Chegou à
generalidade das livrarias, em meados de janeiro deste ano de 2023, o livro A
Desinformação – Contexto Nacional e Europeu, da responsabilidade da Entidade Reguladora para Comunicação
Social (ERC), editada pela Almedina, e que teve a supervisão do jornalista
Mário Mesquita, vice-presidente da ERC, até ao seu falecimento inesperado, a 27
de maio de 2022.
Porém, ao invés da versão inicial, o nome do supervisor
foi retirado da capa, mercê da douta decisão do presidente da ERC, Sebastião
Póvoas, juiz conselheiro jubilado, que se encontra em fim de mandato.
O livro, que
integra uma coleção de trabalhos sobre regulação dos media, editado pela
Almedina em colaboração com a ERC, foi lançado em outubro com o título acima
referido. E sua capa é publicitada nos sites das principais livrarias,
incluindo o site brasileiro da Almedina, com o nome do antigo jornalista, professor
e vice-presidente da ERC, mas a versão final, que está a venda, eclipsou o nome
do anterior vice-presidente da ERC.
Esse
desaparecimento foi revelado, a 23 de janeiro, pelo Diário de Notícias (DN),
que citou testemunhos como o de Ana Mesquita, filha de Mário Mesquita, acerca
do envolvimento do académico, enquanto “mentor do projeto” e acompanhante da
preparação do livro até à fase final da pré-publicação, pois sabia, pelo pai,
que “o livro estava feito e tinha sido entregue para revisão de gralhas,
formatações”.
É uma falha
grave, pela fuga deslavada à verdade das coisas, e desrespeitosa da memória do
mentor. que teve o azar de deixar inesperadamente o mundo dos vivos.
O livro teve a sua génese em 2018. E foi
apresentada uma primeira versão, a 15 de abril de 2019, no Parlamento, pelo
próprio Mário Mesquita, então vice-presidente da ERC e supervisor da pesquisa.
É
de anotar que o título do livro vinha complementado com um parêntesis: Contributo da ERC para o debate na
Assembleia da República, o que lhe dada o cunho de instrumentos de reflexão
para o debate parlamentar. E a ficha técnica explicitava: edição: ERC –
Entidade Reguladora para a Comunicação Social; supervisão: Mário Mesquita,
vice-presidente da ERC; coordenação: Marta Carvalho, técnica do Departamento
Jurídico da ERC; equipa técnica: Eulália Pereira e Pedro Puga, técnicos do
Departamento de Análise de Media da ERC, Francisco Azevedo, técnico do Departamento
Jurídico da ERC; consultores: Rui Mouta, diretor do Departamento Jurídico da
ERC, Tânia de Morais Soares, diretora do Departamento de Análise de Media da
ERC; data: 4 de abril de 2019.
A coleção é,
pois, uma criação de Mário Mesquita. E, quando ele morreu a obra estava
bastante adiantada sob a sua supervisão, como referiu ao DN, sob anonimato, pessoa próxima do processo. Todavia, ao chegar
às livrarias, no mês de janeiro, sem o nome de Mário Mesquita na capa, incluía,
na ficha técnica, enquanto supervisores da obra, os nomes de Mário Mesquita e
João Pedro Figueiredo, membro do Conselho Regulador da ERC, que terá
acompanhado a fase final do processo, a partir do momento em que a doença de
Mesquita o afastou desse trabalho.
João Pedro
Figueiredo terá recusado que o seu nome substituísse o de Mesquita na capa, o
que lhe foi proposto pelo presidente da ERC, Sebastião Póvoas. E o diretor
editorial da Almedina confirma que “houve uma versão em que o nome [de
Mesquita] estava na capa e, a certa altura, foi retirado, por opção da ERC, que
é quem coordena essa coleção.”
Por seu
lado, a ERC respondeu ao DN a
explicar que, na fase de pré-lançamento, “uma das muitas situações que foi
repensada foi a referência na capa aos responsáveis pela supervisão deste
trabalho em perfeita igualdade, tendo-se optado por fazer essa menção apenas no
interior da publicação, na respetiva ficha técnica.” A decisão, segundo o DN, foi do presidente da ERC, que tem o
pelouro das publicações editadas por aquela entidade.
A inimizade
por Mário Mesquita era conhecida e assumida por Sebastião Póvoas, que usou como
argumento para pedir escusa de se pronunciar num incidente de suspeição
levantado pela Cofina em relação ao antigo jornalista. Assim, de acordo com
pessoas conhecedoras do processo, a retirada do nome de Mesquita da capa dever-se-á
a essa inimizade. Porém, Ana Mesquita prefere acreditar que “só pode ser um
equívoco”, pois “uma pessoa quando morre não perde a autoria dos seus trabalhos”
e a ERC, que é uma entidade “reguladora”, deve reger-se por princípios éticos.
A notícia da
retirada do nome da capa do livro provocou indignação e perplexidade em muitos
dos que foram, ao longo das últimas décadas, amigos, colegas e alunos de
Mário Mesquita e levou à circulação, para subscrição, de uma nota de repúdio sobre
a retirada do seu nome da capa do livro, classificando-a como “ato vil e
mesquinho, que atenta contra o inexcedível legado de Mário Mesquita e contra a
dignidade do seu caráter”. Efetivamente, como vinca a nota, assinada por 350 jornalistas, professores
universitários e investigadores, os amigos,
colegas, alunos e admiradores manifestam “o seu repúdio por aquilo que
consideram ser um ato de humilhação post mortem”.
Nunca é de
mais referir que esta obra, publicada recentemente pela Almedina, no âmbito da
coleção Regulação dos Media (coordenada, aliás, pelo próprio Mário Mesquita),
retoma e amplia um relatório publicado em 2019 com o mesmo título, enquanto
contributo da ERC para o debate sobre desinformação na Assembleia da República,
supervisionado por Mário Mesquita, como indica a respetiva ficha técnica.
Apesar de tudo, como o professor nos deixou abruptamente em maio de 2022, a
obra procura honrar o seu legado. E, tal como a própria problemática, o estudo também
evoluiu no tempo. Quando
foi principiado, o fenómeno ainda era designado simplisticamente como fake news.
Agora,
o livro, que decorre daquele primeiro exercício e visa atualizá-lo, funciona
como um espelho da evolução que as abordagens da desinformação foram sofrendo.
Assim, visa uma reflexão dentro do quadro legal europeu e nacional,
circunscrita, porém, ao leque de atribuições e competências cometidas ao
regulador dos media.
***
A Comissão de
Trabalhadores da ERC (CT-ERC) afirmou, explicitamente, a 27 de janeiro, que as
declarações do presidente cessante, Sebastião Póvoas, sobre o antigo membro do
Conselho Regulador Mário Mesquita “ferem a dignidade de todos os trabalhadores
e da própria instituição”, tal como contraditou as acusações de bloqueio dos trabalhadores
ao funcionamento da entidade.
Esta posição surge na sequência da resposta do presidente da
ERC à notícia avançada pelo DN sobre
o facto de o nome de Mário Mesquita estar fora da capa do livro da ERC.
Face à notícia difundida com o título “Sebastião Póvoas: Não
há afronta nenhuma. Isto é uma invenção. E não me pesa minimamente na
consciência”, a CT-ERC manifestou, em comunicado, a sua perplexidade com as afirmações
proferidas pelo presidente da ERC.
No dizer da CT-ERC, tais declarações “ferem a dignidade de
todos os trabalhadores e da própria instituição”, pelo que se torna evidente a “necessidade
de as contraditar”, salientando-se também que “a imputação de problemas de
funcionamento aos trabalhadores é falsa, não havendo qualquer histórico de
tentativa de bloqueio da ação da ERC, ou do seu Conselho Regulador, nem
quaisquer tentativas de incumprimento do Código de Trabalho por parte dos
trabalhadores ou da CT-ERC”.
Aliás, não pode ser afirmado o contrário, pois a CT-ERC
diz-se em condições de provar que, no mandato do presente Conselho Regulador,
terminado a 14 de dezembro de 2022, diversas obrigações do Código do Trabalho
não têm sido cumpridas, nomeadamente, as obrigações de avaliação de desempenho
(inexistente desde 2018), de existência de um plano formação profissional, de
cumprimento do direito de informação da CT-ERC.” Além disso – acusa a CT-ERC –,
solicitações dos trabalhadores ao abrigo do Código do Trabalho, como pedidos de
teletrabalho ou de estatuto de trabalhador-estudante, têm sido decididas
arbitrariamente.
Por isso, “é com espanto que os trabalhadores têm assistido à
sua exposição pública na comunicação social, na sequência de deliberações nas
quais tomaram parte como técnicos, mas cuja responsabilidade decisória é do
Conselho Regulador, sem que da parte do órgão dirigente da ERC seja tomada
qualquer medida de defesa e proteção do bom nome destes técnicos.”
E, concluindo, a CT-ERC “presta toda a solidariedade ao
Professor Mário Mesquita, que, no exercício das suas funções, sempre manifestou
publicamente as suas posições, não sendo omisso nem temendo o dissenso”.
***
Na verdade, parafraseando Ana Mesquita, se todas as instituições
devem pautar-se por princípios éticos, muito mais uma entidade reguladora. É
pena que a entidade vocacionada para dirimir conflitos surgidos em e com órgãos
de comunicação social não dê o exemplo de ética no apreço pela liberdade de opinião
e de expressão e de respeito pela lei do trabalho ou que se deixe mover por
velhas inimizades, a ponto de desrespeitar a autoria explícita da obra de quem morreu.
Oxalá, não se dê azo a que os opositores contestem, com
razão, a existência de um regulador da comunicação social em democracia. Não convém
a ERC como cancro na comunicação social, tolhendo a liberdade de expressão ou desrespeitando
qualquer autoria, sobretudo post mortem.
2023.02.01- Louro de Carvalho
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