No
dia 12 de fevereiro, a Comissão Independente (CI) para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na
Igreja Católica entregou, em formato digital, à Presidência da Conferência
Episcopal Portuguesa (CEP) o seu relatório final intitulado “Dar voz ao
silêncio”, elaborado a partir de testemunhos sobre casos ocorridos nos últimos
70 anos. A entrega decorreu numa sessão realizada na sede da CEP, com a
presença da respetiva presidência e dos membros da CI.
Recorde-se que, na Assembleia Plenária de novembro de
2021, a CEP decidiu, por unanimidade, criar uma comissão para estudar os casos
de abuso sexual na Igreja Católica.
A CI, que iniciou os trabalhos em janeiro de 2022,
definiu um ano como prazo de duração dos mesmos, com a apresentação final de um
relatório, foi apresentada, publicamente, no dia 10 desse mês. E revelou, dez
meses depois, ter validado até então 424 testemunhos, apontando para um número
significativo de abusadores entre 1950 e 2022 – número que deu, então, muito
que falar, devido à aparente desvalorização da parte do Presidente da República,
com base na estatística e não tanto na escandalosa gravidade do fenómeno.
É coordenada a CI por Pedro Strecht, médico de psiquiatria
da infância e adolescência, que, entre vários trabalhos na área da
pedopsiquiatria, foi supervisor do Projeto de Apoio à Família e à Criança
Maltratada, coordenador da Equipa de Intervenção Psicossocial do Gabinete de
Reconversão do Casal Ventoso, de Centros Educativos do Instituto de Reinserção
Social e do Gabinete para Intervenção em Crise da Casa Pia de Lisboa. E integra
Álvaro Laborinho Lúcio, juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de
Justiça, antigo Ministro da Justiça; Ana Nunes de Almeida, socióloga e
investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e
presidente do seu Conselho Científico, que coordenou o estudo sobre ‘Maus
Tratos a Crianças na Família’, encomendado pela Assembleia da República (AR),
em 1999; Daniel Sampaio, psiquiatra, professor catedrático jubilado da
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Filipa Tavares, assistente
social e terapeuta familiar, que trabalhou cerca de 25 anos numa Instituição Particular
de Solidariedade Social (IPSS), ‘Casa da Praia/Centro Dr. João dos Santos’, com
famílias disfuncionais e de risco; e Catarina Vasconcelos, cineasta, licenciada
na Faculdade de Belas Artes com pós-graduação em Antropologia Visual no ISCTE e
mestrado no Royal College of Art, Londres.
Cooperou com a CI o Grupo de
Investigação Histórica (GIH), constituído por Francisco Azevedo Mendes
(coordenador), Júlia Garraio, Rita Almeida de Carvalho e Sérgio Ribeiro Pinto, e
que realizou pro bono todo o exigente e sigiloso trabalho nos Arquivos
Históricos da Igreja.
D. José Ornelas, bispo de Leiria-Fátima e presidente
da CEP, garantiu que o relatório será lido “com toda a atenção” para “fazer jus
aos dramas que foram revelados” e à “seriedade” do trabalho desenvolvido pelos
membros da CI e pelos investigadores que consultaram os arquivos históricos,
pois, como verificou, “este trabalho em comum, com a independência de papéis e
de competência num caminho comum ficará certamente ligado à
história de todos nós, como património para continuar o caminho iniciado”.
E, ao receber o documento das mãos de Pedro Strecht, disse: “Recebemos com
profunda emoção e agradecimento o vosso relatório.”
O presidente da CEP, que estava acompanhado do vice-presidente,
D. Virgílio Antunes, bispo de Coimbra, e do secretário, padre Manuel Barbosa, valorizou
o trabalho focado nos mais frágeis e “a necessidade de unir esforços
diferenciados para obter bons resultados, na capacidade de ultrapassar
preconceitos e dificuldades”, em ordem a “uma Igreja e uma sociedade mais
justas e capaz de oferecer a todos o direito a que têm de dignidade, de defesa
da sua integridade”. E acentuou a importância da Assembleia Extraordinária da
CEP agendada para 3 de março, para “assumir” os dados do relatório agora
entregue e “refletir sobre o seu significado”.
Estes trabalhos, porfiou, ajudarão a “decidir o melhor
seguimento para fazer justiça” ao trabalho da CI e “sobretudo, ao sofrimento
das vítimas”, que foram o primeiro eixo motor deste processo.
“Isso é o que como CEP entendemos como a missão que
recebemos de Deus na sua Igreja e para o qual dais, com este relatório, um
grande contributo”, reforçou D. José Ornelas, que sublinhou a “unanimidade a
CEP” em confiar o estudo de casos de abuso na Igreja a uma CI, para “estudar a
fenomenologia desta realidade” que preocupa “profundamente pela dor de quem
sofreu” e pela “contradição que significa” em relação à “missão como Igreja”.
Pedro Strecht agradeceu à CEP a confiança depositada
na comissão e a disponibilização dos “meios para que o trabalho fosse executado
e prosseguisse sempre em total isenção e independência”. “Todos esperamos que este
trabalho dê frutos e possa constituir uma nova etapa dentro daquilo que mais
desejamos que é o bem-estar as crianças e o conhecimento da própria Igreja
daquilo que aconteceu de errado no passado e a perspetiva positiva da
construção de um novo futuro”, afirmou o pedopsiquiatra, agradecendo também a
todos os membros da CI e ao grupo de investigação histórica.
Na manhã do dia 13, a CI apresentou, publicamente, o
relatório final sobre os casos de abuso sexual na Igreja Católica entre 1950 e
2022, no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, onde esteve, entre outros
responsáveis católicos, o padre Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia
para a Proteção dos Menores, da Santa Sé.
O relatório sugere um novo organismo, para dar
“continuidade” ao estudo e ao acompanhamento do tema, de forma
“multidisciplinar, com membros internos e externos à Igreja”.
À CI, “composta por membros externos e membros
internos, com os primeiros em maioria”, competiria “receber os dados que
chegassem ao seu conhecimento, validá-los e remetê-los, consoante os casos,
tanto ao Ministério Público (MP), como às estruturas de investigação e
julgamento da própria Igreja, nos termos das normas do Direito Canónico em
vigor”, indica o documento ora divulgado, que sustenta que a nova comissão, com
novo estatuto, inclua “psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familiares,
psiquiatras, juristas, sociólogos e outros, com novos objetivos, prosseguindo,
a partir dos conhecimentos agora adquiridos, o propósito de assegurar um canal
de comunicação aberto à receção de denúncias ou testemunhos de abusos sexuais
de crianças por membros da Igreja Católica”.
A CI, que entende que estes crimes só deviam
prescrever depois de a vítima perfazer os 30 anos de idade, em voz dos atuais
23 (uma competência da AR), deixa uma série de recomendações, à Igreja e à
sociedade, convidando os responsáveis católicos a reconhecerem a “existência e a
extensão do problema” e a assumirem “o compromisso na sua adequada prevenção
futura”.
A síntese enviada aos jornalistas vinca a importância
do conceito de “tolerância zero”, proposto pelo Papa Francisco, e o “dever
moral de denúncia”, por parte da Igreja, e de colaboração com o Ministério
Público em casos de alegados crimes de abuso sexual. Os responsáveis sugerem um
“pedido efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua
materialização”.
Outra das preocupações, relativas à Igreja Católica,
tem a ver com a “formação e supervisão continuada e externa de membros da
Igreja”. Assim, a CI propõe a cessação
de espaços físicos fechados, individuais, enquanto locais de encontro e prática
religiosa. E outra recomendação passa pela oferta de “apoio
psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras”, como
responsabilidade da Igreja e em articulação com o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Quanto à sociedade, é proposta a “realização de um
estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de
socialização”, bem como o “aumento da idade da vítima para efeitos de
prescrição de crimes”. Deixam sempre sequelas, pelo menos de ordem psíquica.
Pedro Strecht disse aos jornalistas que a decisão
sobre punições está “do lado da justiça”, considerando que o trabalho da CI
“pode ser um exemplo” para outros contextos. “O que importa é não parar este
processo de evolução”, a nível global, da Igreja Católica, sustentou, vincando que
nenhuma das vítimas pediu indemnizações, mas algumas assumiram a necessidade de
acompanhamento “psicológico ou psicoterapêutico”.
Álvaro Laborinho Lúcio respondeu a uma questão sobre a
“ocultação”, por parte de responsáveis da Igreja Católica, assumindo que a
mesma existiu em relação a casos de abusos sexuais. Falou da importância de
iniciar “um caminho de desocultação”, vendo na criação da CI, nomeada pela
própria Igreja, um sinal, nesse sentido. Considerou que “o discurso crítico”
deve ser dirigido para a “atitude cultural” da Igreja. “Estamos a falar de um
tempo em que a ocultação era generalizada” e que, até 2007, tinha “respaldo na
própria lei”, precisou. E, embora tenha admitido que exista, nalguns setores da
Igreja Católica, o desejo do “regresso a uma cultura da ocultação”, registou
uma disponibilidade “evidente” e uma “abertura para a desocultação”.
O caráter sistémico dos abusos não pode
generalizar-se a toda a Igreja, pois diz respeito a uma minoria percentual da
totalidade dos membros. Sistémica foi a ocultação desde logo ditada pelos
próprios, bem como dos superiormente colocados na hierarquia que deles tiveram
conhecimento. E Laborinho
Lúcio falou num “dever inequívoco” de denúncia destes crimes, depois de o
relatório assinalar “práticas de menorização da importância ou da ocultação de
abusos sexuais”.
O psiquiatra Daniel Sampaio apontou à necessidade de
“desocultação” na Igreja e na sociedade.
“Os abusos sexuais de crianças na Igreja Católica
portuguesa existiram no passado e existem ainda no presente. Portugal não é um
caso à parte face a outros países”, pode ler-se no relatório.
O documento precisa que, a partir das 512 vítimas
diretas (25 caos foram remetidos ao MP), cujos testemunhos foram validados, de
entre os 564 apresentados, foi possível chegar a, pelo menos, outras 4.815, alguns
abusadores referenciados ainda permanecem em atividade eclesiástica.
“Nalguns contextos, os abusos tiveram caráter
sistémico, isto é, ancoravam-se na estrutura de funcionamento de certas
instituições da própria Igreja. Uma atitude clericalista, a ignorância ou a
desvalorização dos direitos da criança, o fechamento aos olhares de fora, tudo
ditou a perpetuação dos abusos e reforçou o silenciamento das vítimas”, indica
a CI.
A idade
média das vítimas é de 52,4 anos, 52,7% são homens e 42,2% são mulheres; 88,5%
reside em Portugal, sobretudo em Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Leiria; 53% dizem-se
católicos e 25,8 são católicos praticantes; os abusos sexuais ocorrem, em regra,
em menores de 13 anos e 18% das meninas são vítimas de abuso até aos 18 anos; e
a primeira vez em que há abuso é, em média, pelos 11 anos; os abusadores são,
por norma, adultos próximos da criança, familiares e conhecidos e os abusos
ocorreram, maioritariamente, em instituições religiosas, desportivas e
instituições de acolhimento; entre 85% a 95% dos abusadores são homens, dos
quais 77% são padres.
Questionado sobre a ausência de um número possível de
abusadores, Pedro Strecht assumiu que há vários casos em que as vítimas não
identificam o abusador, existindo apenas uma “estimativa”.
Ana Nunes de Almeida falou numa questão “central” para
a Igreja, que pode “orgulhar-se” por ter sido “pioneira”, ao encomendar este
estudo.
Na tarde do dia 13, a partir das 16 horas, o
presidente e os membros do Conselho Permanente da CEP – que acompanharam a
apresentação do relatório final – encontraram-se com os jornalistas, numa conferência
de imprensa, na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, no piso 1 do
edifício da sua biblioteca, de que resultou um comunicado, que reitera o que foi
referido pela CI.
Enfim, importa
que a Igreja Católica saiba assumir a realidade e as responsabilidades e que o
inquérito se faça, com a mesma crueza, nos diversos campos da convivência
social, embora se insista em que a responsabilidade da Igreja é singular por
cochar com a sua missão.
2023.02.13 – Louro e Carvalho
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