Face à crise na habitação, o Governo optou, a
16 de fevereiro, por intervenção direta no mercado, defendendo o primeiro-ministro que,
em termos constitucionais, o “direito de propriedade” não se sobrepõe a outros
direitos fundamentais, como o “direito à habitação”. O programa “Mais Habitação” configura apoios desde o
arrendamento e o aproveitamento de casas devolutas até à passagem de alojamento
local (AL) para mercado de arrendamento habitacional, desde o fim da concessão
de novos vistos gold até ao financiamento aos municípios para
obras coercivas.
António Costa fez o balanço dos
programas em vigor e da verba orçamentada para o programa ora aprovado, de 900
milhões de euros, pelo menos. O objetivo de construir 26 mil casas até 2026
mantém-se, mas não se pode ignorar o efeito da subida das taxas de juro na
habitação. Assim, as medidas aprovadas visam: o aumento da oferta de imóveis
para habitação; a simplificação do processo de licenciamento; o aumento do
número de casas no mercado de arrendamento; o combate à especulação imobiliária;
e o apoio às famílias no arrendamento e no crédito à habitação.
O documento entrou em consulta pública e volta a
Conselho de Ministros, a 16 de março.
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Mal o país acabou de respirar face ao
anúncio, choveram as críticas, a que o governo ficará atento, bem como às propostas
que advenham (Costa dixit). Os inquilinos
aprovam, mas querem revogação da lei Cristas; os proprietários dizem que
Portugal parece a Venezuela; e o presidente da Câmara de Lisboa diz que é grave
não terem sido ouvidos os autarcas.
As críticas não são amenas: “cegueira
ideológica, “ódio à propriedade privada”, propostas com “enormes riscos”,
“centralismo do Estado”. Com posições extremadas entre os dois lados do mercado
da habitação – inquilinos e proprietários –, o ministro da Economia, António
Costa Silva, garante que o governo tem “sempre a humildade de
reconhecer” se a aplicação das medidas resulta ou não e de “calibrar e adaptar”,
se necessário.
Para os proprietários, o governo
lançou o “caos” e, praticamente, matou o mercado da habitação em Portugal. “Estas
medidas parecem vindas da Venezuela”, diz Luís Menezes Leitão, presidente da
Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), que aponta a mira sobretudo a
duas, que “lançaram o pânico entre os proprietários”: o
arrendamento coercivo de casas devolutas e o travão ao aumento das
rendas. Apontando o exemplo dos imigrantes que têm casa em Portugal,
Menezes Leitão diz ter reunido com a União Internacional dos Proprietários
Europeus, tendo concluído: “Não há um único país que tenha estas medidas”. E, acusando
o governo de “cegueira ideológica” e de “ódio profundo à propriedade privada”,
lembra que “os privados são 98% do setor da habitação em Portugal”, o
que torna “calamitoso” o anúncio do governo.
Por seu turno, os inquilinos reagem
com agrado ao conjunto das medidas, mas pedem força para as implementar, face
às muitas críticas que se fazem ouvir. O presidente da Associação dos
Inquilinos Lisbonenses (AIL), Romão Lavadinho, considera: “As casas têm
uma função social muito importante, não podem estar fechadas. Em Lisboa, há
quase 50 mil casas devolutas, na área metropolitana de Lisboa são 150 mil, no país
são 725 mil.” Para a AIL, não está em causa o direito à propriedade,
pois “não se vai tirar a propriedade a ninguém”. Quem diz o contrário “foca-se
apenas na questão financeira”, esquecendo a importância da componente social da
habitação.
Porém, a AIL defende que faltam duas
medidas relevantes: revogar a “lei Cristas” e definir a quota de casas para
renda acessível (“um mínimo de 10%”) nas novas construções.
Também os autarcas se dividem nas
críticas. O presidente da Câmara de Lisboa qualificou de “muito grave” que o governo
não tenha consultado as autarquias, que ficarão responsáveis por algumas das
medidas. A habitação é um dos maiores desafios nacionais, mas tem de passar por
medidas nas autarquias. E o Governo não ouviu as autarquias e, portanto, é
grande estranheza ver este pacote de medidas sem ter passado por auscultação
aos presidentes da câmara e, em particular, de Lisboa, sustentou
o autarca social-democrata, atirando que o “centralismo do Estado” não resolve
os problemas. Nisto, é acompanhado pela associação nacional dos autarcas
social-democratas (ANASD) e pelo autarca portuense. E a questão da não audição
das autarquias promete estender-se à Associação Nacional de Municípios Portugueses
(ANMP). Em declarações à Lusa, a
socialista Luísa Salgueiro, que preside à ANMP, elogiou o pacote de medidas.
Referindo-se às propostas para o AL – setor em que não haverá novas licenças e
as atuais serão reavaliadas em 2030 –, sustentou que “quem fez investimentos na
área do alojamento local possa ter os seus direitos acautelados”, mas que não é
prioritário o AL, mas “as condições para que as pessoas das próprias cidades
possam lá ficar”. “Estamos a expulsar as pessoas das cidades”,
afirmou, antecipando alguma conflitualidade em torno das medidas
apresentadas.
O Presidente da República (PR) sustentou
que ainda não é possível ter ideia clara do que lá está dentro. “O
povo costuma dizer que só se sabe se o melão é bom depois de o abrir”. O chefe
de Estado garantiu que abrirá o melão, lei a lei, conhecidas, em concreto, as
propostas do Executivo.
***
Uma das medidas aprovadas prende-se com o reforço da confiança dos
senhorios para que disponibilizem as suas casas para o mercado, pois há casas
vazias, inclusive casas em condições de habitabilidade. Assim, o Estado
arrendará todas as casas disponíveis a preços normais pelo prazo de cinco anos,
desde que possam subarrendar a habitação. Ou seja, o senhorio arrenda a casa ao
Estado e o Estado arrenda-a a outra pessoa a preço acessível, e pode pagar antecipadamente
a renda do ano seguinte, correndo por conta própria o risco da cobrança da
renda.
Para promover o arrendamento acessível, o governo admite o arrendamento compulsivo
de casas devolutas e propõe isenção fiscal ao arrendamento acessível. Cabe ao
Estado ou ao município pagar ao proprietário a renda, cobrando a renda que
resulta do subarrendamento.
Quem puser casas em regime de arrendamento acessível terá IMT zero. As
obras de reabilitação terão IVA a 6% e quem tiver as casas em arrendamento
acessível terá total isenção do IRS sobre o rendimento predial proveniente
desse arrendamento.
Outra forma de reforçar a confiança dos senhorios é ajudar em caso de
incumprimento, um dos maiores medos dos portugueses. Assim, o Governo introduz uma
alteração para que, em todos os pedidos de despejo que deem entrada no balcão
nacional de arrendamento, após três meses de incumprimento, o Estado substitua
o inquilino no pagamento, para o senhorio não ser prejudicado, ou seja, arrenda
a casa ao senhorio e subarrenda-a ao atual inquilino. O Estado cobra os valores
em falta, tenta perceber o porquê do incumprimento (quebra de rendimentos, problemas
de saúde ou outro) e apoia o inquilino no apoio à renda ou no realojamento. Se
não houver justificação para o incumprimento, procede ao despejo.
Os proprietários que vendam casas de habitação ao Estado ou aos municípios
terão isenção do imposto sobre as mais-valias imobiliárias obtidas com a venda.
A intenção é aumentar a oferta de casas para o mercado das rendas acessíveis. Haverá uma isenção da tributação de mais-valias
pela venda da casa do próprio ou de alguém do seu agregado familiar para casos
de amortização de crédito à habitação. Atualmente, para ficar isento tem
que reinvestir em habitação própria permanente
as mais-valias até 36 meses depois de vender a casa ou utilizar o valor obtido
para abater a uma compra que tenha feito até 24 meses antes. Hoje, só se beneficia da benesse quando o
rendimento é reinvestido, num prazo de três anos, na compra de habitação
própria e permanente (ou aplicado numa aquisição feita até 24 meses antes). A
isenção prevista pode aplicar-se, por exemplo, à venda de segunda casa do
próprio e cuja mais-valia obtida é aplicada na amortização do empréstimo
contraído para adquirir a primeira habitação própria permanente – possibilidade
estendida aos descendentes.
Já houve fases no mercado imobiliário nacional, em que edifícios de habitação
foram convertidos em escritórios, sobretudo no centro das cidades. Porém, o
Governo propõe que imóveis construídos para outros fins, como comércio ou
serviços (incluindo terrenos), e que estejam sem utilização, sejam convertidos
para fins habitacionais, simplificando os processos, de forma que esses imóveis
cheguem o mais depressa possível ao mercado.
Será possível licenciar com termo de responsabilidade dos projetistas. Esta
é uma das medidas mais aplaudidas pelo setor imobiliário, visto que daqui
resulta maior brevidade no processo de licenciamento de cada nova obra. Em
muitos casos, a demora no licenciamento encarece o preço final da casa, até porque
muitas licenças demoram vários anos a serem emitidas.
Termina a concessão de novos vistos
gold. A renovação dos vistos já emitidos só acontecerá se os imóveis forem
para habitação própria ou colocados no mercado de arrendamento.
No atinente aos imóveis em regime de contratos de desenvolvimento
habitacional, o governo disponibiliza terrenos que estão na esfera do Estado
para a construção de 70 casas, no Porto, e 350 casas (destas 154 são para
arrendamento), em Lisboa, para colocação posterior no mercado de arrendamento a
rendas acessíveis. Estas obras serão feitas de forma inovadora, recorrendo à
construção modular e os fogos ficarão situados na Quinta do Viso, a norte, e na
Quinta da Alfarrobeira, na capital. Serão lançados dois concursos para as obras
a adjudicar a privados e a cooperativas. Estas casas, não incluídas no Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR), serão complementares aos compromissos de
reforço da oferta habitacional.
O Estado pagará juros de mora em caso de incumprimento de prazo de licenciamento
e as entidades públicas serão penalizadas, em incumprimento. Por exemplo, se a
responsabilidade da demora for do município, o Orçamento do Estado deduzirá,
nas transferências para a câmara, o que os juros de mora pagos. O escopo é criar
um regime de juros de mora que aplique sanção pecuniária ao incumprimento dos
municípios e das entidades externas envolvidas.
O Governo criará uma linha de crédito de 150 milhões de euros para
incentivar os municípios a realizarem obras coercivas em casas devolutas ou com
baixas condições e a trazerem para o mercado habitações que estão fora do
mercado. Este financiamento aos municípios não é novo, mas as autarquias
recorrem raramente ao modelo em vigor.
O Governo incentiva quem passar casas atualmente em AL para arrendamento habitacional.
Nesse sentido, serão proibidas novas licenças de AL, exceto para concelhos do
interior do país onde não há pressão urbanística. Os proprietários de casas em
regime de AL serão incentivados a transferi-las para arrendamento habitacional,
através da taxa zero em IRS (em rendimentos prediais) até 2030 (se as transferirem
até ao final de 2024).
Embora alguns bancos já ofereçam a modalidade da taxa de juro fixa, agora,
esta será obrigatória. Deixará, pois, de ser possível que as instituições
financeiras não a disponibilizem.
O Governo não é o responsável pela subida dos juros. No entanto, anunciou
“proteção nas subidas das taxas de juro”, subsidiando em 50% a taxa de juro dos
créditos à habitação nos casos em que a subida supera o teste de stresse feito
ao agregado familiar a quando da concessão do empréstimo. Esta medida
destina-se a créditos à habitação até aos 200 mil euros e para famílias que se
encontram no 6.º escalão de rendimentos do IRS e tenham taxa de esforço acima de
35%. Esta bonificação é feita pela compensação de metade do excesso do
indexante de referência face a 3%, até ao limite anual de 1,5 IAS – Indexante
dos Apoios Sociais (720 euros).
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Veremos se o governo superará a pressão imobiliária e qual a posição do PR,
da direita social.
2023.02.18 – Louro de Carvalho
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