A
opinião pública está alarmada com a previsão de custos do altar-palco – no Parque
Tejo, junto ao rio Trancão – de onde o Papa Francisco presidirá às celebrações
do encerramento da próxima Jornada Mundial da Juventude (vigília de oração e
missa) que se realizará em Lisboa, de 1 a 6 de agosto deste ano. Com efeito, a
estrutura e as suas fundações comportarão, se não houver revisão do projeto,
cerca de seis milhões de euros, a expensas da Câmara Municipal de Lisboa (CML).
Todavia,
está previsto um outro palco no Parque Eduardo VII para a missa de abertura da Jornada
Mundial da Juventude (JMJ), sob a presidência do Cardeal Patriarca de Lisboa,
cujo custo rondará os dois milhões de euros, também a expensas da mesma CML.
Fazem-se
as contas, juntando ao preço base destas edificações o referente ao imposto
sobre o valor acrescentado (IVA), que, tratando-se de obras a cargo de
entidades públicas, não representa despesa sem retorno para o Estado. Na
prática, é apenas um custo de oportunidade.
Em
termos de gestão de dinheiros públicos e de equipamentos, no caso uns
palcos-altares, questiono-me se eram necessárias duas estruturas deste jaez,
uma no Parque Eduardo VII e outra no Parque Tejo. Se o mais contém o menos – e é
possível que o número se participantes no ato inaugural da JMJ se aproxime
bastante do dos participantes nos atos do encerramento – porque não se optou
apenas pela estrutura do Parque Tejo? O mesmo não digo do atinente ao local,
que, pelos vistos, já existe, para a celebração do Papa com os voluntários,
após o encerramento formal da JMJ, pois aí o número de participantes será
bastante reduzido.
Argumenta
a CML que se trata de investimento em estruturas que servirão, no futuro, para outros
eventos, mas não diz quais, nem de que género. E os organizadores de eventos dizem
que não temos eventos com assistência de mais de 80 mil pessoas.
Pensa
o Governo – e bem – tal como a CML e a Câmara Municipal de Loures que a JMJ
serve de pretexto para a requalificação daquela zona dos concelhos de Lisboa e
de Loures, ficando para o futuro um belo parque urbano.
Voltando
ao altar-palco, é de referir que, sendo uma estrutura para eventual serventia
futura, seria conveniente não a vincular, de todo, ao momento da JMJ. Assim, elementos
religiosos, cadeiras, bancos, etc. não devem ser fixos, mas ser colocados para
o momento e ser retirados sem dano para a estrutura. E não se justifica a dimensão:
1300 concelebrantes em palco asfixiam o Papa!
Por
outro lado, deviam as empresas candidatas à construção das estruturas e das fundações
não se aproveitar da ocasião para meterem a mão na bolsa do erário público. E
os responsáveis deviam ter a capacidade de evitar o tentador oportunismo. É
certo que tudo é caro em Lisboa, mercê da natureza dos terrenos, neste caso,
por se tratar de uma zona degradada e pantanosa, e da tentação especulativa.
Mas os custos anunciados, se não há forte probabilidade de utilização futura,
raiam o escândalo, face à magreza de recursos das nossas populações, especialmente
em tempo de crise provocada pela inflação e pela guerra na Europa. E espanta-me
que não estivessem ao corrente dos custos tanto o chefe da estrutura de missão
para a JMJ, José Sá Fernandes, como o presidente da Fundação JMJ, D. Américo
Aguiar. Não se entende esta falta de articulação entre parceiros do mesmo
projeto.
A
CML declarou ter seguido as indicações da Igreja, enquanto o Vaticano se demarca
do projeto. E penso que nem a Igreja, isto é, D. Américo Aguiar, tem poder para
vincular a CML, nem esta necessita de aceitar literalmente todas as indicações.
Há o que se chama negociação.
Dizem
agora que vão rever os projetos. Espero que ultrapassem o problema da falta de tempo
e que não ponham em causa a segurança das estruturas, desde logo através da
drenagem, da impermeabilização e da compactação do terreno e da solidez das
fundações.
***
A
enormidade de custos, que os responsáveis reconhecem, não invalida a
necessidade e a oportunidade da obra, sobretudo de um altar-palco no Parque
Tejo, para a JMJ. E não vale a pena derramar lágrimas de crocodilo pelos pobres,
pelo dinheiro que não há. A CML e o Estado Português comprometeram-se, ao mais alto
nível, com a JMJ em Lisboa. Isto aconteceu em janeiro de 2019. Já estava em
vigor a Constituição que nos rege. É certo que as circunstâncias mudaram, mas
não mudaram o compromisso. Houve tempo mais do que suficiente para voltarem
atrás. Preferiram, no entanto, respeitar a boa relação com a Santa Sé e cuidar
da imagem externa do país, bem como aproveitar o ensejo para requalificar uma
zona degradada na capital e arredores. Há que assumir o ónus do evento, que é
único no país.
A
este propósito, lembro-me de que, numa festa-encontro, em Lamego, dos alunos e
professores do Seminário de Lamego (seminário maior) com os do Seminário de
Resende (seminário menor), a meio da tarde, o ecónomo veio ter comigo a pedir
que fosse com ele à padaria da Rina comprar pão. É óbvio que a satisfação de
tal pedido era irrecusável.
Entretanto,
o ecónomo confidenciou-me: “Gastou-se tanto dinheiro com a festa.” E eu retorqui:
“Pois, mas quem organiza festas tem de arranjar forma de as pagar.” Lá seguimos
com o pão para o jantar. E tudo correu bem, na maior alegria, sobretudo dos miúdos
de Resende, que não se deram conta das preocupações do ecónomo do seminário maior.
Enfim, quem quer festas paga-as!
***
Juntamente
com as críticas à despesa excessiva numa Igreja pobre à maneira do Papa Francisco
e num Estado que mal arranja dinheiro para os seus encargos vitais, surgem os
pruridos conexos com a índole aconfessional do Estado nos termos da Constituição
da República Portuguesa (CRP). Há quem aponte a incongruência destes encargos
do Governo e dos municípios com a laicidade do regime republicano, falando
mesmo em laicismo, raiando a indignação.
Há
constitucionalistas a defender que o Governo e os municípios não devem empenhar-se
nesse tripo de construções, invocando a separação entre o Estado e as Igrejas;
e há constitucionalistas a sustentar que a aconfessionalidade do Estado, seja
no quadro da administração central, seja no da administração regional ou local,
não impede a cooperação, desde que o tratamento seja equânime para as diversas
confissões religiosas. Aliás, é este o espírito da lei da liberdade religiosa (Vejam-se
os artigos 2.º e 5.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, cuja última alteração lhe
foi introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro): a não discriminação
e a cooperação.
Aliás,
nos termos da CRP, o Estado português não é explicitamente laico, no sentido
que lhe deu o republicanismo francês, transferido para a nossa I República com
o bom senso da separação Igreja-Estado, mas imbuído do espírito anticlerical,
da ideia de que a religião acabaria em breve, mas que era lícito a cada um ter
as suas convicções religiosas e exercer o culto nos lugares próprios (proibido
nos lugares públicos). Porém, não vale a pena dizer que o Estado é laico, mas a
sociedade é religiosa (que também não o é de todo atualmente, se é que alguma
vez o foi).
Por definição da CRP, Portugal “é
uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular
e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (artigo
1.º). Baseia-se “na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização
política democráticas, na soberania popular, no pluralismo de expressão e
organização política democráticas” (cf artigo 2.º). A única referência a algo parecido
com a laicidade vem no artigo 43.º (liberdade
de aprender e ensinar): “O Estado não pode programar a educação e a cultura
segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas” (n.º 2); e “o ensino público não será confessional” (n.º 3).
A este respeito, é de atender ao
escrito por Filipe Correia, editor do Expresso,
no Expresso Curto de 26 de janeiro,
estribado na opinião de Tiago
Serrão, constitucionalista e docente na faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa:
“A expressão ‘Estado laico’ não consta, em termos
literais, da Constituição, mas é o que resulta da mesma quando se alude à
separação das igrejas e outras comunidades religiosas da pessoa coletiva
pública Estado. A jurisprudência do Tribunal Constitucional corrobora esta
leitura […] Veja-se, por
exemplo, o Acórdão 544/14, no qual se alude a uma neutralidade dos poderes
públicos, imposta pela Constituição, embora, naturalmente, não em termos
rígidos.”
Aquele
acórdão, de 15 de Julho de 2014, explicita: “[…] a Constituição exige dos
poderes políticos a neutralidade em matéria religiosa, num Estado laico e não
confessional, com expressão no princípio da separação entre as igrejas e outras
comunidades religiosas e o Estado (artigo 41.º, n.º 4) […]. E o n.º 4 do artigo
41.º estipula: “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do
Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do
culto.”
Sabemos
da neutralidade colaborante portuguesa, por exemplo na Guerra do Golfo (1990-91)!
O
regime dos Estados Unidos da América (EUA) é republicano e os Chefes de Estado juram
sobre a Bíblia e clamam “God bless America!” e tem o dia de Ação de Graças. Por
sua vez a França, tão radicalmente laica, financia as obras de restauro das
catedrais. Por isso, o laicismo não é um imperativo do republicanismo. Existe
em ditaduras e monarquias e não em algumas repúblicas.
Quanto
à JMJ, a despesa é necessária. Importa que seja mínima e que haja retorno
significativo.
De
laicismo, como luta pelo bem-estar do povo (láos,
em Grego), é que Portugal precisa!
2023.01.29 – Louro de Carvalho
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