Estava a rezar, na Missa deste dia 29 de janeiro, por alma do Padre
Armando Menezes e, ao Salmo Responsorial, lembrei-me de que viria aí o
Evangelho das Bem-aventuranças (na novena dos Felizes: makárioi, em Grego). E o pensamento voou. Foi com este Evangelho
que entrei no Granjal, na Vila da Ponte e em Freixinho, a 1 de novembro de 1979,
e foi este o último Evangelho que o Cónego José Cardoso leu no 4.º domingo
do Tempo Comum no Ano A, a 29 de janeiro de 1984, pois faleceu no dia
seguinte (30 de janeiro). Por isso, eu não podia omitir a meditação das Bem-aventuranças
evangélicas, na esteira da literatura veterotestamentária e na linha de Cristo.
Obviamente, a Liturgia da Palavra do 4.º domingo do Tempo Comum
no Ano A concita a
reflexão sobre o Reino dos Céus (Reino de Deus) e a sua lógica, mostrando que o
plano de Deus roda em sentido contrário à lógica do mundo. Aos olhos de Deus, são
felizes os pobres, os humildes, os que se despem do egoísmo, do orgulho, dos
próprios interesses. Deles é o Reino de Deus.
***
Na
1.ª leitura (Sf 2,3; 3,12-13),
Sofonias denuncia o orgulho e a autossuficiência dos ricos e dos poderosos e
insta o Povo de Deus a converter-se à pobreza, não à miséria ou à pobreza
imposta pela injustiça dos poderosos. O pobre (ptôkhós) é quem se entrega nas mãos de Deus com humildade e
confiança, acolhe com amor o seu desígnio, é justo e solidário com os irmãos.
O
profeta pregou em Jerusalém no tempo de Josias (entre 639 e 609 a.C.), que
subiu ao trono com oito anos de idade). Na menoridade do rei, presidia aos
destinos de Judá um Conselho Régio.
É
uma época difícil para o Povo de Deus. Judá está submetida aos assírios (desde
o pedido de ajuda de Acaz a Tiglat-Pileser III contra Damasco e a Samaria, no
ano 734 a.C.), cuja influência condiciona todos os escalões da vida nacional,
sofrendo a nação as consequências da invasão de costumes estranhos e de
práticas pagãs. Paralelamente, o país saíra do reinado de Manassés (698-643
a.C.), que reconstruiu os lugares de culto aos deuses estrangeiros, erigiu
altares a Baal, ofereceu o filho em holocausto, se dedicou à adivinhação e à
magia e instalou no Templo de Jerusalém a estátua de Astarte. A isto acrescem as
injustiças que se abatem sobre os pobres e desprotegidos. Os príncipes e
ministros, abusando da autoridade, cometem arbitrariedades, os juízes são corruptos
e os comerciantes especulam com a miséria.
Em
contraste, o profeta sabe que Javé não continuará a pactuar com o pecado, que
virá o Dia do Senhor, em que os maus serão punidos e a injustiça banida da
terra. Porém, escaparão os humildes e os pobres, os que se mantiveram fiéis à
aliança. Assim, o escopo de Sofonias não é anunciar o castigo, mas suscitar a
conversão, passo necessário para a salvação.
O
passo bíblico em apreço começa com o apelo à conversão, a qual significa,
objetivamente, justiça e humildade. Os humildes, neste contexto, são os se
entregam confiadamente nas mãos de Deus, Lhe seguem os passos, aceitam o seu
plano e não se posicionam contra Ele. São os que praticam a justiça para com os
irmãos e que, respeitando os direitos dos mais débeis, não cometem
arbitrariedades. São os pobres das bem-aventuranças evangélicas, não uma categoria
sociológica, mas os que estão na atitude de abertura a Deus e aos irmãos. No
lado oposto estão os orgulhosos e autossuficientes, que exploram, que são
injustos, corruptos e arbitrários. Só a conversão à humildade permitirá
encontrar proteção no “dia da ira do Senhor” que se aproxima.
Em
seguida, Sofonias apresenta o resultado do “dia da ira do Senhor”. Surgirá o
“resto de Israel”. Os orgulhosos, arrogantes e prepotentes serão banidos do
meio do Povo de Deus e ficará um resto humilde e pobre, que se entregará nas
mãos do Senhor, constituindo uma espécie de viveiro de reflorescimento da
nação. Daí, ser pobre será a atitude de quem tem o coração aberto a Deus e é
justo na relação com os outros. Na boa tradição bíblica, os pobres são pessoas pacíficas,
humildes, piedosas, que confiam em Deus e Lhe obedecem e que são justos e
solidários com os irmãos.
***
Na
2.ª leitura (1Cor 1,26-31),
Paulo denuncia a atitude dos que põem a esperança e segurança em pessoas ou em
esquemas humanos, com atitudes de orgulho e de autossuficiência, e convida os
crentes a encontrar em Cristo crucificado a verdadeira sabedoria que conduz à
salvação e à vida.
Face
a alguns equívocos sobre o valor dos mestres cristãos e à pretensa tentação de
equiparar o cristianismo a uma escola filosófica, o apóstolo porfia aos Coríntios
que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo, e que a
experiência cristã não é a busca de uma filosofia brilhante que desemboque na
sabedoria, entendida à maneira grega. Aliás, Cristo não se distinguiu pela arte
oratória ou pela lógica do discurso filosófico. Ele é o Deus que, por amor,
veio ao encontro dos homens e lhes ofereceu a salvação, através do dom da vida.
Por
isso, o caminho cristão é a adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do
dom da vida. Nele manifesta-se, de forma desconcertante, mas plena e definitiva,
a força salvadora de Deus. Em mais ninguém se deve procurar a verdadeira
sabedoria que conduz à vida eterna.
Considera
Paulo que é difícil ver – do ângulo humano – num pobre galileu condenado a
morte infamante (“escândalo para os judeus e loucura para os gentios”) uma
proposta credível de salvação. Mas a lógica de Deus não é a lógica dos homens.
“O que é loucura de Deus é mais sábio que os homens; e o que é fraqueza de Deus
é mais forte do que os homens” (1Cor 1,25).
Como
exemplo da lógica de Deus, o apóstolo aponta o caso da comunidade cristã de
Corinto: não abundam ali os ricos, nem os poderosos, nem os de boas famílias,
nem os intelectuais, nem os aristocratas; ao invés, a maioria dos ali
residentes são escravos, trabalhadores, gente simples e pobre. Não obstante, como
previu Sofonias, Deus escolheu-os e chamou-os. E a vida de Deus manifestou-se
nessa comunidade de desclassificados. Para a consecução dos seus projetos, os
homens escolhem os ricos, os fortes, os mais bem preparados intelectualmente,
os que provêm de boas famílias, os que asseguram maiores probabilidades de
êxito do ponto de vista humano. Deus, porém, elege os pobres, os débeis, os que
aos olhos do mundo são ignorados ou desprezados e, através deles, manifesta o
seu poder e intervém no mundo. Sendo esta é a lógica de Deus, não surpreende
que o poder salvador de Deus se tenha manifestado na cruz de Cristo.
Por
isso, os Coríntios são convidados a não colocar a esperança e a segurança em
pessoas ou em esquemas humanos de sabedoria, pois a sabedoria humana é incapaz
de salvar, e, ao produzir autossuficiência, leva o homem a prescindir de Deus e
a resvalar por caminhos de morte. Em contrapartida, os coríntios devem colocar
a sua esperança e segurança em Cristo, que deu a vida por amor. É na loucura da
cruz, na vida dada até às últimas consequências, que se exprime a radicalidade
do amor de Deus, de oferta da salvação ao homem. A cruz manifesta a sabedoria
de Deus, sabedoria que deve atrair o olhar e apaixonar o coração dos Coríntios
e de todos nós.
***
O
Evangelho (Mt 5,1-12) apresenta
a magna carta do Reino. Proclama bem-aventurados os pobres, os mansos, os que
choram, os que procuram cumprir fielmente a vontade de Deus, porque vivem na
lógica do Reino; e recomenda aos crentes a misericórdia, a sinceridade, a luta
pela paz, a perseverança ante das perseguições: atitudes que correspondem ao
compromisso pelo Reino.
Depois
de dizer quem é Jesus e de definir a sua missão, Mateus apresenta a
concretização dessa missão. Com palavras e com gestos, Jesus fala do Reino aos
discípulos e às multidões.
Uma
caraterística importante do Evangelho de Mateus é a importância dada aos ditos
de Jesus. Ao longo deste Evangelho aparecem cinco longos discursos (cf Mt 5-7; 10; 13; 18; 24-25), em que
Mateus junta ditos e ensinamentos proferidos por Jesus em várias ocasiões e
contextos. Terá o autor do primeiro Evangelho visto nesses discursos a nova
Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e
escrita nos cinco livros do Pentateuco.
O
primeiro discurso de Jesus – de que o trecho em referência é a primeira parte –
é conhecido como o sermão da montanha (Mt
5-7). Agrupa um conjunto de palavras de Jesus que Mateus colecionou com o
intuito de propiciar à sua comunidade uma série de ensinamentos básicos para a
vida cristã, configuradores de um novo código ético, que superasse a antiga Lei
que guiava o Povo de Deus. Mateus situa esta intervenção de Jesus no cimo de um
monte, transportando-nos para o monte da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e
deu ao Povo a antiga Lei. Agora é Jesus, que, no monte, dá ao novo Povo de Deus
a Lei que o deve guiar ao Reino. As bem-aventuranças que Mateus põe na boca de
Jesus são diferentes das apresentadas por Lucas (cf Lc 6,20-26). Mateus tem nove bem-aventuranças, enquanto Lucas tem
quatro. Além disso, Lucas prossegue com quatro maldições, ausentes do texto
mateano. Outras caraterísticas da versão de Mateus são a espiritualização (os pobres
de Lucas são, em Mateus, os pobres em espírito) e a aplicação dos ditos
originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos, sendo
provável que a versão lucana seja mais fiel à tradição original e que o texto
de Mateus seja mais trabalhado.
As
bem-aventuranças como fórmulas da tradição bíblica e judaica aparecem nos
anúncios proféticos de alegria futura, nas ações de graças pela alegria
presente e nas exortações a uma vida sábia, refletida e prudente. Contudo,
definem sempre a alegria doada por Deus.
As
bem-aventuranças evangélicas devem ser entendidas no contexto da pregação do
Reino. Jesus proclama felizes os que estão em situação de debilidade, de
pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o Reino e a situação destes
pobres mudará radicalmente. São bem-aventurados porque, na fragilidade e dependência,
estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a salvação e que
Deus lhes oferece em Jesus. As quatro primeiras bem-aventuranças de Mateus
relacionam-se entre si, dirigindo-se aos pobres: a segunda, terceira e quarta
são desenvolvimentos da primeira, que proclama: “felizes os pobres em espírito”.
Saúdam a felicidade dos que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram
fazer sempre a sua vontade, dos que deixam de colocar a sua confiança e
esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em
Deus e dos que renunciam ao egoísmo e se despojam de si próprios, para estarem
disponíveis para Deus e para os irmãos, servindo e partilhando.
Os
pobres não são os privados de bens para o seu côngruo sustento, mas os que se
despojam, mesmo do que lhe faça míngua para acolherem Deus e servirem o
próximo. Os mansos não são os que suportam passivamente as injustiças, mas os
que recusam a violência. Os que choram são os que vivem no sofrimento provocado
pela injustiça e pela miséria. Os famintos e sedentos de justiça são os
totalmente fiéis aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos.
O
segundo grupo de bem-aventuranças está mais orientado para definir o comportamento
cristão. Os misericordiosos são os que têm um coração capaz de se compadecer,
de amar sem limites, de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo
quando eles falharam. Os puros de coração são os que têm um coração honesto e
leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.
Os
pacíficos são os que recusam a violência e a lei do mais forte nas relações
humanas e os que procuram ser – até com o risco da vida – instrumentos de
reconciliação entre os homens. Os perseguidos por causa da justiça são os que
lutam pela instauração do Reino, desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados
pelos que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte.
E a última bem-aventurança constitui a exortação de Mateus aos membros da
comunidade que têm a experiência da perseguição, por causa de Jesus, a que
resistam ao sofrimento e à adversidade. É, na prática, uma aplicação concreta
da oitava bem-aventurança.
Enfim,
as bem-aventuranças deixam uma mensagem de esperança e de alento aos pobres e
débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles. E asseguram que eles
vivem na dinâmica do Reino onde encontrarão a felicidade e a plenitude da vida.
2023.01.39 – Louro de Carvalho
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