O diretor-geral
da Agência Internacional de Energia Atómica teve e aproveitou o ensejo para
explanar, quase Urbi et Orbi, as
razões atuais do perigo da posse e da utilização das armas nucleares pelos
Estados, as dificuldades de negociação que tem enfrentado para um certo desanuviamento,
os esforços que tem feito e continuará a fazer e o que o motiva nesta sua
cruzada profissional. Por outro lado, aponta a forte possibilidade de, em vez
da sua utilização como armamento de guerra (que destrói, mutila e mata), se
rendibilizar o nuclear como energia limpa, no contexto do combate às alterações
climáticas.
O Papa
Francisco recebeu, na manhã de 12 de janeiro, no Palácio Apostólico, o diretor-geral
da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Grossi, que visitou o
Vaticano, onde manteve conversações com o cardeal Secretário de Estado, Pietro
Parolin, e com o secretário para as Relações com Estados e Organizações
Internacionais, o arcebispo Paul Richard Gallagher.
Em
entrevista aos meios de comunicação do Vaticano – Sala de Imprensa da Santa Sé, Rádio
Vaticano, Vatican News, L’Osservatore Romano e Vatican Media (antigo Centro Televisivo) –, Grossi enfatizou a
necessidade de encontrar soluções multilaterais para as crises internacionais e
a de evitar a escalada nuclear, que parece cada vez mais iminente. Em
particular, debruçou-se sobre a delicada situação na central nuclear de
Zaporizhzhia, na Ucrânia, anunciando que, em breve, visitará o país, o que fará
pela quinta vez, desde o início do conflito.
Confrontado com a forte denúncia, por parte do Papa Francisco, da
gravidade da ameaça nuclear que hoje paira sobre a humanidade, o diretor-geral
da AIEA, sublinhou que se avistou com Francisco, porque lhe parece
indispensável ouvir a sua voz, a sua mensagem sobre estas ameaças neste momento difícil, com
uma agenda internacional complexa. O trabalho da AIEA tornou-se urgente. E não
se trata apenas da questão da Ucrânia. Também são preocupantes os casos do Irão
e da Coreia do Norte.
Neste momento, é claro que a segurança das instalações nucleares na
Ucrânia se tornou urgente, indispensável mesmo. A situação atual é precária,
frágil: continuam os bombardeios em torno da central de Zaporizhzhia e, às
vezes, sobre ela.
Desde a sua visita, em setembro passado, Grossi pôde estabelecer uma
presença contínua da AIEA em Zaporizhzhia; e, agora, o seu compromisso é chegar
a um acordo político entre Moscovo e Kiev, para assegurar uma zona de proteção e de segurança nuclear em torno da central.
Tendo o Papa repetidamente expressado apoio a uma abordagem multilateral
em grandes crises internacionais, o entrevistado reconhece que é muito
importante, e até fundamental, o apoio da Santa Sé, porque enfatiza a
relevância do problema em termos de paz, com uma voz universal como é a voz do
Santo Padre, e em particular neste conflito na Ucrânia, que é, seguramente, um
conflito na Europa, mas também um conflito que envolve cristãos em todo o Mundo.
Veja-se como é diferente a posição dos católicos e protestantes e a dos
ortodoxos em relação à guerra russo-ucraniana e como os próprios ortodoxos se
dividiram nesta matéria. Assim, é indispensável escutar a voz do Santo Padre.
Por isso, o diretor-geral da AIEA sente-se na órbita desta orientação
espiritual do Santo Padre, não apenas por ser católico, mas também por causa da
força real desta voz no Mundo, neste horizonte de guerra.
Rafael
Grossi mencionou a central nuclear de Zaporizhzhia
e a possibilidade de se criar, nesta, uma zona de segurança. Disse ter já visitado
a Ucrânia, por quatro vezes, e anunciou uma quinta visita. Por isso, os
entrevistadores questionaram-no sobre as expectativas em relação à
possibilidade da criação de uma zona de segurança naquela central nuclear. A
resposta é que não se trata de uma negociação fácil, porque envolve aspetos técnicos e aspetos políticos e militares.
Por outro lado, como referiu a 11 de janeiro, em Roma, a mesa de negociações
tornou-se maior. Raphael Grossi não fala apenas com diplomatas e com líderes
políticos; fala também com militares: generais, coronéis, pessoas que têm
objetivos militares numa zona de combate ativo. E deixa isto claro para a comunidade
internacional, já que, para as forças militares de dois países inimigos, a zona
em causa é de intensa atividade militar, não de ações intermitentes ou fortuitas.
Nestes termos, o desafio do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica é que se
chegue a uma “santuarização” (um neologismo que assume) da central
nuclear, de modo que seja vista, não como um problema, mas como uma solução
para quaisquer consequências mais graves.
É clarividente que um acidente nuclear teria consequências não
limitadas a um dos dois Estados em guerra, mas a uma área geográfica maior e
talvez a toda a Europa (provavelmente ao chamado Ocidente, digo eu), pelo que
há a insistência da AIEA e a insistência pessoal do seu diretor-geral nesse magno
desafio.
Portanto, fala-se muito, neste momento, de aspetos territoriais,
perimetrais, que são as preocupações das forças armadas dos dois lados e há
progressos. O diretor-geral da AIEA, que estará, novamente, na Ucrânia, para
continuar esta rodada de negociações, pensa que, depois disso, é possível ir à
Rússia, embora a visita a este país ainda não esteja confirmada.
Quanto à preocupação de Francisco com o impasse sobre o acordo nuclear
iraniano, expressa no discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto à Santa
Sé, por ocasião da entrada no novo ano, Grossi, reconhece que o Santo Padre tem
razão. Há, de facto, um impasse, “as negociações foram interrompidas, há
muitas reuniões e intercâmbios”. Por isso, a AIEA e o seu diretor-geral,
pessoalmente, não querem deixar o vazio político em torno de uma questão tão
volátil como perigosa. Há dois caminhos paralelos: o acordo global, o JCPOA
(Joint Comprehensive Plan of Action); e a negociação bilateral entre a AIEA e o
Irão.
Não tem havido progressos nas negociações. Ao invés, o Irão está a
avançar no processo de enriquecimento de urânio, no desenvolvimento e na construção
de centrífugas cada vez mais avançadas, o que é muito preocupante, porque estes
são passos para a proliferação nuclear que urge conter e evitar. Por isso,
Grossi espera ir a Teerão. Como sempre diz que a AIEA é “um lugar de acordo, um
espaço, uma plataforma de entendimento mútuo”, sente-se “pronto para viajar e
começar de novo, se possível, o mais rápido possível”.
O Sumo Pontífice denunciou repetidamente a imoralidade do uso de armas
nucleares e a da sua posse, pelo que Gossi, interpelado sobre o que a agência
internacional que lidera pode fazer para promover o uso exclusivamente pacífico
do nuclear, vincou a importância e a premência desse uso exclusivamente pacífico,
especialmente quando outra crise terrível, a da mudança climática, atingiu a
humanidade. Obviamente existe, se não uma redescoberta, pelo menos, “um foco
muito mais intenso na capacidade da energia nuclear de fornecer uma solução
limpa e livre de carbono para a economia global”, o que se pode ver na Europa
Oriental, na China, na Ásia do Sul emergente e em quase todos os lugares.
Contudo, ao mesmo tempo, o problema da posse de armas nucleares está
sempre presente. É claro que temos de reconhecer que este é um processo gradual
e que “a obrigação do momento é impedir que mais e mais países procurem armas
nucleares, especialmente num contexto internacional de grande tensão. Muitos
países têm a ideia ideia absolutamente incorreta de que talvez deva ser
reconsiderada, neste momento, a possibilidade de desenvolvimento nacional de
armas nucleares. É a isso que a AIEA deve dizer “não”. A situação internacional
já é difícil e não é lícito torná-la ainda mais difícil. E é verdade o que o
Santo Padre, a Igreja disseram: “As armas nucleares não fornecem segurança: é o
oposto. É o oposto!” E isto deve ser dito claramente. É preciso ter “a
paciência e a capacidade de convencer os Estados”, o que não é fácil.
***
Em suma, é preciso esclarecer que a energia nuclear não está condenada,
pois, não é, em si, um perigo especial, como não o é a energia elétrica, a
pólvora, a gelomonite ou a dinamite. O que está em causa é o seu uso
destrutivo, contaminante e mortífero. Por isso, como em relação a outros tipos
de armamento, é de questionar porque se continua a investir em armas, em
conflitos, em guerras. Parece que há um certo prazer em destruir e em matar e
formar para isso…
Porque não aproveitar a energia nuclear, como energia limpa e livre de carbono,
com vista à minoração da crise climática, reduzindo tão drasticamente como
possível o recurso às fontes de energia de origem fóssil, às não renováveis?
Dizia em tempos o Papa que se governa com a cabeça. Se calhar, é também
preciso governar com o coração, não com a folha de Excel ou com os pés.
Trata-se de pessoas e de povos.
2023.01.14 – Louro de Carvalho
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