vão entrando em cena tentam apresentar Jesus. Um a um, os
atores fazem afirmações cheias de significado teológico sobre Jesus. O quadro final
que resulta destas intervenções apresenta Jesus como o Messias, o Filho de
Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer surgir
o Homem Novo, nascido da água e do Espírito.
João Batista,
o percursor do Messias, desempenha papel especial na apresentação daquele que
chega e apresenta-O aos homens (testemunha-O no início e no fim da secção).
Como não se assinala o auditório, o testemunho de João é perene, dirigido aos
homens de todos os tempos e com ressonância permanente na comunidade cristã. João
é, pois, o apresentador oficial de Jesus.
A catequese
sobre Jesus, aqui, expressa-se em dois enunciados com profundo impacto
teológico: Jesus é o Cordeiro de Deus (ho
amnós toû Theoû), o que tira o pecado do mundo (tên hamartían toû kósmoû); e é o Filho de Deus que possui a
plenitude do Espírito.
A primeira
asserção evoca duas imagens veterotestamentárias sugestivas: a imagem do “servo
sofredor”, o cordeiro levado para o matadouro, que assume os pecados do seu
Povo e realiza a expiação; e a imagem do cordeiro pascal, símbolo da ação
libertadora de Deus em favor de Israel. Ambas sugerem que a pessoa de Jesus vem
com a missão messiânica da libertação dos homens. O núcleo essencial da sua
missão é eliminar “o pecado do mundo”.
O termo
“pecado” aparece no singular (hamartía).
Não designa os “pecados” (hamartíai) que
os homens cometem em concreto, mas o “pecado” único que oprime a humanidade
inteira, a recusa da vida com que Deus, desde sempre, quis presentear a
humanidade. E o “mundo” designa, no Evangelho de João, a humanidade que resiste
à salvação, reduzida à escravidão e que recusa a luz/vida que Jesus lhe
oferece. Ora, Deus propôs-se tirar a humanidade da escravidão em que esta se
encontra; enviou ao mundo Jesus, com a missão de realizar um novo êxodo, que
leve os homens da terra da escravidão para a terra da liberdade.
A segunda
asserção completa a anterior com elementos bem sugestivos. O “cordeiro” é o
Filho de Deus, recebeu a plenitude do Espírito e tem por missão batizar os
homens no Espírito.
Dizer que
Jesus é o Filho de Deus quer dizer que Ele é o Deus que Se faz pessoa como nós,
que vem ao encontro dos homens, que arma a sua tenda no meio dos homens, a fim
de lhes oferecer a plenitude da vida. A sua missão consiste em eliminar “o
pecado” que torna o homem escravo e que o impede de abrir o coração a Deus e
aos irmãos.
O facto de o
Espírito descer sobre Jesus e de permanecer sobre Ele sugere que Jesus possui
em absoluto a plenitude da vida de Deus, toda a sua riqueza, todo o seu amor.
Por outro lado, a descida do Espírito sobre Jesus é a sua investidura
messiânica, a sua unção (“messias” ou “cristo” = “ungido”). O quadro leva-nos
aos textos do Deuteroisaías, onde o “Servo” aparece como o eleito de Javé,
sobre quem Deus derramou o seu Espírito, a quem ungiu e enviou para “anunciar a
Boa Nova aos pobres, para curar os corações destroçados, para proclamar a
libertação aos cativos, para anunciar aos prisioneiros a liberdade” (Is
61,1-2). Jesus é Aquele que batiza no Espírito Santo. O verbo “batizar” (baptízein) tem, em Grego, duas
traduções: submergir e empapar (como a chuva empapa a terra); refere-se, em
todo o caso, ao contacto total entre a água e o sujeito. “Batizar no Espírito”
significa, pois, o contacto total entre o Espírito e o homem, a chuva do
Espírito a cair sobre o homem e a empapar-lhe o coração. Portanto, a missão de
Jesus consiste em derramar o Espírito sobre o homem; e o homem que adere a
Jesus, empapado do Espírito e transformado por essa fonte de vida, abandona a
experiência da escuridão (pecado) e alcança a plenitude da vida.
Nestes
termos, a declaração do Batista é o convite aos homens de todos tempos e de
todos os lugares a voltarem-se para Jesus e a acolherem a libertação que Ele
oferece em nome do Pai: só a partir do encontro com Jesus é possível chegar à
vida plena, à meta final do Homem Novo.
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Por fim, na segunda
leitura (1Cor 1,1-3), Paulo afirma-se vocacionado (klêtós) a recordar aos cristãos da cidade grega de Corinto, como o
fez a outros, que todos eles são, por Deus, “chamados (klêtoí) à santidade”, ou seja, a viverem comprometidos com os
valores do Reino.
No decurso
da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar
boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52). Segundo At
18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de
judeo-cristãos. Ao sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada de
Silvano e Timóteo a Corinto, Paulo passou a dedicar-se totalmente ao anúncio do
Evangelho. Mas, tendo entrado em conflito com os judeus, foi expulso da
sinagoga.
Corinto,
cidade nova e próspera, era servida por dois portos de mar e possuía as caraterísticas
das cidades marítimas, com população de todas as etnias e religiões. Era a cidade
do desregramento para os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo, ávidos de prazer,
após meses de navegação. No tempo de Paulo, comportava cerca de 500.000
pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns
contrastava com a miséria da maioria.
Em resultado
da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã. A maior parte dos seus membros
era de origem grega, em geral, de condição humilde, mas também havia gente de
origem hebraica.
A comunidade
era viva e fervorosa, porém estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto:
moral dissoluta, querelas, disputas, lutas, sedução da sabedoria de origem pagã
revestida de superficial verniz cristão. Era uma comunidade vigorosa, mas a mergulhar
as raízes em terreno adverso, em que ressaltam as dificuldades da inserção da
fé cristã num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por valores que
estão em contradição com o Evangelho.
Paulo começa
a carta com a saudação e a ação de graças, típicas das cartas paulinas. Na
saudação, prenhe de conteúdo teológico, o apóstolo vinca a sua condição de
escolhido por Deus (apóstolo, em Grego, apóstolos),
revestido de autoridade para proclamar com plena garantia o Evangelho. Tal reivindicação
sugere que havia ali quem punha em causa a sua autoridade apostólica e testemunho.
Os destinatários da carta são os membros da comunidade cristã de Corinto. Não
obstante, a mensagem serve para os cristãos de todas as épocas e de todas as
latitudes. Com efeito, a boa nova não conhece peias e os problemas dali e de
então são os daqui e de agora.
O vocábulo “apóstolo”
assume lugar especial: Paulo foi chamado (klêtós)
por Deus a ser apóstolo (apóstolos),
e os coríntios são comunidade de chamados (klêtoí)
à santidade. Transparece, como em Isaías, que Deus tem um plano de salvação
para os homens e para o mundo e que todos – Paulo e os cristãos – são chamados
ao compromisso com esse plano. E é isso que os torna santos.
No contexto
paulino, os santos são todos os que acolhem a proposta salvífica de Jesus e
aceitam os valores evangélicos. Os santos são os “separados”: os coríntios são
santos porque, ao aceitarem Jesus, escolheram viver separados do mundo.
“Separados” não significa “alheados”; mas a viver de acordo com valores e
esquemas diferentes dos do mundo.
A palavra “klêtos” (chamado) supõe Deus como
sujeito: foi Deus quem chamou Paulo; é Deus quem chama os coríntios. Mais uma
vez fica claro que o chamamento provém da iniciativa divina e que só se
compreende a partir de Deus e à luz da ação de Deus.
Por força do
Batismo, que nos configura com o Cristo morto e ressuscitado, que subiu aos
Céus, todos os seguidores de Cristo são, cada um segundo a sua condição, vocacionados
(klêtoí) a participar no sofrimento e
nas alegrias messiânicas, bem como nas suas consequências apostólicas e
missionárias, servindo de luzeiros, de guias e de apoio nesta peregrinação terrestre
rumo ao Céu.
2023.01.16 – Louro de Carvalho
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