Na liturgia do 3.º domingo do Tempo Comum no Ano A, celebramos, pela
quarta vez, o IV Domingo da Palavra de Deus, sob o lema “Nós vos anunciamos o
que vimos” (1Jo 1,3). E o Papa, tendo instituído este dia em 30 de setembro de
2019, presidiu à celebração da Santa Eucaristia na Basílica de São
Pedro e, em seguida, com o objetivo de reavivar a responsabilidade dos crentes
em conheceram a Sagrada Escritura, ofereceu aos presentes o Evangelho de Mateus.
Durante a celebração, conferiu a homens e mulheres leigos os ministérios de leitor/a
e de catequista.
Em particular, três pessoas receberam o ministério de leitor/a;
e sete, o de catequista. São fiéis leigos e leigas provenientes da Itália, do Congo,
das Filipinas, do México e do País de Gales, que pretendem representar o Povo
de Deus, confrontando-se com os textos da liturgia que mostram o desígnio de Deus de oferta de
salvação e de vida plena a todos os homens. É o projeto do Reino.
***
Na
primeira leitura (Is 8,23b-9,3),
a mesma da noite do Natal, Isaías, profeta-poeta, anuncia uma luz que Deus fará
brilhar sobre as montanhas da Galileia e que dissipará as trevas que submergem
todos os prisioneiros da morte, da injustiça, do sofrimento, do desespero.
O
livro expõe um conjunto de oráculos messiânicos, que alimentam a esperança do
Povo nesse mundo de justiça e de paz que Deus, num futuro ainda indeterminado,
oferecerá aos seus.
O
trecho em referência pertence à fase final da vida do profeta, fins do século
VIII a.C., quando os Assírios (que em 721 a.C. conquistaram Samaria, antiga
capital do reino de Israel) oprimem as tribos da região norte do país (Zabulão
e Neftali). A desolação e a morte cobrem essa região.
Ezequias,
que reina em Jerusalém, a sul, desdenhando as indicações do profeta (para quem
as alianças com outros povos significam grave infidelidade a Javé, pelo depósito
a confiança e da esperança nos homens), envia embaixadas ao Egipto, à Fenícia e
à Babilónia, para consolidar uma frente contra a maior potência da época – a
Assíria. A resposta de Senaquerib, rei da Assíria, é célere: vencidos
sucessivamente os membros da coligação, volta-se contra Judá, devasta o país e
põe cerco a Jerusalém (701 a.C.). Ezequias submete-se e fica a pagar pesado
tributo à Assíria.
Desiludido
com os reis, o profeta sonha com a intervenção de Deus para oferecer ao Povo um
mundo novo, de liberdade e de paz. O trecho em causa está crivado de oposições:
humilhar/cobrir de glória, trevas/luz, caminhar nas sombras da morte
(desolação, desespero) /alegria e contentamento. Os termos negativos definem a
situação atual; os conceitos positivos, a futura.
Na
passagem do quadro de opressão, de frustração e de desespero, ao de esperança, de
alegria e de contentamento, o profeta fala de uma luz que a brilhará por cima
dos montes da Galileia e que iluminará toda a Terra. Eliminará as trevas, que
têm o Povo oprimido e sem esperança, e inaugurará o dia novo da alegria e da paz.
Será quebrado o jugo da opressão e a paz deixará de ser miragem para ser realidade.
Para descrever a alegria que encherá o coração do Povo, o profeta utiliza duas sugestivas
imagens: como, no fim das colheitas, toda a gente dança feliz, celebrando a
abundância dos alimentos; ou como, após a caçada, os caçadores dividem a presa
abundante.
A
origem desta luz libertadora e recriadora é, indubitavelmente, Deus. Será Deus
quem quebrará a vara do opressor, quem levantará o jugo que oprime o Povo de
Deus, quem triturará o bastão de comando que gera a humilhação. O mundo novo de
alegria e de paz é um dom de Deus.
Na
sequência, o oráculo ainda fala num menino, enviado por Deus para restaurar o
trono de David e para reinar no direito e na justiça. É a promessa messiânica
em todo o seu esplendor.
***
O
Evangelho (Mt 4,12-23) descreve
a realização da promessa: Jesus é a luz que começa a brilhar na Galileia e
propõe aos homens de toda a terra a Boa Nova do Reino. Ao seu apelo, respondem
os discípulos, os primeiros destinatários e testemunhas que levarão o Reino a
toda a Terra.
O
trecho proposto funciona como texto-charneira, que encerra a etapa da
preparação de Jesus para a missão e que lança a etapa do anúncio do Reino.
Na
Galileia, região setentrional da Palestina, de população mesclada e ponto de
encontro de povos, temos a cidade de Cafarnaum no limite do território de
Zabulão e de Neftali, na margem noroeste do lago de Genesaré, no enfiamento da
rota do mar (ligando o Egipto e a Mesopotâmia).
Esta
era a capital judaica da Galileia (Tiberíades, capital política da região,
pelos seus costumes gentílicos e por estar construída sobre um cemitério, era
evitada pelos judeus), cuja situação geográfica lhe abria as portas dos
territórios pagãos da margem oriental do lago.
Na
primeira parte, Mateus, mostrando Jesus a sair de Nazaré, seu lugar de
residência habitual, para Cafarnaum, descobre nisso um significado profundo, à
luz de Is 8,23-9,1: a luz que havia de eliminar as trevas e as sombras da morte
de que fala Isaías é Jesus. Na terra humilhada de Zabulão e Neftali, começa a
brilhar a luz da libertação, que vai atingir também os pagãos que acolherem o
anúncio do Reino. É significativo que o primeiro anúncio ecoe na Galileia,
terra onde os gentios se misturam com os judeus e, sobretudo, em Cafarnaum,
cidade que, pela sua situação, é ponte para terras pagãs. O anúncio libertador
de Jesus tem, desde logo, uma dimensão universal.
Na
segunda parte, surge o lançamento da missão de Jesus: o conteúdo básico da sua
pregação é o Reino como realidade viva e atuante. E aparecem os primeiros discípulos
que acolhem o apelo do Reino e que acompanham Jesus na missão.
Jesus
veio trazer o Reino. A expressão “Reino de Deus” ou “Reino dos céus” (hê basileía tôn ouranôn), como diz
Mateus, refere-se, no Antigo Testamento e no tempo de Jesus, ao exercício do
poder soberano de Deus sobre os homens e sobre o Mundo. No discurso profético
aparecem, pari passu, denúncias de
injustiças dos reis contra os pobres, de atropelos ao direito, orquestrados
pela classe dirigente, de responsabilidades dos líderes no abandono da aliança,
de graves omissões no atinente aos compromissos assumidos para com Javé. Por isso,
desiludido com o modo como os reis exercem a realeza, o Povo de Deus sonha com
um tempo novo, em que será o próprio Deus a reinar. Será o Reino da justiça, da
misericórdia, da preocupação de Deus para com os pobres e marginalizados, da
abundância e fecundidade, da paz sem fim.
Jesus
tem consciência de que a vinda do Reino está ligada à sua pessoa. Assim, o
primeiro anúncio espelha-se no pregão: “arrependei-os (metanoeîte) porque o Reino dos céus está a chegar”.
O
convite à conversão (“metanoia”) é o convite à mudança radical na mentalidade,
nos valores, na postura vital. Corresponde à reorientação da vida para Deus, de
modo que Deus e os seus valores estejam no centro da vida do homem. Só quando o
homem deixa que Deus ocupe o lugar que Lhe compete, o Reino nascerá e se
tornará realidade nos corações e no Mundo.
Na
sequência, Mateus mostra Jesus a construir ativamente o Reino: as palavras
anunciam a nova realidade e os gestos (milagres, curas, vitórias sobre o que
rouba a vida e a felicidade) são sinais de que Deus já começou a reinar e a
transformar a escravidão em liberdade.
Por
fim, Mateus descreve o chamamento dos primeiros discípulos. Não é relato jornalístico
de eventos, mas catequese sobre o chamamento e a adesão ao projeto do Reino. A pronta
resposta de Pedro e André, de Tiago e João constitui um exemplo da conversão
radical ao Reino e de adesão às suas exigências. E vinca-se a diferença entre
os chamados por Jesus e os discípulos que se juntavam à volta dos mestres do
judaísmo: não são os discípulos que escolhem o mestre e pedem para entrar no
grupo, como sucedia com os discípulos dos rabbis.
A iniciativa é de Jesus, que chama os que elegeu, os convida a segui-Lo e lhes
propõe uma missão. A resposta dos quatro discípulos é paradigmática: renunciam à
família, ao seu trabalho, às seguranças instituídas e seguem Jesus sem
condições. Esta rutura (rutura afetiva com pessoas e rutura com as referências
sociais e de segurança económica) indicia a opção radical pelo Reino e pelas
suas exigências.
A
missão confiada a estes discípulos, que aceitam o desafio do Reino, tem a ver
com a condição de pescadores. O mar é, na cultura judaica, o lugar dos demónios,
das forças da morte opostas à vida e à felicidade. Ora, a tarefa destes discípulos,
que aceitam integrar o Reino, é a de pescadores de homens, ou seja, a de
libertar os homens da realidade de morte e de escravidão em que estão
mergulhados, guiando-os à liberdade e à realização plenas. Estes representam
todos discípulos, de todos os tempos e lugares: todos os que se incorporam em
Cristo pelo batismo, que devem responder positivamente ao chamamento, optar
pelo Reino e pelas suas exigências e tornar-se testemunhas da vida e da
salvação de Deus no meio dos homens.
***
A
segunda leitura (1 Cor 1,10-13.17)
apresenta as vicissitudes da comunidade de discípulos, que esqueceram Jesus. O
apóstolo exorta-os vivamente a redescobrirem os fundamentos da sua fé e dos
compromissos assumidos no batismo.
Após
ter partido de Corinto, Paulo continuou em contacto com a comunidade. Mesmo
distante, acompanhava-a vida e inteirava-se regularmente das dificuldades e dos
problemas que os seus filhos de Corinto enfrentavam. De Éfeso escreveu-lhes a
primeira carta.
De
Corinto haviam chegado notícias alarmantes. Após a partida de Paulo, aparecera
na cidade um eloquente pregador cristão, Apolo, judeu de Antioquia, convertido
ao cristianismo, versado nas Escrituras e que foi de grande utilidade para a
comunidade na polémica com os judeus. Era mais brilhante do que Paulo,
conhecido pela sua falta de eloquência.
Porém,
formaram-se partidos na comunidade (Apolo não favorecia a divisão), à imagem do
que acontecia nas escolas filosóficas da cidade, que tinham os mestres, à volta
dos quais circulavam os adeptos ou simpatizantes: uns admiravam Paulo, outros
Cefas (Pedro) e outros admiravam Apolo. O cristianismo tornava-se, desse modo, uma
escola de sabedoria, na qual era possível optar por mestres distintos.
A
situação preocupou o Apóstolo: nesses conflitos e rivalidades, estava em causa
a essência da fé. O cristianismo corria o perigo de se tornar uma escola de
sabedoria, cuja validade dependia do brilho dos mestres, que expunha, o ideário,
e do seu poder de convicção. Ora, o cristianismo não é a escolha de uma filosofia,
defendida mais ou menos brilhantemente por um mestre qualquer, mas a adesão à
pessoa de Jesus Cristo, o único e verdadeiro mestre.
Paulo
não receia as palavras: a Cristo e só a Cristo os cristãos, todos, foram
consagrados pelo batismo. É Ele e só Ele a fonte de salvação. Ser batizado é
fazer parte do corpo de Cristo e participar no acontecimento salvador do qual Jesus
Cristo é o único mediador. Dizer que se é de Paulo, ou de Cefas, ou de Pedro é desvirtuar
gravemente a essência da fé cristã. Não foi Paulo o crucificado. O batismo não
significou adesão à doutrina de Paulo ou de outro mestre.
O
importante não é quem batizou ou quem anunciou o Evangelho: o importante é
Cristo, do qual Paulo, Cefas e Apolo são humanos instrumentos. Os Coríntios
são, pois, intimados a não fixar a atenção em mestres humanos e a redescobrir
Cristo, morto na cruz para dar vida a todos, como a essência da fé e do
compromisso. Assim, a comunidade será verdadeira família de irmãos, que vive em
unidade e em comunhão, recebendo de Cristo a vida.
***
Porque
não podemos deixar de “anunciar o que vimos”, convém referir que se propõe, neste dia, a releitura da Dei Verbum, a Constituição Dogmática sobre a Divina
Revelação, do Vaticano II (https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html). Muito convém
que a Palavra de Deus anime os corações e brilhe nas comunidades. No dizer de S.
Jerónimo, quem despreza as Sagradas Escrituras despreza o próprio Cristo.
2023.01.23 – Louro de Carvalho
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