A 3 de
janeiro, José Pedro Teixeira Fernandes escreveu, no Público, um artigo de opinião sob o título “A Rússia, o Ocidente e
a democracia liberal”, em que sustenta a tese de que a Rússia não adotará uma
democracia liberal representativa ao jeito do Ocidente.
A
contemporânea ideia de democracia representativa, enquanto modelo político,
remonta, no Ocidente, à transição do século XVIII para o século XIX, sendo o
seu evento de referência a Revolução Francesa, com a trilogia da igualdade,
liberdade e fraternidade.
O tríplice
ideário abateu, ao menos teoricamente, a desigualdade tradicional entre
príncipes e súbditos, criando para todos o estatuto de cidadãos (foram definidos
os direitos do homem e do cidadão), e extinguiram-se os títulos nobiliárquicos.
Porém, não foi um sucesso de igualdade a revolução, pois deixou para trás as
mulheres (a declaração dos direitos da mulher não foi assumida) e estabeleceu o
voto censitário (aberto a quem tivesse poder económico e o mínimo de
literacia). A liberdade defendida era a do cidadão e não apenas a da nação. No
entanto, a onda de perseguições surgiu do não reconhecimento prático da
liberdade para todos. A fraternidade ficou eclipsada, exceto no quadro dos
franco-mações e em grupos congéneres. E o regime de república desembocou no
regime imperial de Napoleão Bonaparte.
Com a
invasão da Ucrânia pela Rússia reergueu-se em muitas das mentes o facto da não
absorção da democracia representativa liberal pela Rússia, o que nem mesmo
Mikhail Gorbatchov propunha no âmbito da Perestroica e da Glasnost.
Diz o
renomado colunista que, olhando para a história da Rússia, “apenas houve duas
curtas experiências liberais à entrada e à saída do século XX”. A primeira,
efémera, ocorreu em 1917, na I Guerra Mundial, com a Revolução de Fevereiro, e foi
anulada pela Revolução bolchevique de outubro, transformação que levou à “desintegração
parcial do Estado russo, com substanciais perdas territoriais só recuperadas
com dificuldade mais à frente”. A segunda ocorreu nos anos 1990, após a
desintegração da União Soviética, de que resultaram significativas perdas
territoriais e de influência no mundo, bem como a mudança para a economia
capitalista liberal, o que, para muitos russos, constitui “uma memória
traumática, de penúria, de caos e de fraqueza”. E Teixeira Fernandes
questiona-se se “a inexistência de uma democracia liberal” resulta só do “autoritarismo
de Vladimir Putin” ou se “a explicação é mais complexa e profunda”.
Todavia, face ao caso
da Rússia, levantam-se outras questões pertinentes sobre a democracia liberal e
sobre a validade universal das suas características: se é forma de governo
válida para qualquer sociedade; se é “a melhor forma de governação humana” ou a
menos má, frente às demais alternativas de regimes políticos; e, sendo forma de
governo generalizada nas sociedades humanas, por que motivo não funciona em
muitos Estados nem é desejada por muita da população. Não obstante, a rejeição
da tirania e da opressão é transversal a todo o ser humano. Pela sua
complexidade, não há resposta definitiva, mas o colunista dá sugestões de
resposta.
A ideia de
democracia liberal, enquanto pretenso modelo político universal, “tem a sua
génese no Ocidente na transição do século XVIII para o século XIX”, inspirada
na democracia ateniense da Antiguidade clássica (rejeitou-se o modus vivendi espartano), embora assuma
o status de criação moderna e
contemporânea. E Teixeira Fernandes sustenta que, sendo ideia política secular,
está subtilmente imbuída da mundivisão universalista do Cristianismo latino (católico
e protestante). Aliás, o conceito de Ocidente, inicialmente geográfico-secular “tem
origem na designação medieval de Cristandade ocidental”. Contudo, o Iluminismo
do século XVIII fê-lo passar a usar crescentemente a razão para delinear a sua
peculiar cosmovisão universalista, afastando-se dos “tradicionais princípios
dogmáticos de fé religiosa”. E emergiu “a convicção da existência de uma razão
universal, similar em todos os seres humanos”. Assim, pelo uso da razão, “qualquer
ser humano, em qualquer parte do mundo, chegaria a similares valores e
princípios”. E neste quadro mental, aliado à ideia de progresso moral (de
princípios, valores e normas) e material (científico, técnico e tecnológico), se
alicerça a universalidade da democracia liberal no Ocidente.
Ao invés, a
Rússia, cuja história oscila entre a admiração e a rejeição para com o
Ocidente, tem da democracia liberal impressão e conceito que a marcam negativamente
em termos emocionais.
Simultaneamente, o mundo
globalizado deste século é palco de outras cosmovisões de convicções
universalistas antinómicas e antagónicas. Por exemplo, a do Islão estriba-se na
certeza de que a sua visão do mundo é válida e salutar para toda a humanidade,
“ancorada numa fé religiosa tradicional e dogmática”, que, ao invés do que
sucedeu no Ocidente, não se transmutou em ideário e em práxis secular e
racional. Muitos islamitas estão convictos da bondade e da validade universais
dos seus “valores, religiosos, morais e políticos” (E por eles matam!), não se
colocando a questão da autonomia das realidades terrestres, face ao devir
social e político, que a práxis católica descobriu, pelo menos, a partir do
Concilio Vaticano II (1962-1965), embora entenda que é seu dever imbuir do espírito
evangélico as ditas realidades terrestres: a fé deve ter consequências na
política, na economia e na ação social. Assim, não é por acaso que a maioria
dos islamitas rejeite o demoliberalismo, visto como universalismo ocidental,
émulo das suas sociedades.
Porém, como
afiança Teixeira Fernandes, o caso da Rússia é diferente. Nesta, enraizou-se
uma funda rivalidade com o Ocidente, cuja origem está nas divisões do
Cristianismo, assumindo o Império Russo, como herdeiro do Império Bizantino, um
“sentido de missão, de excecionalismo e de identidade única”: o Estado russo é,
assim, o grande “guardião do verdadeiro Cristianismo”, o ortodoxo. Tanto assim
é que, apesar da índole ateia e antiteísta do regime implantado pelo
bolchevismo, que perseguia duramente a religião católica (os seus agentes
chegaram a ser considerados espiões do Vaticano), tolerava e até protegia as
comunidades ortodoxas. E, agora Vladimir Putin, que recusou o cessar-fogo na
Ucrânia pelo Natal do Ocidente, decretou-o para o Natal ortodoxo, a 6 e 7 de
janeiro.
É certo que
a Rússia teve o seu momento de metamorfose secular, que resultou, não do
Iluminismo do século XVIII, euroamericano, mas da revolução bolchevique de
1917. Aí se erigiu a Rússia soviética como guia do universalismo do
proletariado e das classes trabalhadoras. Mas o colapso do regime soviético,
após a queda do muro de Berlim em 1989, fez reemergir gradualmente o excecionalismo
russo, de contornos ortodoxos, dando aos russos a ideia de voltarem a ser um
farol da humanidade e não de serem seguidores dos “modelos culturais e
políticos” do Ocidente.
O entendimento das
dificuldades do demoliberalismo pela Rússia só é possível se percebermos os
limites da visão ocidental, como tábua interpretativa do mundo. Não é a evolução
da Rússia que não encaixa na lógica do Ocidente. E a ideia de os seres humanos
usarem a razão, em qualquer parte do mundo, para fazerem escolhas políticas ou
económicas é uma abstração ilusória. Na realidade, o que há de mais próximo
desse ideal do ser humano é, paradoxalmente, não a pessoa humana, mas a máquina
que use a inteligência artificial. Por isso, a democracia liberal é aceite ou
rejeitada, não apenas mediante escolhas racionais de uma sociedade política
(que escolheria a melhor forma de governação humana ou a menos má, o que, a
olhos ocidentais, se concretiza na democracia liberal representativa), nem
mediante a enraizada convicção de evolução e progresso, mas “pelo facto de as
ideias políticas gerarem emoções – positivas ou negativas – que afetam profundamente
as escolhas dos indivíduos e das sociedades. Ora, na Rússia, cuja história
oscila entre admiração e a profunda para com o Ocidente, a democracia liberal
ganhou uma carga emocional fortemente negativa.
Assim, a
escolha de um determinado regime político não é neutral para o poder. Há casos em
que o pode amplificar e casos em que o pode diminuir – em ambos, de forma
subtil ou ostensiva. A democracia liberal está associada ao poder ou à fraqueza,
o que a torna atrativa ou a torna aberrante. No Ocidente, é enfatizada pelos seus
valores e princípios superiores, “de possibilidade de escolha dos governantes,
de liberdade e de respeito pela dignidade do ser humano”. Contudo, a adesão aos
seus princípios e valores e a sua legitimidade decorrem da perceção que der de
bem-estar material, de solução para os problemas existências e do poder e
influência no mundo pela exportação do seu modelo – complexo de fatores ou de
adjuvantes que “reforça a atracão aos olhos ocidentais”.
Por isso, o
Ocidente pretende que a Rússia se transforme numa democracia liberal representativa,
não tanto pelo ideal dos direitos humanos ou pela rejeição da opressão do povo.
O Ocidente pretende exportar a sua democracia como se fosse uma boa mercadoria.
Para tanto, não se importa de usar armas de destruição e de morte (bélicas,
comerciais e informáticas) que vai descobrindo e apurando. E a reação típica da
Rússia é a posição inversa: rejeitar o demoliberalismo, visto como colonização
do Ocidente e estender ao máximo o seu poderio para impor os seus valores
histórico-religiosos, minando, destruindo e matando. Não é por acaso que o ortodoxo
Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias apoia a guerra na Ucrânia e considera
Vladimir Putin o homem a quem Deus confiou uma missão universal de defesa dos
valores ancestrais da nação russa.
2023.01.05 – Louro de Carvalho
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