Na Assembleia da República (AR), os
deputados discutiram, a 26 de janeiro, um projeto de resolução do Bloco de
Esquerda (BE) a recomendar ao Governo a desclassificação de todos os documentos
que estão nos arquivos militares, anteriores a 1975, em particular os que
respeitam à Guerra Colonial, a partir de 1961. O projeto foi rejeitado pelos
votos contra do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do
partido Chega; foi contemplado com a abstenção da Iniciativa Liberal (IL); e obteve
os votos a favor da bancada bloquista, do Partido Comunista Português (PCP), do
partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Livre.
O
PS, pela voz do deputado Diogo Leão, julgou excelente o propósito do BE, mas
não conforme com a realidade. Ou seja, não é verdade que grande
parte do acervo documental militar se encontra classificado. Com
efeito, no Arquivo Histórico Militar não há um único documento anterior a 1974
que se encontre classificado. No Arquivo Histórico da Força Aérea a situação é
semelhante, todos os documentos relativos à Guerra Colonial foram
desclassificados e são passíveis de consulta. Só no Arquivo Histórico de
Marinha é que há alguns documentos classificados, mas a Comissão de
Desclassificação de Documentos da Marinha Portuguesa fez a desclassificação da
vasta maioria dos documentos deste período histórico. Já os documentos Organização
do tratado do Atlântico Norte (NATO) anteriores a 1975 ainda estão
classificados, mas o Estado português não tem, de motu proprio e de forma unilateral, capacidade jurídica ou poder
para desclassificar estes documentos. Assim, como disse o deputado, “não
se desmontam mitos, como o mito imperial, à custa de criar mitos contemporâneos”,
como o de que “a vasta maioria dos documentos militares são secretos”, quando o
“são uma absoluta minoria”.
Também
o PSD, pelo deputado Pedro Roque, afirmou a consonância com o “espírito” do
projeto, mas vincou o “facto de esta matéria ter um enquadramento legal” que
impede, por exemplo, a divulgação de documentos que contenham dados
pessoais.
Patrícia
Gilvaz, da IL, sustentou que o partido não se opõe à divulgação de documentos
históricos relativos à Guerra Colonial, mas questionou a intenção do BE: “Será
reconstruir a História tendo como base um princípio de transparência ou
contribuir para uma visão ideológica da História, esperando com isso encontrar
novas formas de atacar as forças militares e fazer ruído?”
João
Dias, do PCP, vincou a necessidade de desclassificação dos documentos
históricos e alertou para a falta de recursos dos arquivos para
tratar esta documentação.
Rui
Tavares, do Livre, defendeu que não há debate maduro acerca do passado “sem
acesso a documentos disponibilizados aos historiadores, aos professores, à
academia, aos investigadores”.
E
André Ventura, do Chega, classificou o projeto do BE como uma “enorme
irresponsabilidade” que “põe em risco a nossa História”.
Porém,
Joana Mortágua, do BE lembrou que os dados pessoais podem ser expurgados dos
documentos e sublinhou a irónica contradição das críticas ao projeto, visado
simultaneamente pela inutilidade e pelos perigos. E, frisando que “nenhum país
se constrói no presente e no futuro, sem olhar para trás com verdade”,
explicitou: “Queremos acesso à verdade toda, para que as gerações
futuras possam ter acesso à História baseada em factos e não em mitos.”
***
Não
é a primeira vez que os deputados se debruçaram sobre o tema: há
dois anos uma iniciativa idêntica ficou pelo caminho, com o voto
contra do PS e do PSD, com a alegação de que uma medida desta natureza pode pôr
em causa o interesse nacional. Contudo, militares e historiadores garantem que
o maior problema é a falta de recursos e de organização dos arquivos.
Um “imperativo histórico” – refere
agora o projeto de resolução do BE rejeitado na AR.
O debate parlamentar levanta a
questão: o que está ainda classificado nos arquivos militares e porquê? Augusto
Santos Silva, presidente da AR, era ministro da Defesa em 2010, quando recebeu
o pedido para a desclassificação dos fundos do acervo documental do Arquivo da
Defesa Nacional (ADN). E, em despacho de 14 de dezembro de 2010 (interno, não
publicado), mandou desclassificar todos os documentos constantes
dos arquivos anteriores a 1975.
O coronel Aniceto Afonso, militar,
historiador (coautor da obra Guerra Colonial , com o
coronel Carlos Matos Gomes) e, entre 1993 e 2007, diretor do Arquivo Histórico
Militar (pertencente ao Exército), conta que, naquele período, a desclassificação
de documentos era feita casuisticamente: quando um leitor sabia que um
documento existia e o queria ler, o documento ia a “uma comissão e era
desclassificado”. Era o que se fazia até o ministro exarar o dito despacho, que
devia valer, para todos os arquivos militares. Desde aí, todos os
documentos estão desclassificados, pelo que podem ir a leitura sem a
desclassificação por essa comissão. São excecionados os
documentos que se regem por normas próprias, por exemplo, os respeitantes à
Justiça ou à Saúde.
Aos documentos que “integrem dados
nominativos” (informação pessoal), de acordo com a lei, só se pode aceder, “decorridos
30 anos sobre a data da morte das pessoas” ou, não sendo conhecida a data da
morte, “decorridos 40 anos sobre a data dos documentos” e não menos de “dez
sobre o momento do conhecimento da morte” (limitação não absoluta, desde que os
dados pessoais sejam expurgados do documento antes de este ser consultado).
Estas determinações aplicam-se a todos os arquivos. No caso dos militares,
acresce a possibilidade duma classificação específica, de segurança – muito
secreto, secreto, confidencial e reservado –, que é a que esteve em causa no
debate parlamentar acima referido.
Em geral, toda a documentação está a
consulta no Arquivo Histórico Nacional e no ADN, mas há resistências,
nomeadamente no atinente aos arquivos afetos aos ramos das Forças Armadas. E
há documentação não acessível por algumas hesitações em considerar
o despacho do ministro da Defesa suficiente para desclassificar. Por
isso, segundo alguns, conviria uma lei que clarifique a desclassificação e
confirme o despacho, que é utilizado um pouco casuisticamente.
Às vezes a documentação não
está a leitura, porque os fundos dos arquivos não estão tratados.
E esse é o principal problema, pelo devia a lei obrigar a pôr lá pessoal que o
pudesse fazer. O ADN,
por exemplo, que teve cerca de uma dezena de funcionários, está reduzido a
dois/três.
O coronel Borges da Fonseca, que
também liderou o Arquivo Histórico Militar, garante que, pelo menos, nos
arquivos do Exército, todos os documentos estão acessíveis, nos limites
impostos pela lei. E qualifica de “mito” a ideia de que há um
manto de secretismo à volta dos documentos militares. E,
observando que se tem falado muito do massacre de Wiriyamu, aponta que o
relatório está disponível e que, em vez de imaginar que é muito secreto, o
melhor é ir consultar os arquivos.
Entretanto, vários historiadores
pronunciam-se de diversos modos. Irene Flunser Pimentel, que defende que os 50
anos do 25 de Abril (que se cumprem em 2024) devem dar o mote para abrir toda a
documentação histórica relativa ao Estado Novo e à Guerra Colonial, tem viva a
memória de quando avançou para a tese doutoramento. Os entraves no acesso às
fontes foram de tais que mudou o objeto da investigação: ia fazer
a tese de doutoramento sobre a Guerra Colonial, mas acabou por se
doutorar em 2007 com um aclamado estudo sobre a polícia política.
Já o historiador António Araújo diz
não ter razões de queixa dos arquivos militares: “Sempre foram dos mais abertos.”
Foi isto que lhe permitiu, em 2008, com António Duarte Silva, trazer ao
público quatro documentos que comprovam o uso de napalm (bomba com mistura química de Naftenato de alumínio e Palmitato de alumínio mono e
di-hidroxilados) pelas tropas portuguesas e que estavam
classificados como “muito secretos” ou “secretos”. Só então foram
desclassificados, a pedido dos dois historiadores. Não tiveram problema nenhum
em desclassificar, mas António Araújo diz que faz sentido “clarificar, de uma
vez por todas, que os documentos são acessíveis”.
Fernando Rosas observa que há barreiras
no acesso à documentação guardada em arquivos militares, quer pela documentação
que está classificada, quer pelo facto de haver muito material não tratado. Ainda
é do tempo em que, para se consultar o Arquivo Histórico Militar, era precisa
uma cunha ao general e eram precisos uns conciliábulos. Com Aniceto Afonso como
diretor, isso mudou substancialmente, passou a ser um arquivo com regras. Mas
decaiu. E um arquivo decaído facilita a existência de critérios,
formais ou informais, de restrição do acesso. Há “uma espécie de
burocracia cinzenta em que ninguém se interessa muito pelo arquivo”. Por outro
lado, diz que “não há boa vontade dos responsáveis militares no
que toca à facilitação do acesso a certos tipos de documentação”. A
memória da Guerra Colonial continua, por vezes, traumática.
Carlos Matos Gomes, capitão de Abril,
coautor de A Guerra Colonial, também aponta como principal
problema a falta de recursos e a consequente falta de organização da
documentação disponível. Não é questão política de secretismo,
pois o Exército tem os seus arquivos abertos, é questão de falta de meios e de organização.
Por isso, defende que a presidência do Conselho de Ministros, porque é um
assunto interministerial, deveria nomear uma comissão de pessoas ligadas aos
arquivos que verificasse em que moldes e que regras existem para estes
arquivos, para saber o que há, porque não se faze ideia. Porém, entende que “não
é preciso fazer uma lei nova, é preciso tornar eficaz o que já existe”.
E, quanto à questão do secretismo –
diz o militar historiador –, ela não se põe em relação ao que está nos
arquivos, mas ao que lá não está: “Há arquivos secretos fechados
em gabinetes há 50 anos.” E dá o exemplo do navio Angoche, de que
não se sabe nada. “Sabe-se que há um processo, mas está fechado” – atira.
***
Não se percebe, a não ser por falta
de informação correta o motivo por que o BE apresentou a Resolução. Não se
entende que, perante dúvidas a esclarecer e arestas a limar, se rejeitou o
projeto do BE. Não é questão da maioria absoluta do PS, pois os votos contra
são da esmagadora maioria. É pudor, é trauma. Assim, não haverá Museu da Guerra
do Ultramar e não se reescreverá a História segundo ou contra “o politicamente
correto”. E a verdade jazerá no limbo do tempo.
2023.01.26 – Louro de Carvalho
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