Pela atenção
à certeza e à segurança jurídicas, o Presidente da República (PT) decidiu, a 1
de fevereiro, nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição (CRP), bem
como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
novembro (sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal
Constitucional), submeter
a fiscalização preventiva de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional (TC),
o Decreto n.º 30/XV da Assembleia da República (AR) que altera a legislação
relativa às associações profissionais e o acesso a certas profissões reguladas.
No
entendimento do PR, o decreto que “reforça a salvaguarda do interesse público,
a autonomia e a independência da regulação e promoção do acesso a atividades
profissionais, recebido e registado na Presidência da República”, a 27 de
janeiro de 2023, para ser promulgado, “suscita dúvidas relativamente ao
respeito de princípios como os da igualdade e da proporcionalidade, da garantia
de exercício de certos direitos, da autorregulação e democraticidade das
associações profissionais”, todos previstos na CRP.
O decreto em
causa altera as seguintes normas da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que
estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das
associações públicas profissionais: n.º 9 do artigo (art.º) 8.º; alínea e) do
n.º 2 do artigo 15.º; alínea a) do n.º 2 do artigo 19.º; artigo 20.º da Lei n.º
2/2013, de 10 de janeiro. E adita o art.º 15.º-A mesma lei.
Assim, o n.º
9 do art.º 8.º (referente aos Estatutos)
do decreto em causa estabelece: “A
avaliação final do estágio é da responsabilidade de um júri independente, que
deve integrar personalidades de reconhecido mérito, que não sejam membros da associação
pública profissional”.
A alínea e) do n.º 2 do art.º 15.º (refente aos Órgãos) prevê “um
órgão disciplinar, que deve integrar personalidades de reconhecido mérito com
conhecimentos e experiência relevantes para a respetiva atividade, que não
sejam membros da associação pública profissional”.
O n.º 2 do art.º 19.º (referente às incompatibilidades no exercício
de funções) estabelece, na alínea a) que o exercício de funções pelos
inscritos nas associações públicas profissionais nos seus órgãos é incompatível
com “o exercício de quaisquer funções dirigentes na função pública”.
O art.º 20.º (referente ao Provedor dos destinatários de serviços)
estabelece que, sem prejuízo do estatuto do Provedor de Justiça, estas
associações designam uma personalidade independente (provedor), não inscrita na
associação pública profissional, para defender os interesses dos destinatários
dos serviços profissionais prestados pelos seus membros. Este provedor é
designado pelo bastonário ou presidente da associação pública profissional, sob
proposta do órgão de supervisão, e não pode ser destituído, salvo por falta
grave no exercício das suas funções. Sem prejuízo das competências previstas na
lei ou nos estatutos, compete ao provedor analisar as queixas apresentadas
pelos destinatários dos serviços e fazer recomendações para a sua resolução,
bem como, em geral, para o aperfeiçoamento do desempenho da associação. As
funções de provedor são remuneradas nos termos do estatuto ou de regulamento da
associação.
O novo art.º 15.º-A, referente ao Órgão de
Supervisão, ora criado, estipula que “é independente no exercício das suas
funções, zela pela legalidade da atividade exercida pelos órgãos da associação
e exerce poderes de controlo, nomeadamente em matéria de regulação do exercício
da profissão”. E, sem prejuízo de outras competências estabelecidas por lei,
compete-lhe: exercer as atribuições da alínea c) do n.º 1 do art.º 8.º, sob
proposta do órgão colegial executivo, em especial a determinação das regras de estágio,
incluindo a avaliação final, e a fixação de qualquer taxa referente às
condições de acesso à inscrição na associação profissional; verificar a não
sobreposição das matérias a lecionar no período formativo e a avaliar em eventual
exame final com as matérias ou unidades curriculares que integram o curso
conferente da habilitação académica, nos termos da primeira parte do n.º 5 do
art.º 8.º, após parecer vinculativo da Agência de Avaliação e Acreditação do
Ensino Superior, a emitir no prazo de 120 dias a contar do pedido; acompanhar a
atividade do órgão disciplinar, designadamente pela apreciação anual do relatório
de atividades e pela emissão de recomendações genéricas sobre os seus procedimentos;
acompanhar a atividade formativa da associação, em especial a realização dos
estágios de acesso à profissão, e o reconhecimento de competências obtidas no
estrangeiro, designadamente, pela apreciação anual do respetivo relatório de
atividades e da emissão de recomendações genéricas sobre os seus procedimentos;
supervisionar a legalidade e a conformidade estatutária e regulamentar da
atividade dos órgãos da associação; e propor a designação do provedor dos
destinatários dos serviços, por inerência, membro do órgão de supervisão, sem
direito de voto.
A destituição do provedor dos destinatários dos serviços por falta
grave no exercício das suas funções, ouvido o órgão colegial executivo.
O órgão de supervisão é composto por número ímpar de membros a definir
nos Estatutos, incluindo: 40% representantes da profissão, inscritos
na associação pública profissional; 40% oriundos dos estabelecimentos de ensino
superior que habilitem academicamente o acesso à profissão organizada em
associação pública profissional, não inscritos na associação; e 20% cooptados pelos membros referidos, por
maioria absoluta, de entre personalidades de reconhecido mérito, com
conhecimentos e experiência relevantes para a atividade da associação pública
profissional, não inscritos na associação. Os elementos dos dois primeiros grupos são eleitos pelos inscritos na
associação pública profissional, nos termos a definir nos respetivos estatutos.
Os membros do órgão de supervisão elegem o presidente de entre os
membros não inscritos.
O PR, no requerimento
ao TC, escuda-se no respaldo constitucional, observando que as associações profissionais
são consideradas associações públicas, gozando de um estatuto com o seguinte
assento constitucional: direito de todos à liberdade de escolha da profissão ou
do género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse
coletivo ou inerentes à sua própria capacidade (art.º 47.º, n.º 1); reserva
relativa de competência legislativa da AR em matéria de associações públicas
(art.º 165.º, n.º 1, alínea s); constituição das associações públicas só para a
satisfação de necessidades específicas, não podendo exercer funções próprias
das associações sindicais e tendo organização interna baseada no respeito dos
direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos (art.º
267.º, n.º 4).
Daí resulta,
considera o PR, um regime constitucional próprio das associações públicas, em
particular das associações profissionais, que deve ser respeitado pelo legislador,
sendo que, no âmbito do princípio da autorregulação das Associações
Profissionais, as mesmas devem reger-se por princípios democráticos internos,
através de órgãos próprios, eleitos pelos seus membros.
As normas do
decreto em causa estabelecem um conjunto de restrições relevantes ao princípio
da autorregulação das associações profissionais e à demais proteção constitucional
destas entidades, “o que sucede com a conjugação da competência com a composição
do Conselho de Supervisão”, que, ao assumir funções de autorregulação genérica –
incluindo o controlo da legalidade no exercício da regulação – tendo titulares
que, na sua maioria, não pertencem à respetiva associação, e não são
democraticamente eleitos pelos associados da mesma.
Aduz o PR
que, nos Conselhos Gerais das Universidades (entidades públicas integradas na
administração autónoma do Estado), os membros eleitos, que estão sempre em
maioria, cooptam os membros não pertencentes ao corpo da universidade. Assim, órgãos
de entidades públicas autónomas são mais estritos na democraticidade da
composição do que os de entidades privadas.
Também o
requerente critica a atribuição de funções de natureza disciplinar, de
avaliação de final de estágio ou da atribuição da função de provedor a não inscritos
na associação, pela violação do princípio da autorregulação, tal como põe em
causa o regime de incompatibilidades absolutas relativamente ao exercício de
funções dirigentes na Administração Pública, que deixa de exigir a demonstração
da existência concreta de incompatibilidade, criando desproporcionada restrição
ao exercício destas funções, sem evidência de fundamento material, que pode
violar o disposto nos artigos 13.º, 18.º, 47.º, 50.º, 267.º e 269.º da CRP.
***
A este
respeito, o professor e constitucionalista Vital Moreira considera, no blogue Causa nossa, que “não existe nenhum direito constitucional nem
a criar ordens profissionais nem à autorregulação profissional” Trata-se
de decisões discricionárias do Estado, que precisam de fundamentação e que são reversíveis.
A única exigência é a gestão democrática ou autogoverno das ordens que sejam
criadas (que não está em causa), sem prejuízo da tutela estadual, por serem “entidades
públicas no exercício de poderes públicos delegados pelo Estado”. E o Estado só
atribui às ordens as funções de regulação e disciplina profissional, que
pertencem originariamente ao Estado, como autorregulação e
autodisciplina, na medida e nas
condições estabelecidas na lei. Com efeito, não há, segundo o
académico, “direito natural ou constitucional
a uma autorregulação e autodisciplina geral e absoluta da profissão por parte
das ordens profissionais”.
E aponta o académico e constitucionalista que o requerimento do PR omite
que as ordens não são apenas entidades
reguladoras, mas também entidades de representação e defesa de interesses profissionais (privilégio das
profissões “ordenadas”), o que gera o risco de enviesarem o exercício dos seus
poderes públicos de regulação (acesso à profissão, poder disciplinar, etc.), em
função dos interesses corporativos e em prejuízo dos utentes e do interesse
público. “O défice de exercício do poder disciplinar é gritante entre nós” – sublinha.
A esta luz,
pode justificar-se, salvaguardando
a autonomia das ordens, a imposição do provedor dos direitos dos clientes e a
participação de não inscritos na ordem nos órgãos de supervisão e de disciplina
profissional, cuja eleição / designação a lei a confere às ordens, e não a
estranhos.
Mencionando uma questão levantada por um leitor sobre o privilégio de as ordens representarem e
defenderem os interesses profissionais dos seus membros, o professor reconhece
que elas são unicitárias e de inscrição universal obrigatória dispondo de
recursos públicos (as quotas são contribuições tributárias), enquanto as demais
profissões recorrem a associações voluntárias e, até concorrentes, dependendo
das quotas voluntárias dos membros, o que viola o princípio da igualdade. Ademais, num Estado liberal, não há fundamento
para caber a entidades públicas a defesa de interesses particulares. E esta
questão não foi suscitada no requerimento presidencial.
***
Enfim, o PR
usou em demasia o bisturi e deixou de fora questões importantes. A meu ver, não
há diferença entre o estabelecido para as ordens e para os conselhos gerais das
universidades. Aliás, nos conselhos gerais das outras escolas, o número de
elementos não docentes é maior que o dos docentes. E não vejo, se isso é bom,
por que motivo tal não se há de replicar nos demais órgãos do poder (ex.,
Conselho Superior da Magistratura e Conselho Superior do Ministério Público).
Pode, inadvertidamente,
estar a pressão das 20 ordens no subtexto do requerimento do PR.
2023.02.05 – Louro de Carvalho
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