Os
juízes do Tribunal Constitucional (TC) pronunciaram-se, no dia 27 de fevereiro,
pela não inconstitucionalidade da nova lei das ordens profissionais, tendo-se
registado dois votos de vencido e a consequente declaração de voto.
“O
Tribunal Constitucional não considerou desrespeitados quaisquer princípios ou
normas constitucionais, não se pronunciando, consequentemente, no sentido da
inconstitucionalidade de nenhuma das disposições fiscalizadas”, disse o
presidente, João Caupers, que leu, em sessão pública, no Palácio Ratton, sede
deste tribunal superior, a decisão do coletivo de juízes que valida a alteração
legislativa promovida pelo Governo e remetida para fiscalização preventiva do
TC a pedido do Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, formulado
a 1 de fevereiro.
Segundo a
nota publicada então, o PR considerava que o decreto da Assembleia da República
(AR) suscitava “dúvidas relativamente ao respeito de princípios como os da
igualdade e da proporcionalidade, da garantia de exercício de certos direitos,
da autorregulação e democraticidade das associações profissionais, todos
previstos na Constituição da República Portuguesa”. Por consequência, o chefe de
Estado, “tendo em atenção a certeza e a segurança jurídicas”, decidiu submeter
a fiscalização preventiva de constitucionalidade pelo TC, o Decreto n.º 30/XV da Assembleia da República, que “altera a legislação relativa às associações
profissionais e o acesso a certas profissões reguladas”.
O diploma foi aprovado em votação final global, a 22 de dezembro de 2022,
na AR, com votos favoráveis do Partido Socialista (PS), da Iniciativa Liberal (IL)
e do Pessoas-Animais-Natureza (PAN). Contra estiveram o Partido Social
Democrata (PSD), O Chega (C) e o Partido Comunista Português (PCP), enquanto o
Bloco de Esquerda (BE) e o Livre (L) se abstiveram.
Agora, pelo Acórdão n.º 60/2023,
o TC decidiu “não
se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas do Decreto n.º 30/XV da
Assembleia da República, publicado no
Diário da Assembleia da República, II Série – A, número 151 – Suplemento, de 23
de janeiro de 2023, e enviado ao Presidente da República para promulgação como
lei, que procede à alteração da Lei n.º 2/2013, de 10 de
janeiro, que estabelece o regime jurídico
de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais”, contidas:
a) no artigo 2.º, na parte em que altera: o n.º 9 do artigo 8.º, a alínea e) do
n.º 2 do artigo 15.º, a alínea a) do n.º 2 do artigo 19.º e o artigo 20.º,
todos da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro; b) no artigo 3.º, na
parte em que adita o artigo 15º-A à mesma Lei n.º 2/2013, de 10
de janeiro, Lei das Associações Públicas Profissionais
(LAPP).
Após ter
recebido o requerimento do PR, que apresentava as dúvidas de
constitucionalidade quanto à composição do júri de avaliação dos estágios
profissionais, à composição do órgão disciplinar (ambas por integrarem
elementos não inscritos na respetiva ordem), ao estatuto do provedor (por
alegada violação dos princípios da proporcionalidade e da autorregulação, às
incompatibilidades para o exercício de quaisquer
funções dirigentes na função pública (por alegada violação do princípio da
igualdade) e à composição e competências do órgão de supervisão (por a maioria
ser de não inscritos na respetiva ordem e o Presidente não poder ser um dos
inscritos). Estas disposições, alegadamente, violariam o princípio da igualdade
e o da proporcionalidade, a autonomia e a autorregulação no interior de cada ordem
profissional.
Previamente à sua decisão, o TC solicitou o esclarecimento do Presidente
da AR, no atinente à génese (projetos do PS e do PA) e à evolução do processo
legislativo, designadamente as entidades ouvidas (Conselho Nacional das Ordens
Portuguesas, as várias Ordens, confederações sindicais, algumas associações,
Autoridade da Concorrência e Provedora de Justiça), bem com as propostas de
alteração (do PSD, do PS e do PCP) e os relatórios (da discussão na generalidade
e da discussão e votação final global).
A fundamentar a decisão, os juízes do TC dissiparam as dúvidas do PR,
com base na Jurisprudência do Tribunal, bem como na da Comissão Constitucional,
que enformava as decisões do Conselho da Revolução em matéria da apreciação da
constitucionalidade, antes da primeira revisão constitucional, e na doutrina formulada
e fixada pelos constitucionalistas. Além disso, desmistificaram o sentido literal
ou o sentido paraliteral (conforme os casos) de algumas normas constitucionais
invocadas, não raro ao serviço de uma postura corporativista e do fechamento da
organização e enclausuramento de associação profissional pública, que exerce um
poder público por delegação do Estado, mas que tende a esquecer o interesse público
e a lesar os utentes.
***
Em reação ao
acórdão do TC, o bastonário da Ordem dos Economistas disse que o Tribunal é “competente
nesta matéria e tomou a decisão: está tomada”. “É um órgão de soberania e
cabe-nos, naturalmente, respeitar as decisões que são tomadas”, insistiu em
entrevista à RTP, frisando, no entanto, que o facto de o TC considerar que não
é inconstitucional “não quer dizer que não seja inapropriada”.
António Mendonça sustenta que a contestação tem a ver com o
facto de as alterações legislativas que foram aprovadas relativamente à
legislação anterior (de 2013 a 2015) serem “inapropriadas do ponto de vista do
exercício e das competências próprias das ordens enquanto associações públicas
profissionais”, sendo ainda “limitadoras do próprio funcionamento democrático
das instituições”. E avançou à RTP que já estava marcada uma reunião das
ordens profissionais para o dia 1 de março, para fazer o ponto de situação e
analisar de que modo podem as ordens atuar após a decisão do TC.
Após a decisão do TC, cabe ao Presidente da República
promulgar o diploma para valer como lei ou vetá-lo politicamente, devolvendo-o
à AR, com mensagem a expor as razões políticas da discordância. Não obstante, Marcelo
Rebelo de Sousa revelou que promulgará o diploma sobre as ordens profissionais,
considerado constitucional pelo TC. Com efeito, o que o chefe de Estado pretendia era “segurança”
e “certeza”.
“Havia 18 ou 19 ordens profissionais que entendiam que o diploma era
muito inconstitucional, o governo entendia o contrário, tal como a maioria da
Assembleia da República, nada como o TC clarificar isso”, afirmou o chefe de
Estado em declarações aos jornalistas, no final de uma cerimónia no Instituto
Superior Técnico, em Lisboa.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, a decisão do TC “significa que deu luz
verde à maioria do parlamento e ao governo para fazer a intervenção pretendida
em termos do novo regime” das ordens profissionais.
Como escrevia o constitucionalista Vital Moreira, a 2 de fevereiro, o PR não tem razão quanto à objeção do suposto “princípio
de autorregulação” das ordens profissionais, pois não há “nenhum direito constitucional nem a criar
ordens profissionais nem à autorregulação profissional”. São decisões
discricionárias do Estado, que precisam de fundamentação e que são reversíveis.
A única
condição constitucional é a gestão democrática (autogoverno) das ordens
profissionais que sejam criadas (o que não está em causa), sem prejuízo da
tutela estadual, por serem entidades públicas no exercício de poderes públicos delegados
pelo Estado.
Quanto à
regulação e disciplina profissional, que pertencem originariamente ao Estado,
este só a atribui às ordens profissionais, como autorregulação e
autodisciplina, nas condições estabelecidas na lei, não havendo direito
natural ou constitucional a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta
da parte das ordens.
As ordens não
são apenas entidades reguladoras, São também entidades de representação e defesa de interesses
profissionais, o que gera o risco de enviesarem o exercício dos seus
poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em
função dos interesses corporativos e em prejuízo dos utentes e do interesse
público. Este fator pode justificar a imposição de um provedor dos direitos dos
clientes e a participação de leigos nos órgãos de supervisão e de disciplina
profissional, o que não lhes prejudica a autonomia.
Para Vital
Moreira, como para o TC, o facto de o conselho
de supervisão não ser composto só por membros designados pelos órgãos eletivos
das ordens (pois inclui membros cooptados) não viola o princípio democrático, o
qual só vale para os órgãos de governo das ordens (conselho e bastonário), não
fazendo sentido aplicá-lo ao órgão oficial independente de regulação
profissional, com poderes delegados pelo Estado.
***
As ordens ou associações profissionais públicas têm de se adaptar ou
esperar por nova maioria parlamentar.
2022.02.28 – Louro de Carvalho
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