Com a tomada
de posse, a 4 de janeiro, da Comissão Eventual de Revisão (CER), a Assembleia
da República (AR) assume poderes constituintes, 18 anos após a última revisão
constitucional.
A
Constituição da República Portuguesa (CRP) resultou da discussão e saiu da pena
dos deputados da Assembleia Constituinte, eleita a 25 de abril de 1975, na que
foi a mais participada eleição da democracia. Foram às urnas escolher 250 deputados 91,7% dos eleitores portugueses.
Entre os constituintes eleitos, contavam-se, por exemplo, Mário Soares, Manuel
Alegre, António Arnaut, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sá Carneiro, Francisco
Pinto Balsemão, Jorge Miranda, Álvaro Cunhal, Jerónimo de Sousa, Diogo Freitas
do Amaral ou Adelino Amaro da Costa (embora Cunhal, por exemplo, não tenha exercido
o mandato, enquanto Soares saiu e voltou). Os trabalhos prolongaram-se por dez
meses, após o que a Assembleia Constituinte se dissolveu. A CRP – aprovada e
promulgada, a 2 de abril de 1976, e em vigor, desde 25 de abril, dia das primeiras eleições legislativas – obteve os votos favoráveis do Partido
Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD), do Partido Comunista
Português (PCP), do Movimento Democrático Português / Comissão Democrática
Eleitoral (MDP/CDE), da União Democrática Popular (UDP) e da Associação de
Defesa dos Interesses de Macau (ADIM). Só o Partido do Centro Democrático
Social (CDS) votou contra.
A CRP organiza-se
em Princípios fundamentais e 4 partes
– Direitos e Deveres Fundamentais, Organização Económica, Organização do Poder Político e Garantia e Revisão da Constituição – e sofreu sete revisões: em 1882, em 1989, em 1992,
em 1997, em 2011, em 2004 e em 2005.
Em 1982, é
concluído primeiro processo de alteração do texto originário, na que se
considera a revisão constitucional de maior alcance: desmilitarizou o regime e limitou os poderes do
Presidente da República (PR).
Foi extinto o Conselho de Revolução (CR) e surgiu, no seu lugar, o Conselho
de Estado, como órgão consultivo do PR, e o Tribunal Constitucional (TC), para
apreciar a constitucionalidade dos diplomas legislativos. O CR perdeu poderes
para a AR e a demissão do Governo pelo chefe de Estado só é admitida para
assegurar o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Esta revisão
deu também maior espaço à iniciativa
privada.
Em 1989, consolidou-se o rumo para a
liberalização económica, que se iniciara em 1982. Com Aníbal Cavaco Silva como
líder da primeira maioria absoluta do PSD, a segunda revisão
constitucional pôs fim à
irreversibilidade das nacionalizações do pós-25 de Abril, abrindo
caminho às reprivatizações. Foi atenuado o domínio estatal da economia e
terminou a Reforma Agrária. Por outro lado, esta revisão introduziu na Lei
Fundamental a possibilidade de referendo.
O ano de 1992, três anos após a última revisão ordinária, trouxe uma revisão
extraordinária, com vista a adaptar o
texto da CRP ao Tratado de Maastricht e a estipular que o Banco de Portugal (BdP),
“como banco central nacional, colabora na definição e execução das políticas
monetária e financeira e emite moeda, nos termos da lei”, ficando sem o monopólio da emissão de moeda.
Em 1997, procedeu-se a nova revisão constitucional, para adaptar o texto a novo tratado europeu, agora o
Tratado de Amesterdão. Mas a quarta revisão constitucional consagrou também
outras alterações, nomeadamente no sistema eleitoral: admite a criação de
círculos uninominais e a redução do
número de deputados até aos 180 (o que não se verificou até agora); cria a figura da iniciativa
legislativa dos cidadãos e a possibilidade de candidaturas independentes às autarquias;
os emigrantes votam nas eleições para a Presidência da República; e introduz-se
a obrigatoriedade do referendo para regionalização.
O ano de 2001 trouxe a quinta
revisão constitucional (extraordinária), com o objetivo de permitir a
ratificação, por Portugal, da Convenção
que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI), alterando as regras de
extradição. A revisão foi aprovada por PS, PSD e CDS, com os votos
contra do PCP, do Bloco de Esquerda (BE) e do Partido Ecológico “Os Verdes”, a
que se somaram, na bancada do PS, três votos contra (Manuel Alegre, José
Medeiros Ferreira e António Marques Júnior) e uma abstenção (Helena Roseta).
Em 2004, procedeu-se à revisão que
consagra o princípio da não discriminação em função da orientação sexual e que alarga
o princípio da limitação dos mandatos dos titulares de cargos políticos
executivos. Esta revisão traduz-se também em maior autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira,
que veem aumentados os poderes das suas Assembleias Legislativas. É
eliminado o cargo de Ministro da República, que é substituído pelo de
Representante da República. Porém, o motivo da revisão foi a adequação ao
quadro da União Europeia (UE).
Por fim, em
2005, foi concluída a 7.ª revisão constitucional (extraordinária), que se
traduziu no aditamento de novo artigo, permitindo a realização de referendo sobre a aprovação de
futuros tratados que visem a construção e o aprofundamento da UE. A
alteração visava a Constituição Europeia, assinada em Roma, a 24 de outubro de
2004, mas que não chegou a ser referendada.
Em 2010, foi
aberto novo processo de revisão, que não foi concluído, dada a demissão do
Governo, em março de 2011, e posterior dissolução da AR.
***
A CER, ora
em funções, que vai discutir a 8.ª revisão constitucional, debate-se com oito
projetos de revisão, apresentados por todos os partidos com assento parlamentar
que, no conjunto, alterariam mais de metade da Constituição, se fossem todos
aprovados. A maioria das propostas ficará, provavelmente, pelo caminho, mas há pontos
de convergência entre o PS e o PSD que abrem portas a entendimento. Com efeito, há 14 artigos com propostas de alteração comum entre o
PS e o PSD. E, embora nem todas sejam convergentes, há espaço para um entendimento
entre socialistas e socialdemocratas, podendo figurar como primeiro grande
acordo desde 2005
O processo
de revisão em curso foi lançado, em outubro, pelo Chega, iniciativa que recebeu
críticas da esquerda à direita. Porém, como o PSD também avançou, todos os outros
partidos apresentaram propostas, com o secretário-geral do PS a vincar que “não
interessa como começa” o processo, mas “interessa como acaba”. Para já, a CER
terá um período de trabalho de 90 dias, que pode ser prorrogado.
O partido
que avança com a proposta de revisão mais alargada é o PSD, que propõe alterar
71 artigos da Lei Fundamental, acrescentando cinco novos. O PCP quer alterar
68. O Chega pretende alterar 63 pontos. O Bloco de Esquerda (BE) avança com 40
alterações e com dois artigos novos. A Iniciativa Liberal (IL) propõe a alteração
de 35 artigos e dois aditamentos. O Partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN)
quer mudar 23 artigos. O Livre 20 quer também mudar 20 artigos e acrescentar
dois novos. E o PS avança com 20 propostas de alteração e com um aditamento.
São vários
os partidos que avançam com a eliminação total de artigos da CRP, mas há um que
se destaca: a IL quer retirar 13 artigos e umas quantas alíneas de mais uma
dezena de pontos. O Chega e o PCP propõem a eliminação de cinco, dois deles
comuns. O Chega quer a reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de
Abril de 1974. O PCP quer a incriminação e o julgamento dos agentes e
responsáveis da PIDE/DGS e a eliminação do artigo que possibilita o referendo sobre
tratados europeus. O PSD propõe a eliminação de cinco artigos. E o PS é o que
pretende a revisão mais minimalista.
Há um artigo da CRP que praticamente todos querem
alterar. Só o Livre é que não tem proposta de alteração. É o artigo 64.º,
dedicado à Saúde. Há uma mudança praticamente certa, tal é o espetro alargado
das propostas: onde a Constituição institui que “incumbe prioritariamente ao
Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua
condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de
reabilitação”, todas as propostas acrescentam a medicina paliativa, e algumas a
medicina reprodutiva e a saúde mental. As demais alterações são divergentes,
com a direita a sublinhar o papel dos privados no sistema de saúde e a esquerda
a propor o contrário.
Outro que recolhe quase o pleno, com
exceção da IL, é o artigo 66.º, dedicado ao ambiente e à qualidade de vida. Com
formulações diferentes, os objetivos são comuns, pelo que também aqui é
admissível um acordo. E o mesmo se diga do artigo 35.º, em que os partidos querem
incluir o direito ao esquecimento digital.
E há um item que faz o pleno na
oposição: o artigo 149.º, que define os círculos eleitorais. O PSD propõe a alteração
mais minimalista, sustentando que o número de deputados eleitos por círculo
plurinominal deve levar em conta a “representação equilibrada de todo o
território”. O Chega e o Livre querem um círculo nacional de compensação. IL,
PCP, BE e PAN retiram a consagração constitucional do método de Hondt, mas os
comunistas e os bloquistas querem retirar os círculos uninominais, introduzidos
na CRP em 1997. Mas, como o PS está alheio ao tema, o mais provável é que o artigo
fique na mesma.
Há 14
artigos com propostas de alteração quer do PS, quer do PSD. Embora não haja
total convergência, é sobretudo nestes pontos que estará a chave desta revisão.
Estão aqui dois temas fulcrais: a obrigatoriedade de confinamento em caso de
doença infeciosa grave; e o acesso aos metadados das telecomunicações por parte
dos serviços de informação. Neles insistem, com a nota de urgência, observadores,
constitucionalistas e o próprio presidente da AR, Santos Silva.
No primeiro
caso, os dois partidos alteram o artigo da CRP (artigo 27.º) que elenca as
situações em que se permite a privação de liberdade dos cidadãos, somando a
possibilidade de internamento ou confinamento por razões de saúde pública – ponto
polémico, pois o confinamento pode ser decretado pela autoridade de saúde, com “garantia
de recurso urgente à autoridade judicial”, segundo o PS, ou “decretado ou confirmado
por autoridade judicial”, segundo o PSD. Quanto aos metadados, o PS quer
permitir (artigos 34.º e 35.º) o “acesso, mediante autorização judicial, pelos
serviços de informações, a dados de base, de tráfego e de localização de
equipamento, bem como a sua conservação”, sendo permitido para “salvaguarda da
defesa nacional, da segurança interna de prevenção de atos de sabotagem,
espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e
criminalidade altamente organizada”. O PSD propõe que a lei possa “autorizar o
acesso do sistema de informações da República aos dados de contexto resultantes
de telecomunicações, sujeito a decisão e controlo judiciais”.
Dos 296 artigos
da CRP, há 129 sem propostas de alteração. Assim, há a pretensão, certamente
gorada, de rever mais de metade da Constituição. Ficará intocável a generalidade
das alterações ao sistema político, nomeadamente no respeitante à proposta do
PSD de definir um mandato único de sete anos para o PR. António Costa disse não
querer alterar o sistema político e institucional.
***
Penso que a
CRP deveria estipular um mínimo de deputados (três ou quatro) por círculo
eleitoral e alterar a composição e o mandato do TC. De resto, que siga o
cortejo, com o maior consenso.
2022.01.04 – Louro de Carvalho
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