A
vida cristã é um caminho nunca acabado, em que há sempre muito por andar, mas
que se faz caminhando, mesmo que, às vezes, pareça haver mais pedras do que
estrada. Neste sentido, o ser cristão exige de cada homem e de cada mulher, em
cada dia, o compromisso radical (de gestos concretos de amor e de partilha) com
a dinâmica do Reino ansiando sempre por mais e melhor.
Nestes
termos, a liturgia do 7.º domingo do Tempo Comum no Ano A, instando à
santidade, à perfeição, convida-nos a percorrer o nosso caminho de olhos postos
nesse Deus santo que nos acompanha nesta viagem peregrinante e nos acolhe no
seu Reino, que já está entre nós.
A
1.ª leitura (Lv 19,1-2.17-18)
apresenta um apelo veemente à santidade, pois viver na comunhão com o Deus
santo, exige sermos santos, sermos diferentes de quem não está com Deus. Ou
seja, implica sermos diferentes dos pagãos. E isso passa também pelo efetivo amor
ao próximo.
O
Livro do Levítico (assim chamado por tratar de questões preferencialmente
conexas com o culto, incumbência dos sacerdotes, membros da tribo de Levi)
apresenta o discurso de Javé sobre o que o Povo deve fazer para estar sempre em
comunhão com Deus. Desenha um conjunto de leis, de preceitos, de ritos, conexos
com o culto, que o Povo deve observar, e preocupa-se em instilar na consciência
dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo é a grande vocação do homem.
O
trecho em referência pertence à quarta parte do livro (Lv 17-26), a “lei da santidade”, designação proveniente do refrão-imperativo
insistentemente repetido: “Sede santos porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou
santo” (Lv 19,2; 20,7; cf 21,8;
22,16…).
Para
a teologia de Israel, Javé é o Deus santo, isto é, transcendente, incomparável,
inefável, inatingível. Este Deus elegeu Israel, chamou-o, distinguiu-o entre
todos os povos da terra, fez aliança com Ele. Por isso, Israel participa da
santidade de Deus: é um povo à parte, separado dos outros, cuja vocação
consiste na comunhão com o Deus santo – o que implica viver de acordo com
determinadas regras, uma parte significativa das quais atinente a vida cultual,
mas outras atinentes à vida social, coerentes e harmonizadas com as primeiras.
A
perícopa abre com o refrão-imperativo posto na boca de Deus: “Sede santos
porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”. De facto, a comunhão com o Deus santo
exige que o Povo cultive a santidade, isto é, que tenha uma atitude justa para
com os irmãos, membros da comunidade. Assim, os membros do Povo santo são
convidados a arrancar as raízes do mal que crescem no íntimo do homem, de modo
que nos seus corações não haja ódio, nem rancor contra o irmão.
A
ordem final, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, sintetiza a atitude que a
santidade exige no respeitante à vida fraterna, um princípio fundamental da Lei.
Jesus retoma o preceito de Ex 19,18 combinado
com Dt 6,4-9, para exprimir o
essencial da Lei de Moisés (cf Mt
22,37-39).
***
No
Evangelho (Mt 5,38-48), Jesus continua
a expor aos discípulos a sua Lei da santidade (sermão da montanha). Desta
feita, pede aos seus que aceitem inverter a lógica da violência e do ódio, pois
esse caminho gera egoísmo, sofrimento e morte, e pede-lhes o amor que não
marginaliza nem discrimina ninguém (nem os inimigos). É nesse caminho que se
constrói o Reino. Estamos na continuidade da apresentação da nova Lei, que deve
guiar a caminhada cristã.
A
perspetiva de Mateus é que Jesus não veio abolir a Lei, mas levá-la à
plenitude. No entanto, a Lei tornou-se um conjunto de prescrições cumpríveis
mecanicamente, numa lógica casuística que, tantas vezes, não tem nada a ver com
o coração e com a vida. É preciso que a Lei deixe essa lógica e se torne
expressão do compromisso autêntico com Deus e com o seu Reino.
Depois
de apresentados quatro exemplos, para se tornar mais clara e concreta esta perspetiva
(vd Evangelho do 6.º domingo), agora são glosados mais dois.
O
primeiro exemplo refere-se à “Lei de Talião”, consagrada na fórmula “olho por
olho, dente por dente”, que aparece em vários textos veterotestamentários. Em
si, era uma lei razoável, que travava as vinganças indiscriminadas, desproporcionadas,
excessivas, brutais. Porém, Jesus não se contenta com uma lei limitadora dos
excessos de vingança: quer algo novo e melhor. É preciso acabar com a espiral
de violência de uma vez por todas. Para tanto, Jesus propõe que os membros do
Reino interrompam o curso da violência e assumam a atitude pacífica, de não
resistência, de não resposta às provocações.
Para
ser claro, Jesus aduz quatro casos: que não se responda com a mesma moeda a quem
nos agride fisicamente, mas que se desarme o violento, oferecendo a outra face;
que, perante uma exigência exorbitante (entrega da túnica, peça de roupa
fundamental, que não era tirada senão a quem fosse vendido como escravo), se
responda entregando mais (a capa, que servia para proteger dos rigores da noite
e que não podia ser retida, senão por um dia); que se acompanhe por duas milhas
o que que nos force a acompanhá-lo por uma (às patrulhas romanas que,
desorientadas, requisitavam os habitantes da Palestina para as guiarem durante
algum tempo); e que não se ignore, nem se deixe de atender o que pede dinheiro
emprestado.
Estes
casos apontam numa única direção: os membros da comunidade de Jesus devem
manifestar a todos um amor sem medida, muito além do humanamente exigido. Assim,
inauguram uma nova era da relação entre os homens.
O
segundo exemplo que o Evangelho desta dominga nos oferece refere-se ao amor aos
inimigos. Jesus afirma que a Lei antiga recomendava: “ama o teu próximo e odeia
o teu inimigo”. Ora, embora haja, na Lei antiga, uma referência ao amor ao
próximo (cf Lv 19,18), não se refere,
em lado nenhum, o ódio aos inimigos (o verbo “odiar” pode significar, nas
línguas semitas, “não amar”. No entanto, certos grupos contemporâneos de Jesus
defendiam o ódio aos inimigos: a seita essénia de Qûmran, por exemplo, pregava
o ódio contra os filhos das trevas – isto é, contra os que não pertenciam à
comunidade essénia, estando entregues à vingança divina).
Em
qualquer caso, o amor ao próximo inscrito na Lei ganhara, na época de Jesus, um
sentido muito restrito: era o amor ao próximo mais chegado, que podia incluir
todos os israelitas, mas nunca os não membros do Povo eleito. Quando muito, atingiria,
na visão judaica, o compatriota, o que pertencia à comunidade do Povo de Deus.
Portanto,
o preceito de Jesus representa uma autêntica novidade e exige uma verdadeira
revolução das mentalidades e das atitudes. Para Jesus, não basta amar o que
está próximo, a quem nos sentimos ligados por laços étnicos, sociais,
familiares ou religiosos. O amor deve atingir todos, inclusive o inimigo. Fica
abolida a discriminação e abatidas as barreiras que separam os homens.
Esta
exigência radica em Deus, que não faz discriminação no seu amor. É o Pai que
não distingue entre amigos e inimigos, que faz brilhar o sol para todos e envia
a chuva sobre bons e maus, que oferece o seu amor a todos, inclusive aos
indignos. O amor universal de Deus é a razão do amor que devemos oferecer a
todos os homens e mulheres que Deus põe no nosso caminho. Ser filho de Deus
postula dar testemunho do amor de Deus e parecer-se com Ele na ação.
O
preceito final, “sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”,
parafraseia o refrão da “lei da santidade”, “sede santos porque Eu, o Senhor, vosso
Deus, sou santo”. Sintetiza, de forma magnífica, o ensinamento que Mateus
apresenta à sua comunidade: viver na dinâmica do Reino exige a superação da
perspetiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus,
deixando que a vida de Deus, que enche o coração do crente, se manifeste na
vida do quotidiano, nas relações fraternas.
Porém,
há uma diferença relevante. Enquanto o Levítico fala em “santos”, o Evangelho
fala em “perfeitos”. O santo é inatingível, separado dos outros, diferente
deles, ao passo que o perfeito é puro, inocente, benfazejo, bendizente e
benquerente. Não tem de estar longe dos outros, não tem de ser diferente. Ao
invés, por força da encarnação e porque redimido e inocentado pelo Salvador, deve
estar no meio dos outros, como Jesus Cristo. “Não Te peço que os tires do
Mundo, mas que os livres do mal” (Jo
17,15). Além disso, a santidade pode ser um estado, um acontecer, enquanto a
perfeição postula trabalho com vista à completude. No caso do cristão, trabalha
Deus e trabalha o próprio ser humano, bem como a comunidade.
***
Na
2.ª leitura (1 Cor 3,16-23), Paulo convida os cristãos de Corinto – e os de
todos os tempos e lugares – a serem o lugar onde Deus reside e Se revela aos
homens. Para tanto, devem renunciar à sabedoria do mundo e optar pela sabedoria
de Deus (dom da vida, amor gratuito e total).
Ao
viverem, ainda, de acordo com a sabedoria do mundo, os Coríntios são infiéis à
sua vocação: não dão testemunho de Deus e não O tornam presente no mundo. Por
isso, o apóstolo pergunta: “Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito
de Deus habita em vós?”
O
Templo de Jerusalém é, no contexto do Antigo Testamento, a morada de Deus, o
lugar, por excelência, da presença de Deus no meio do Povo. É aí que Israel
encontra Deus e estabelece comunhão com Ele. Todavia, agora, como observa
Paulo, a comunidade cristã – e o cristão – é que é o verdadeiro Templo da nova
aliança, isto é, o lugar onde Deus mora, onde Ele se manifesta aos homens e
oferece a salvação. Ora, ser Templo de Deus (lugar onde Deus reside no mundo e
onde os homens O encontram) é incompatível com a vida cuja preocupação e base
seja a sabedoria do mundo. A comunidade de Corinto não pode ser Templo de Deus,
onde reside o Espírito, se viver no conflito, na divisão, no ciúme, no
confronto, na autossuficiência.
A
seguir, Paulo exorta os Coríntios a deixarem a sabedoria do mundo e a pautarem
a vida pela sabedoria de Deus (amor até ao extremo, dom da vida na cruz). E insiste:
a sabedoria de Deus parece loucura aos olhos do mundo, mas é nela que reside o
segredo da vida em plenitude.
Contudo,
as afirmações de Paulo não significam que seja adversário dos valores humanos
ou que imponha a renúncia à ciência e ao conhecimento. Querem, antes, dizer que
o segredo da felicidade e da realização do homem não está na ciência, na
técnica, na elegância do discurso, na definição de um esquema filosófico que
explique coerentemente a vida do homem, mas está em Jesus que, ao longo de toda
a sua vida e, de forma privilegiada, na cruz, nos mostrou que só o amor
oblativo, em doação afetiva e efetiva, gera a vida plena e faz nascer o Homem
Novo.
A
última asserção da perícopa é muito rica: “tudo é vosso; mas vós sois de Cristo,
e Cristo é de Deus”. Os Coríntios não pertencem aos pregadores humanos Pedro,
Apolo ou Paulo; eles é que pertencem aos Coríntios, de quem são servidores,
para que os Coríntios descubram Cristo e a loucura da cruz e, para que cheguem
a Deus por Cristo, o mediador da salvação.
Atidos
à autossuficiência da sabedoria humana, a qual justifica, por vezes, a vingança
e o crime, os Coríntios (o mesmo sucede connosco) não atingiriam a perfeição a
que são chamados. Por isso, se tornava imperativo, como hoje, o trabalho
apostólico fautor da perfeição, que se constrói, passo a passo, até à plenitude,
sempre com a paciência de Deus.
2023.02.19 – Louro de Carvalho
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