Os
seres humanos já tiveram cauda (ou rabo) e perderam-na por duas vezes. A última
e definitiva perda de cauda pelo ser humano aconteceu quando ele passou a
bípede.
Os
nossos antepassados, que andavam em quatro patas, tinham longa cauda, o que não
surpreende. A novidade, apontada em estudo publicado pela revista Current Biology, é que foram duas as
vezes em que o ser humano deixou a cauda. E o cóccix é o vestígio que sobra da
perda definitiva da cauda, a qual nos catapultou para o bipedismo.
Porém,
muito antes, houve outra ocasião em que os nossos maiores perderam a cauda,
como atesta uma pesquisa da paleobióloga Lauren Sallan, do Departamento de
Ciências da Terra e do Meio Ambiente da Universidade da Pensilvânia, que
analisou o fóssil, de 350 milhões de anos, do Aetheretmon valentiacum, peixe de
duas caudas, uma sobre a outra: uma era carnosa, ligada à vertebra do animal; a
outra, mais flexível, funcionava como nadadeira.
A
pesquisa prova que os descendentes do peixe que permaneceram animais aquáticos
mantiveram o rabo flexível, suprimindo o carnoso, e os que saíram da água,
originando os tetrápodes, fizeram a rota oposta, desenvolvendo a cauda carnosa.
A símul, o rabo flexível
transformou-se nos membros (pernas e braços), levando à perda da cauda
flexível, pela primeira vez.
Para
a cientista Tábita Hünemeier, professora do Departamento de Genética e Biologia
Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), “provavelmente, o rabo carnoso
nos teleósteos [peixes modernos] perdeu-se por seleção natural, já que
sobreviveram os que eram mais rápidos na água.” E os animais que passaram do
ambiente aquático para o terrestre precisavam de outra habilidade, pois a
estabilidade, adquirida com rabo carnoso, era mais importante do que a rapidez.
A
segunda perda de cauda sucedeu quando os primatas transitaram para o bipedismo,
isto é, passaram a andar eretos. Observa Hünemeier que a cauda humana terá sido
eliminada por estar a ser excluída a par de outras caraterísticas. O andar
ereto é mais importante do ponto de vista evolutivo. E a perda da cauda pode
ter ocorrido à boleia.
Danilo
Vicenssoto, professor de arqueologia na Universidade Federal do Rio
Grande, diz que o estudo agrega novidades relevantes, mormente na biomecânica,
que explica a evolução da movimentação dos animais de quatro patas, vincando
que toda a novidade em pesquisa evolutiva é bem-vinda, porque temos um
quebra-cabeça de 10 milhões de peças, quando a nossa caixinha só comporta mil
peças. Por isso, qualquer peça que surja é muito importante.
Jan Simek, professor de Antropologia na Universidade do Tennessee, nos
Estados Unidos da América (EUA), observa que
a forma dos ossos de um corpo e o seu modo de encaixe podem contar a história
de como ele se movia, quando estava vivo e que os antropólogos encontrar outras
evidências na paisagem, por exemplo, que indicam como os povos antigos
caminhavam.
Em 1994, foram
encontrados na Etiópia os primeiros fósseis de um hominídeo desconhecido. Os
antropólogos descreveram os restos mortais como sendo de mulher adulta e
decidiram chamar-lhe a espécie de Ardipithecus ramidus, apelidada
de Ardi. Ao longo dos 10 anos seguintes, foram encontrados e datados mais de
cem fósseis dessa espécie, entre 4,2 milhões e 4,4 milhões de anos.
Ao
examinarem os ossos, os cientistas identificaram caraterísticas indicativas do bipedismo.
O pé tinha uma estrutura que permitia dar passos com o impulso dos dedos, o que
os símios que andam em quatro patas não fazem. A forma dos
ossos pélvicos, o modo de posição das pernas sob a pélvis e o modo como os
ossos das pernas se encaixavam, também sugeriam que andavam eretos.
Pode ser que
Ardi não andasse exatamente como o fazemos hoje, mas o bipedismo, como forma
normal de movimento, parece ser uma característica desses fósseis de 4,4
milhões de anos atrás.
Em artigo sob
o título “Por que e como o ser humano perdeu o rabo na evolução?”, publicado no site da BBC News Brasil, a 17 de outubro de 2012, Daniel Gonzalez Cappa considera que olhar para a
parte traseira do corpo humano e perguntar pela cauda, longe de ser uma piada,
é assunto sério para os cientistas, pois, se o ser humano é, biologicamente, parecido com o macaco, é de questionar por
que ele tem cauda e nós não a temos. Assim, Bo Xia, estudante de pós-graduação
em biologia de células-mãe na Escola de Medicina Grossman, da Universidade de
Nova Iorque, reconhece que essa é uma boa questão.
A cauda pode
ter múltiplos benefícios no mundo animal.
Desde que surgiram nos primeiros
seres vivos, há mais de 500 milhões de anos, a cauda assumiu vários papéis. Aos peixes, ajuda na propulsão dentro de água; aos pássaros, na realização
do voo; aos mamíferos, no equilíbrio. Pode servir como arma de defesa, como no
caso dos escorpiões, ou como sinal de advertência, como fazem as serpentes do
tipo cascavel. Nos primatas, a cauda adapta-se a uma variedade de
ambientes. Os macacos-uivadores, nativos das Américas do Sul e Central, por
exemplo, têm cauda larga e preênsil (adaptada a prender e segurar coisas) que
os ajuda a agarrar galhos ou alimentos quando estão sobre as árvores. Porém, os hominídeos, família de primatas que inclui os seres humanos e os grandes
símios, como orangotangos, chimpanzés e gorilas, não têm cauda.
O desaparecimento
da cauda na evolução dos hominídeos, segundo os cientistas, parece resultar de uma mutação genética, recém-descoberta, que afetou os
genes que davam forma à cauda dos hominídeos, há uns 25 milhões de anos. A alteração sobreviveu ao longo do tempo e foi passando de geração para
geração, mudando a locomoção dos hominídeos, o que estará conexo com o facto de
os humanos caminharem sobre duas pernas.
Tudo isso parece estar relacionado e
ter ocorrido em torno do mesmo período evolutivo. Ora, este é um dos pontos
evolutivos cruciais que nos distingue como humanos. E, a comprová-lo, Bo Xia aplicou a mutação em camundongos (os musculi, pequenos roedores domésticos
da família dos ratos, que pesam cerca de 1,5gr).
Com efeito,
os camundongos desenvolveram formas diferentes de caudas. Alguns tinham caudas
mais curtas, enquanto noutros não cresceu cauda alguma.
O
naturalista britânico Charles Darwin, em A Origem do Homem (1871), obra em
que explicava que a sua teoria da evolução era aplicável à espécie humana,
dizia que o Homo sapiens (a espécie humana atual) tinha parentesco
com o macaco de cauda.
Afinal, o homem sempre estabeleceu
distância entre a sociedade moderna e o mundo animal: vive em casas, a pele é
diferente e usa o cérebro para resolver dilemas complexos.
Darwin já
tinha balançado as estruturas da ciência da época com A Origem das Espécies,
em 1859, mas a explicação sobre a origem do ser humano foi revolucionária, já
que a maioria dos cientistas ocidentais compartilhava a ideia de que Deus
concebera todas as criaturas do planeta.
Entretanto,
os humanos compartilham mais de 98% do ácido desoxirribonucleico (ADN) com os chimpanzés, com quem têm ancestrais em
comum. Os primeiros hominídeos, surgidos há 20 milhões de anos,
já não tinham cauda. Então, se a cauda está relacionada com a evolução de
símios e de humanos e influenciou na locomoção e na forma de andar, cabe a
pergunta: O que ocorreu primeiro, o desaparecimento da cauda ou a locomoção
sobre duas pernas? É questão similar à de quem nasceu primeiro, o ovo ou a
galinha.
É impossível
conhecer, com exatidão, os acontecimentos iniciais que fizeram com que nossos
antepassados ficassem de pé, sobre duas patas, e saber se isso tem a ver com a
ausência de cauda, ou invés, se não temos cauda porque ficamos de pé e com isso
é mais fácil mantermos o equilíbrio sobre as pernas, não precisando de cauda. Precisaríamos
de uma máquina do tempo para o saber. E, como não a temos, poderíamos dizer que
não sabemos e findaria a discussão. Não obstante, é oportuno falar disso. E os
dois processos são discutidos conjuntamente ou interferem um no outro. Ou seja, não podemos falar da evolução humana sem referência à cauda ou à
locomoção bípede (sobre duas pernas), independentemente do que veio (ou
aconteceu) primeiro.
Bo Xia
mergulhou no tema da cauda nos seres humanos desde que machucou o cóccix – osso
da parte inferior da coluna – numa viagem de carro. O cóccix, do Latim coccyx, é a
última peça da coluna vertebral, formado por quatro vértebras fundidas, e
representa o vestígio do que foi uma cauda, há milhões de anos. Em imagens de embriões humanos, é possível ver uma cauda, que é absorvida pelo
embrião após algumas semanas para dar forma à coluna vertebral. E o cóccix, que
suporta os glúteos, está localizado no ponto onde outros animais possuem a
cauda.
É preciso ter
muitos conceitos sobre o desenvolvimento, sobre emendas alternativas, a genómica
comparada. E Bo Xia mostrou que, se entendermos esses conceitos, poderemos
mirar o genoma, dar-lhe sentido e ver o que existe nele. A mutação que ele identificou consiste em 300 letras genéticas no meio de
um gene conhecido como TBXT, uma seção do ADN, praticamente igual em humanos e em
símios. A provar a relação entre essa mutação e a cauda, Bo Xia
manipulou geneticamente camundongos com a mesma mutação. Ele e os colegas observaram que a cauda não crescia nos camundongos
manipulados, como acontecia normalmente com o animal.
Porém, tal
descoberta é só a primeira de muitas outras, para se entender o papel das
mutações genéticas nos nossos ancestrais. Os cientistas dizem que há mais de 30
genes envolvidos na formação da cauda em animais, e os pesquisadores de Nova
Iorque falam só de um deles.
Todos os
humanos têm o cóccix muito semelhantes entre si, mas, no caso dos camundongos,
as caudas tinham tamanhos diferentes ou estavam completamente ausentes. Isto
quer dizer que houve uma série de mutações que afetaram diferentes
genes nos hominídeos, há 25 milhões de anos, o que foi alterando a nossa
evolução. Essa pode ter sido uma mutação crucial, mas não tenha terá
sido a única responsável pela evolução.
Os
cientistas sabem como o ancestral do ser humano perdeu a cauda, há milhões de
anos, mas não as razões pelas quais essa mutação sobreviveu por tanto tempo.
Sabe-se que as mutações ocorrem, lentamente, durante o tempo todo. Umas são
positivas, outras negativas, dependendo do ambiente.
Uma mutação
negativa pode ser prejudicial para o hóspede, fazendo com que ele adoeça ou
morra. Por isso, essa mutação não sobrevive ao longo do tempo. Porém, a mutação que traga vantagens evolutivas manter-se-á nos indivíduos
mais bem adaptados, fazendo com que seja passada de geração a geração. Assim, a perda de cauda pode ter trazido vantagens evolutivas
significativas aos hominídeos, o que explica a sua permanência ao longo do
tempo. A vantagem pode não ter sido manter o equilíbrio sobre
as árvores, mas uma melhor locomoção sobre duas pernas ou a utilização das mãos
para a manipulação de objetos.
Porém, isto não significa que a perda da
causa tenha trazido só coisas boas. Bo Xia e a equipa viram que os camundongos exibiram
más formações na coluna vertebral, semelhantes aos defeitos no tubo neural que
afetam um em mil recém-nascidos humanos.
Tais más formações, conexas com uma
espinha dorsal bífica (partida em duas), significam que a coluna vertebral do
feto não fecha totalmente, o que danifica os nervos e pode originar paralisia.
Por isso, não se dirá que as mutações são boas ou más, mas que ocorrem. E isso
postula analisar o genoma, o que pode contribuir para a compreensão, por meio
do genoma, de outros eventos que ocorreram no nosso passado biológico.
Enfim,
é de continuar a perscrutar a rota da evolução para melhor se perceber o ser
humano, enormemente enigmático ou misterioso.
2023.02.06 – Louro de Carvalho
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