No ano de 1987, boa parte das suas crianças, em Bissau, não frequentava a
escola e o jovem catequista de 18 anos, Raul Daniel da Silva, quis saber a
razão. A resposta foi simples: não havia lugar para elas, pois a rede escolar
deixada pelos portugueses em Bissau era exígua.
Assim, a solução foi simples: se não há lugar na escola, cria-se uma escola
com uma sala para os alunos do 1.º ao 4.º anos. As paredes são de crintim (canas de bambu ao alto tecidas
com fibras de palmeira) e o processo replicou-se sucessivamente. Passados quase
36 anos, a Cooperativa Escolar de S. José tem 62 salas para mais de 3.200
alunos, do jardim de infância ao 12.º ano, com 183 profissionais (professores e
outros funcionários), em três centros escolares: Mindará, Cuntum e Jericó, em
Bissau. E Raul Silva, diretor da cooperativa, não se envolve em qualquer
partido político, nem compra apartamento na Europa, pois, como diz, se está em
Bissau, não faz sentido comprar apartamento na Europa; se tiver dinheiro,
construirá no seu país.
Em entrevista ao jornal digital 7margens,
publicada a 8 de janeiro, conta como tudo aconteceu. Era catequista de muitas
crianças na paróquia de Santo António do Bandim, em Bissau, e descobriu que
muitos não iam à escola. Como gostava de trabalhar com as crianças, pesquisou e
descobriu que o aparelho colonial dos portugueses, quando saíram da
Guiné-Bissau, não era suficiente para receber todas as crianças em idade
escolar. Então, recrutou colegas catequistas e construíram uma barraca em
Mindará e as crianças vinham de toda a parte. Cada uma trazia, de casa, à
cabeça um banquinho para se sentar e escrevia sobre as pernas.
Como o bairro de onde vinham mais crianças era Cuntum, fez-se ali a
cooperativa, pois uma pessoa sozinha não é suficiente para fazer funcionar uma
escola: é uma coisa social. Ao invés da mentalidade de dar à escola o nome do
fundador, esta nunca teve o nome do fundador, nem o catequista diz a ninguém
que a escola é sua, dado que resulta do esforço de todos. Construiu-se a escola
em Cuntum, que começou em crintim. E, depois, foi-se construindo o edifício em
adobe e verificou-se a necessidade de fazer carteiras.
Em 1992, a Fundação João XXIII, de Portugal, deu algum dinheiro, veio um
grupo de jovens que ajudou a comprar materiais (cimento, chapas de zinco…),
cobriu-se a construção e fez-se o pavimento. O bispo D. Settimio Arturo
Ferrazzetta (1924-1999) apoiou com alguns materiais. E, à medida que os pais
iam pagando a mensalidade, gastava-se gradualmente o dinheiro na melhoria da
escola. Em 2016, demoliu-se essa escola e construiu-se a que existe hoje, em
Mindará, com apoio do crédito bancário que se negociou.
O nome S. José tem a ver com o facto de o catequista, sendo religioso, não ter
querido dar à escola um nome provindo da luta de libertação. Como S. José tem
sempre uma criança e eles abraçam todas as crianças, “ficou assim”.
O catequista foi sempre professor e gostou de o ser, mas deixou, há pouco,
tal mister, para atender às funções de direção e para participar na formação
dos professores. Frisa que não foi formado no ensino superior, tendo concluído
apenas o 9.º ano. E, quando tinha aquela escola, com tantas crianças, não podia
ir à escola e deixar as crianças sem direção. Tornou-se leitor e passou a
contratar formadores, pedagogos, para darem formação aos professores e ao próprio,
que estava também na escola. E, com tantos anos de serviço e de pesquisas sobre
grandes pedagogos, como Paulo Freire, Jean Piaget e outros, julga estar em
condições.
A explicar a opção pelo
modelo de cooperativa, o diretor contesta que as escolas tenham o nome dos
fundadores e donos, porque não se julga
“dono das crianças, nem dos professores, nem dos funcionários” e “cooperativa
era uma forma de dizer ação coletiva com as leis das nossas [três] escolas a
serem aprovadas por nós”. Ainda em outubro de 2022, a direção da escola e os pais
e encarregados de educação aprovaram, em reunião, o calendário para o ano
letivo 2022-23. Nada de relevante é ideia de uma só pessoa, mas resulta da
opinião das várias pessoas.
E Raul Silva explana: “Esta é a razão de ser de uma cooperativa, para que
tenha a participação e as ideias de mais pessoas. Nós, para termos um plano
político-pedagógico, precisamos de levá-lo a uma assembleia. Através da
cooperativa já temos uma assembleia, que denominamos conselho diretivo. Nele
participam representantes dos alunos, dos pais e encarregados de educação, dos
professores dos diferentes blocos [os três centros escolares] e convidados que
nos possam ajudar no tema que nós vamos discutir.”
Sobre a posição da sua
cooperativa no panorama escolar do país, recusa-se a fazer um juízo pessoal,
deixando a avaliação para as outras pessoas. Porém, sabe que fazem comparação
entre a S. José e o Liceu João XXIII (da
diocese), sendo que, em termos organizativos, uns colocam o liceu (onde ele próprio
estudou) acima da S. José, enquanto outros pensam o contrário.
Quanto ao que representa este projeto no
panorama oficial e à relação com a diocese, sublinha o indispensável
apoio do governo, através do Ministério da Educação Nacional, vincando que, em
1991, o governo aprovou um decreto em que reconhece não ter condições de
atender todas as crianças em idade escolar, pelo que dá licença a uma pessoa
particular ou coletiva para criar uma escola, embora defina as regras a
observar. Assim, a S. José tem licença, alvará e inspeção. É escola particular,
com ensino validado pelo Estado, senão não teria certificado válido.
O governo está com problemas nas escolas oficiais, devido aos sindicatos,
que fazem sucessivas greves, quebrando o ritmo das escolas estatais. Em termos
de oferta, vêm logo a seguir às escolas estatais, as da diocese, que implantou
escolas em quase todo o território nacional. Onde há missão católica, há escola
e saúde. Os dirigentes da cooperativa integram a Comissão Diocesana do Ensino.
A cooperativa tem autonomia, mas, sendo escola de inspiração religiosa, conforme
a orientação da diocese, cumpre algumas regras. Por exemplo, a diocese
introduziu a disciplina de Iniciação à Vida e a cooperativa é obrigada a
lecioná-la. Porém, divide as coisas: de segunda-feira a sexta-feira, a escola é
laica, com católicos, protestantes, muçulmanos, animistas, sem diferença entre
cor, religião, etnia, nada; ao sábado e ao domingo, a escola é reservada à
catequese, vindo grande quantidade de crianças.
A seguir, Raul Silva fala do percurso destes quase 36 anos de escola.
Jovem pobre, vendo crianças sem escola, sentia a necessidade de dar a sua
contribuição. O sonho era implantar a escola nas localidades em que não havia
escola pública. Mas não havia meios financeiros. Em muitas aldeias ou tabancas,
não há escola. As crianças, para terem escola, andam sete, oito, 15
quilómetros, ida e volta, por dia. Algumas tabancas organizam-se, constroem a
sua escola comunitária e colocam lá pessoas que estudaram na S. José (fizeram o
12.º ano, ou o 11.º ou o 9.º ano). E, como não têm condições de continuar a
estudar, voltam para a tabanca e servem de professores, mas sem experiência
pedagógica. Na região de Oio, a mais próxima de Bissau, a S. José
trabalha com 18 escolas comunitárias, dando formação e assistência
técnico-pedagógica aos jovens e apoio à população para livros. Para isto, põe combustível
nos carros, leva formadores, paga-lhes, dá-lhes de comer e gasta alguns
consumíveis. Não tem apoio financeiro para isso, pelo que retira verbas do seu orçamento.
Lamenta não ter meios para responder às muitas solicitações de apoio de escolas
comunitárias e para alargar o apoio a toda a gente.
É claro que nem tudo corre da melhor maneira. Por vezes, as escolas
comunitárias funcionam sem carteiras. Em 1992, o governo deu às ONG e a outras
entidades isenção na importação de materiais para o seu trabalho, mas tal foi
suspenso por um despacho temporário. S. José tem três contentores da Fundação
João XXIII com carteiras e com material de saúde para desalfandegar, desde agosto,
sem despacho de isenção. Vai-se terminar a construção da escola
de Cuntum e tentar colocar lá educadores de infância e professores. Vai começar
a formação de educadores de infância e de professores do ensino básico. As
escolas de formação de professores já têm problemas, com greves sucessivas e com
reclamações de professores. Se não se fizer a formação, não haverá professores
formados com boa capacidade para dar aulas.
Todos os anos, antes do início das aulas, há OTP (Organização
Técnico-Pedagógica) ou seja, um seminário de preparação dos professores. Uma
vez por mês, há comissões de estudo: no primeiro sábado, faz-se uma sessão
coletiva e, depois, os professores de cada área partilham o que vão dar no mês.
Os conteúdos são iguais. Produzem-se os livros a entregar aos alunos e todos os
alunos e professores da mesma disciplina ou área curricular dão o mesmo. Os
livros são vendidos, mas os pais vão pagando segundo as suas possibilidades:
ninguém fica sem livro por não poder pagar. Já foi lançado o transporte escolar
para alunos e professores. E há a rádio escolar, com dois jornalistas
profissionais (o resto são alunos). “Foi a primeira rádio escolar do país”.
Sobre o papel da associação
de pais, diz que, havendo
qualquer programa a aprovar, chama-se o conselho diretivo, que a associação
integra. Por exemplo, para aumentar as mensalidades, dialoga-se com a
associação de pais, explicam-se os motivos e eles explicam aos outros pais,
para não haver surpresa. Depois, numa “mesa”, aprova-se. Decide-se em diálogo.
Nunca decide um só.
No atinente à sua aprendizagem deste tipo de trabalho, confessa que é
sempre a pessoa que encabeça a organização. Fundou o primeiro grupo paroquial
de adolescentes da diocese, a primeira cooperativa escolar da Guiné-Bissau,
exemplo para as muitas que já existem. Agora, há muitas, mas esta foi a primeira.
Porém, frisa que “não somos donos de nós mesmos e sozinhos não somos nada”. E
diz que este trabalho tem a ver com a sua natureza de partilhar o que tem: “É
isso que me dá força para trabalhar. Além disso, ver pessoas, como as da
Fundação João XXIII, que dão de si, pagam o avião e vêm de Portugal apoiar-nos,
isso dá-me força.”
Pensa que, para o futuro, é preciso criar condições para os jovens não terem
de ir estudar para fora. Para tanto, é preciso haver ali universidades capazes
de responder às necessidades dos jovens, de lhes inspirar confiança, que tenham
ensino de qualidade e façam com que os jovens saiam preparados para o mercado
de trabalho igual ao Senegal, a Marrocos, a Portugal.
Revela que vários partidos políticos o quiseram ter como filiado, mas que
prefere trabalhar como cidadão, que ama o país e que o quer ver a avançar, pois
não é preciso ser político para fazer algo pelo país. Em eleições, sabe em quem
votar, porque estuda os programas. Recusa, como ficou dito, comprar apartamento
na Europa e, se tiver dinheiro, comprará no seu país.
Critica a central elétrica, que ora dá luz, ora não dá, os buracos nas
estradas, apesar do imposto para o Fundo Rodoviário, e o despesismo dos
políticos. E, perguntando “onde é que os políticos põem esse dinheiro”, pensa
que “tem de haver outra geração que faz a gestão do dinheiro”, a que se forma
na S. José, com nova mentalidade, com consciência da cidadania.
Eis o trabalho e as aspirações de um cidadão livre, líder de cabeça e de coração!
2023.01.13 – Louro de Carvalho
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