À proa dum navio de
penedos, A navegar num doce mar
de mosto, Capitão no seu posto De comando, S. Leonardo vai
sulcando As ondas Da eternidade, Sem pressa de chegar
ao seu destino. Ancorado e feliz no
cais humano, É num antecipado
desengano Que ruma em direção ao
cais divino. |
Lá não terá socalcos Nem vinhedos Na menina dos olhos
deslumbrados; Doiros desaguados Serão charcos de luz Envelhecida; Rasos, todos os montes Deixarão prolongar os
horizontes Até onde se extinga a
cor da vida. |
Por isso, é devagar que
se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o
rabelo avança
Debaixo dos seus pés de
marinheiro.
E cada hora a mais que
gasta no caminho
É um sorvo a mais de
cheiro
A terra e a rosmaninho!
Durante
trinta anos, Miguel Torga tentou o retrato poético do Santo, que
sempre se lhe escapava. Mas, num dia, o instantâneo surgiu. Para a
figura do Santo está transporta a apetência telúrica do poeta, pois, o Santo, a
caminho do Paraíso, como capitão “à proa dum navio de penedos,/A navegar
num doce mar de mosto” (a paisagem duriense), não tem pressa “de
chegar ao seu destino”, porque “feliz no cais humano/É num antecipado
desengano/Que ruma em direção ao cais divino”. Isto, porque sabe que lá os seus
olhos não se deslumbrarão com os socalcos e vinhedos do Douro, com os montes,
com tudo o que deixa, e tudo o que vai encontrar “São charcos de
luz/Envelhecida/ (...) Até onde se extinga a cor da vida”. A viagem no barco rabelo
é lenta, para poder prolongar o prazer de sorver mais um pouco o cheiro da
terra e do rosmaninho.
Estimulado pelo tema do telurismo, o poeta idealiza a navegação vagarosa
de São Leonardo, ao longo da terra
duriense, num antecipado “desengano” do que será o “cais divino”, já vergado às
saudades da terra que vai deixar. É a metáfora da vida do homem sobre a terra
que ama e deixa.
O poema desenvolve-se numa estrutura externa de irregularidade formal,
com três estrofes, correspondentes a cada uma das três partes da estrutura
interna. A primeira é formada por 11 versos,
a segunda por nove e a terceira por sete – decréscimo que simbolizará a aproximação da viagem do santo do seu destino, uma
viagem que se vai aproximando do seu término.
A métrica,
irregular, alterna versos longos e curtos, o que sugere a irregularidade do
percurso.
A nível da estrutura interna, o poema progride de forma circular em três
partes.
Na 1.ª parte (1.ª
estrofe), emerge a realidade imaginada. O poeta imagina S. Leonardo “à proa de
um navio de penedos”, similar de um barco rabelo, a navegar, sem pressas, num
“doce mar de mosto” que o prende à terra, em direção à eternidade, mas
arrependido de deixar o “cais humano”, que é a terra duriense, “num antecipado
desengano” da vida que está para lá do “cais divino”. Destaca-se o recurso ao
presente do indicativo (“ruma”, “avança”) e à construção verbal complexa “vai
sulcando” e “a navegar”, sugerindo a realização gradual, o lento desenrolar da viagem,
sugerido também pelo particípio “ancorado” e pelos advérbios “devagar” e
“lentamente”.
Na 2.ª parte (2.ª
estrofe) entrevê-se o motivo da lentidão e do desengano do Santo. Na
eternidade, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes, mas “charcos
de luz / Envelhecida”; os montes serão todos rasos, estendendo-se o horizonte até
se extinguir a cor da vida. Predomina o futuro do indicativo (“terá”, “serão”,
“deixarão”), para descrever a realidade para que se caminha.
Na 3.ª parte (3.ª
estrofe) evidencia-se o egresso à imagem descritiva da primeira estrofe. O
santo navega cada vez mais lentamente em direção à eternidade, aproveitando os
últimos momentos de contemplação da paisagem duriense para sorver o “cheiro a
terra e a rosmaninho”, isto é, para que se prolongue a permanência na terra. O
emissor lírico, que imagina o Santo a navegar, na primeira estrofe, não em
barco celestial, mas num navio de penedos (alusão às serranias transmontanas),
agora vê-o a deslizar num barco rabelo (típico do rio Douro para transporte do
vinho do Porto). E predomina, de novo, o presente do indicativo com o mesmo
escopo da primeira estrofe.
Antes de prosseguir, é de ter em conta:
S. Leonardo
de Galafura é um miradouro do alto da montanha, junto a uma capela, em
Galafura, antiga freguesia do concelho da Régua, distrito de Vila Real, hoje
unida a Covelinhas. Vista do sopé, dá a imagem de navegar pelo espaço. Os
barcos rabelos são barcos à vela, caraterísticos do rio Douro, usados para o
transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia,
onde se situam as principais caves. Mosto é o sumo de uva, antes da fermentação
completa. Socalcos são porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas
por muros de pedra.
O poema é
marcado pelo mito de Anteu, um gigante, filho de Neptuno (Poseidon) e da Terra
(Geia), que habitava na Líbia e que obrigava todos os viajantes a lutar. Depois
de os ter vencido e levado à morte, enfeitava o templo do pai com os despojos.
Enquanto estivesse em contacto com a mãe, Geia, isto é, a Terra, Anteu era
invulnerável. Um dia, enfrentou Hércules e, nessa luta, recuperava forças
sempre que tocasse o solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços
e sufocou-o sobre os ombros, conseguindo eliminá-lo desta maneira.
Evoca-se
este mito quando alguém, estabelecendo contactos com as suas raízes, ou seja, com
a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos, recupera energias físicas ou
psicológicas.
Fazendo a
apologia deste mito, Miguel Torga valoriza sobretudo a terra-mãe. Tal como
Anteu, o poeta é atacado por forças que o abatem, mas, à semelhança da
personagem mítica, retempera as suas energias na sua terra natal, S. Martinho
de Anta, terra vizinha de Galafura.
Assim, o poema é
o testemunho, de pendor autobiográfico, da afeição telúrica de Miguel Torga
pela terra duriense, daí o antecipado desengano do Santo/Torga, pois ama-a e
vai abandoná-la. Esta afeição telúrica permite compreender o pseudónimo adotado
por Adolfo Correia da Rocha: a escolha de Miguel homenageia o escritor
castelhano Miguel de Unamuno (1864-1936), que muito admirava, e Miguel de
Cervantes (1547-1616), escritor espanhol, autor de D. Quixote; e Torga
é o nome de uma urze transmontana.
Como ficou
dito e é caraterístico em Miguel Torga, o poema apresenta uma estrutura circular: começa com a descrição
da viagem vagarosa do Santo através do Douro, apresenta a razão dessa lentidão
e do desengano, antecipando o que estará “lá” no final do caminho (o futuro), e
retorna ao presente e à descrição da lenta viagem em direção à eternidade.
As razões que justificam a lentidão do Santo são as seguintes:
no “cais divino”, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes; o Santo
é feliz na terra, onde moram a felicidade, a vida e a luz; a viagem é lenta,
para que o santo possa prolongar o prazer de sorver “[…] mais de cheiro / A
terra e a rosmaninho!” (vv. 26-27).
O estado de espírito do sujeito poético é
modelado pelos seguintes dados: está sem pressa de abandonar o “cais
humano”, a terra duriense; é feliz neste “cais humano”; mostra-se arrependido
de deixar o “cais humano”; sente-se desenganado e desiludido, antecipadamente,
da vida que está para lá do “cais divino”; experiencia a profunda saudade da
terra duriense.
Estando o poema revestido de notório caráter alegórico, o emissor lírico estabelece um paralelo entre terra e
céu, o “cais humano” e o “cais divino”, duas metáforas que superlativizam a
terra, indiciando o telurismo de Miguel Torga. Este paralelismo atinge foros de
heresia, pois o “cais humano” goza de caraterísticas e de encantos que se
sobrepõem ao “cais divino”.
Para a consecução de um poema coerente e arrebatante, o artista lança mão
de vários recursos expressivos ao nível fónico, ao nível morfossintático e ao
nível semântico.
Ao nível fónico, temos, como se disse, três estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos); a métrica é irregular,
havendo versos de duas a 11 sílabas métricas; o ritmo é repousado, sobretudo na última estrofe, em harmonia
com o andamento moderado da viagem de São Leonardo e, em termos da rima, além
de versos brancos ou soltos nas três estrofes, há rima emparelhada e
interpolada (primeira e segunda estrofes), emparelhada e cruzada (última
estrofe). Além disso, há rima consoante (“mosto”/”posto”); rima pobre
(“mosto”/”posto”) e rica (“comando”/”sulcando”); e rima grave
(“mosto”/”posto”). E há transporte, por exemplo
vv. 3-4, 5-6, 10-11. Todos estes fatores se conjugam para dar uma ideia de
irregularidade do espaço observado.
Os sons
dominantes são fechados (.ê, .ô, .â), nasais (.na, .on, .in) e agudos (.i, .u).
A alternância de sons coaduna-se com o arrastamento da viagem de quem avança
para o futuro, lamentando deixar o presente; simultaneamente, a alternância
entre sons abertos e sons fechados traduz, respetivamente, a alegria pelas
coisas terrestres e a tristeza por ter de as deixar. A aliteração do fonema /p/ sugere a viagem, e a do fonema /m/ sugere
o apego à terra duriense.
Ao nível morfossintático, ressaltam: as formas verbais no presente do
indicativo (“ruma”,
“avança”) na primeira e na terceira
estrofes, bem como a construção complexa do verbo (“vai sulcando”, “a
navegar”); o particípio passado
“ancorado”; os advérbios “devagar” e “lentamente”; e a expressão adverbial “sem
presa”. Tudo isso sugere o lento desenrolar da viagem do Santo.
O emprego do
futuro do indicativo, na segunda parte, exprime a referência à vida eterna para
onde o Santo lentamente se dirige.
O número
de adjetivos é
reduzido e os poucos existentes ligam-se a nomes metafóricos: “doce mar de mosto”, “cais
humano”, “rasos os montes”.
Predomina a coordenação: desenrolar da viagem de
S. Leonardo, lenta e sequente.
No atinente a orações, a oração conclusiva estabelece uma relação de consequência entre o “desengano
antecipado” do Santo e a sua regalada demora ao longo do Douro; e a oração
relativa “que gasta no caminho” reforça o apelo ao torrão de Ribadouro.
Ao nível semântico, sobressai a
construção alegórica do
poema do poema a orientar-se no sentido de enaltecer os encantos da terra e
paisagem duriense, traduzindo o apego à terra.
As metáforas – “navio de
penedos”, “um doce mar de mosto”, “capitão”, “vai sulcando as ondas da
eternidade”, “charcos de luz”, “um sorvo […] de cheiro” – transmitem, hiperbolicamente, a imagem do
Santo a navegar lentamente, cheio de saudade das terras durienses, rumo à
eternidade, e da qual está, antecipadamente, desiludido, por saber que lá não
encontrará as belezas terrenas; e realçam a beleza da terra em socalcos, ante a
qual a própria felicidade era um desencanto.
Na 1.ª
estrofe, as metáforas apresentam-nos a imagem do Santo como o
capitão dum “navio de penedos” (resta saber se o lugar do capitão é à proa),
olhando saudosamente para trás, ao deixar a terra duriense em direção à vida
eterna, e, simultaneamente, revelam a atração telúrica de Torga pela terra
transmontana, o fulcro da sua inspiração poética; a imagem nos três últimos versos da
segunda estrofe deixa antever a eternidade sem montes, o que roubará à vista a
cor dos horizontes; e a expressividade dos advérbios “devagar” e “lentamente” e
dos três últimos versos da terceira estrofe mostram a morosidade da viagem,
mercê do apego de S. Leonardo à terra duriense.
Torga
imagina o Santo a navegar não num barco celestial, como as barcas de Gil
Vicente, mas “num navio de penedos” (alusão às serranias
transmontanas) e, para melhor se identificar com a terra duriense, na última
estrofe, o Santo já desliza num “barco rabelo” (embarcação típica do
rio Douro, que servia para o transporte do vinho do Porto).
A hipálage “Lá
não terá socalcos nem vinhedos na menina dos olhos deslumbrados” mostra
que o deslumbramento com a paisagem é do Santo e não dos olhos; e a sinestesia “é
um sorvo [paladar] a mais de cheiro” [olfato] insinua o prazer que o Santo
sente naquelas terras.
É a
dialética da vida espelhada numa paisagem apreciada por quem a conhece e a sabe
degustar.
2023.02.01 – Louro de Carvalho
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