Ainda
em início da caminhada quaresmal, aberta pela Quarta-feira de Cinzas, a Palavra
de Deus, neste 1.º domingo quaresmal, constitui um convite à conversão, que
postula colocar ou recolocar Deus no centro da nossa vida, disponibilizando-nos
para a comunhão com Ele e concretizando, fielmente, no Mundo, o seu desígnio de
paz e de felicidade para todos.
***
Da
1.ª leitura (Gn 2,7-9;3,1-7),
deduzimos que Deus criou o homem para a felicidade e para a vida sem labéu.
Escutando-O e não nos fechando no egoísmo, conhecemos a felicidade; porém, se
prescindimos d’Ele, incorremos na prepotência e construímos vias de sofrimento
e de morte.
O
relato javista da criação (Gn
2,4b-3,24) é um texto do século X a.C., que terá aparecido em Judá, na época do
rei Salomão. Tem um estilo exuberante, colorido e pitoresco, o que lhe dá o tom
de obra de um catequista popular a ensinar com imagens coloridas e fortes.
O
seu escopo não é científico ou histórico, mas teológico: mais do que explicar
como apareceram o Mundo e o Homem, o autor quer vincar que na origem da vida e
do homem está Javé.
Para
apresentar esta catequese aos homens do século X a.C., os teólogos javistas
recorrem a elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por
exemplo, a formação do homem do pó da terra é um elemento dos mitos de raiz
mesopotâmica). Todavia, transformam e adaptam os símbolos retirados das
narrações lendárias de outros povos, dando-lhes novo enquadramento e nova
interpretação, ao serviço da catequese e da fé de Israel. Assim, a linguagem e
a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos
com os mitos originários dos povos do Crescente Fértil, mas são muito
diferentes as conclusões teológicas, principalmente as respeitantes a Deus e ao
lugar que o homem ocupa no projeto de Deus.
A
primeira parte (cf Gn 2,7-9) do
trecho desta dominga desenvolve-se em dois quadros.
O
primeiro pinta – a cores quentes e sugestivas – a origem do homem: “o Senhor
Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe nas narinas um sopro de
vida”. O verbo usado para descrever a ação de Deus é yasar (formar, modelar), verbo ligado ao trabalho do
oleiro. Deus aparece, pois, como o oleiro que modela a argila. Estamos próximos
da conceção mesopotâmica, onde o homem é criado pelos deuses a partir do barro,
como denota o jogo de palavras adam (homem)
e adamah (terra), sugerindo que o
homem (adam) vem da terra (adamah) e que, morrendo, voltará à terra
de onde foi tirado. Porém, o homem não é apenas terra, porque recebe o sopro (neshamá) de Deus. A palavra hebraica
utilizada significa sopro, hálito, respiração. É a vida que vem de Deus que torna o homem vivo. Por
isso, o homem tem algo de divino, pois a sua vida procede de Deus. É de relevar
o cuidado de Deus na criação do homem: Deus modela, qual oleiro, cuidadosa e
amorosamente a sua obra e transmite-lhe a vida divina. O homem aparece, pois,
como o centro do projeto de Deus, ocupando um lugar especial na criação, sendo que
tudo foi criado para ele.
No
segundo quadro, o autor javista reflete sobre a situação do homem criado por
Deus. Deus não criou o homem para ser escravo dos deuses e prover ao sustento
das divindades, como nos mitos mesopotâmicos. Na ótica deste catequista, o
homem foi criado para ser feliz, em comunhão com Deus. Para descrever a
situação ideal do homem, criado para a realização plena, o javista coloca-o num
jardim cheio de árvores de fruto. Para um povo que sentia pesar sobre si a
ameaça do deserto árido, o ideal de felicidade seria um lugar com muitas
árvores e muita água.
Nessa
vegetação abundante, o autor destaca duas árvores especiais: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. A primeira simboliza a
imortalidade concedida ao homem. Ao falar desta árvore, o autor estará a pensar
na Lei. Desde o início, Deus ofereceu ao homem a possibilidade da vida imortal,
que passa por uma vida percorrida no caminho da Lei e dos seus mandamentos. Ao
lado da árvore da vida e em
contraposição a ela (pois traz a morte), está a árvore do conhecimento do bem e do mal, que simboliza o orgulho e a
autossuficiência de quem acha que pode conquistar a felicidade, prescindindo de
Deus. Comer dessa árvore significa fechar-se em si próprio, querer decidir só por
si o que é bem e o que é mal, pôr-se no lugar de Deus, reivindicar autonomia
total em relação ao criador. O homem que renuncia à comunhão com Deus resolve seguir
o caminho da morte.
A
ideia do catequista é: Deus criou o homem para ser feliz; deu-lhe a
possibilidade de vida imortal; mas o homem pode escolher prescindir de Deus e
percorrer vias onde Deus não está.
Na
segunda parte do trecho em causa (Gn
3,1-7), o autor equaciona a questão do mal. O mal que desfeia o Mundo e impede
o Homem de ter vida plena vem das opções erradas que o homem tem feito, desde o
início da história. Para dizer isto, o autor javista recorre à imagem da
serpente. Entre os povos antigos, a serpente, cujo culto estava difundido entre
os cananeus, é o símbolo, por excelência, da vida e da fecundidade (mercê da
sua configuração fálica). Nos santuários cananeus invocavam-se os deuses da
fertilidade (representados, não raro, pela serpente) e faziam-se rituais mágicos
para assegurar a fecundidade dos campos. E os israelitas, instalados ali, deixaram-se
fascinar por esses cultos e praticavam esses rituais para obterem a fecundidade
dos campos e dos rebanhos. Porém, isso significava prescindir de Javé e da Lei,
com os seus mandamentos. A serpente surge, portanto, como símbolo de tudo o que
afasta os homens de Deus e do seu desígnio.
Em
síntese, Deus criou o homem para ser feliz e indicou-lhe a via da imortalidade
e da vida plena. Contudo, o homem tenta-se à rota do orgulho e da autossuficiência
e vive à margem de Deus e do seu desígnio. E é essa a origem do mal, que
destrói a harmonia do mundo.
***
O
Evangelho (Mt 4,1-11) apresenta o
exemplo de Jesus, que recusou – em absoluto – uma vida vivida à margem de Deus
e do seu desígnio. Com efeito, a Palavra de Deus, por vezes invocada de forma
enviesada, garante que, na perspetiva cristã, vida que ignore o desígnio do Pai
e aposte em esquemas de realização pessoal é vida perdida e que toda a tentação
de ignorar Deus é de iniciativa diabólica, pelo que o cristão a deve rejeitar
com firmeza, sem dialogar com ela.
A
cena das tentações antecede, em Mateus, como nos outros sinóticos, a vida
pública de Jesus. A cena segue-se imediatamente – em termos cronológicos e lógicos
– ao Batismo. Porque recebeu o Espírito (batismo), Jesus pode afrontar e vencer
a tentação da proposta de atuação messiânica que o convida a subverter a
proposta do Pai.
Mateus
diz que “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado
pelo demónio”. Os quarenta dias e quarenta noites que, segundo o relato, Jesus
aí passou, resumem os quarenta anos da travessia de Israel pelo deserto. Nas
mentes judaicas, o deserto é o lugar da “prova”, onde os israelitas experimentaram
a tentação do abandono de Javé e do seu plano de libertação, mas também é o
lugar do encontro com Deus e da descoberta do seu rosto, o lugar onde o Povo
fez a experiência da sua fragilidade e pequenez e aprendeu a confiar na bondade
e no amor de Deus. Porém, Jesus, no deserto, aprimorando o encontro com o Pai,
mostra como resistir à tentação.
O
relato mateano não resulta da observação presencial do combate teológico entre
Jesus e o diabo. É, antes, uma página de catequese, com vista a ensinar que Jesus,
tendo sentido a mordedura das tentações, soube pôr acima de tudo o desígnio e
vontade do Pai e resistiu fundamentadamente.
O
relato de Mateus, bem como o de Lucas, parte do relato, muito curto, de Marcos,
mas ampliando o relato original, com um diálogo entre Jesus e o diabo, feito de
citações do Antigo Testamento (AT), sobretudo do livro do Deuteronómio (DT).
A
catequese sobre as opções de Jesus aparece em três quadros parabólicos.
O
primeiro sugere que Jesus podia ter escolhido a via da realização material, da
satisfação de necessidades físicas. É a tentação de fazer dos bens materiais a
prioridade da vida. Contudo, Jesus sabe que “nem só de pão vive o homem” e que
a realização do homem não está na acumulação de bens. A sua resposta cita Dt 8,3 e sugere que o seu alimento, a
sua prioridade, não é um esquema de enriquecimento rápido, mas é o cumprimento
da Palavra (vontade) do Pai.
O
segundo quadro sugere que Jesus podia ter optado pela via do êxito fácil, mostrando
o seu poder com gestos espetaculares e sendo aclamado pelas multidões,
dispostas a deixarem-se fascinar pelo “show” mediático. E Jesus responde a esta
tentação, citando Dt 6,16 e sugerindo
que não está interessado em utilizar os dons de Deus para satisfazer projetos
pessoais de êxito e de triunfo. Não tentar o Senhor Deus significa não exigir
de Deus sinais e provas que sirvam para a promoção pessoal do homem e para que
ele se imponha aos olhos dos outros homens.
O
terceiro quadro sugere que Jesus podia ter elegido a via do poder, do domínio,
da prepotência, à laia dos grandes da terra. Não obstante, sabe que a tentação
de fazer do poder e do domínio a prioridade da vida é tentação diabólica. Por
isso, citando Dt 6,13, assume, para
Si, que só o Pai é absoluto e que só Ele deve ser adorado.
Estas
três tentações constituem as três faces de uma única tentação, a de prescindir
de Deus, de escolher a via do orgulho e da autossuficiência, à margem da
vontade de Deus. Mas, para Jesus, ser “Filho de Deus” significa viver em comunhão
com o Pai, escutar a sua voz e cumprir, obedientemente, o seu plano. Ao longo
da sua vida, diante das diversas provocações dos adversários, vai confirmar a
sua opção fundamental em torno do Reino e vai procurar concretizar, com total
fidelidade, o desígnio do Pai.
Israel,
ao longo da caminhada pelo deserto, sucumbiu, frequentemente, à tentação de
ignorar a via de Deus. Jesus, ao invés, venceu a tentação de prescindir de Deus
e de escolher caminhos à margem do desígnio do Pai. De Jesus vai nascer, por
isso, o novo Povo de Deus, cuja vocação essencial é viver em comunhão com o Pai
e concretizar o seu plano de salvação para o Mundo.
***
A
2.ª leitura (Rm 5,12-19) propõe dois
exemplos: Adão e Jesus. Adão representa o homem que prefere ignorar o plano de
Deus e decidir, por si só, o caminho da vida; Jesus é o homem que assume viver
na obediência ao desígnio de Deus. O esquema de Adão gera egoísmo, sofrimento e
morte; o esquema de Jesus gera vida plena e definitiva.
No
final da década de 50 (a Carta aos Romanos apareceu por volta de 57/58),
multiplicavam-se as crises entre os cristãos oriundos do judaísmo e os oriundos
do paganismo. Tinham perspetivas diferentes da salvação e da forma de viver o
compromisso com Cristo e com o Evangelho. Os cristãos de origem judaica
entendiam que, além da fé em Jesus, era preciso cumprir as obras da Lei
(nomeadamente a circuncisão); e os de origem pagã recusavam-se a aceitar a
obrigatoriedade das práticas judaicas. Este problema era também sentido pela
comunidade cristã de Roma.
Assim,
Paulo mostra a todos os crentes a unidade da revelação e da história da
salvação: judeus e não judeus são, de igual forma, chamados por Deus à
salvação; o essencial não é cumprir a Lei de Moisés, que não salva, mas acolher
a salvação que Deus faz a todos, por Jesus.
O
trecho em referência faz parte da primeira parte da carta (Rm 11,18-11,36). Depois de demonstrar que todos vivem mergulhados
no pecado e que é a justiça de Deus que a todos salva, Paulo ensina que é
através de Jesus que a vida de Deus chega aos homens e que se faz oferta de
salvação para todos. Para deixar isto bem claro, recorre à antítese. Adão é a
figura da humanidade que prescinde de Deus, escolha que produz injustiça e
alienação; Cristo propôs um outro caminho, o da escuta de Deus, que, levando à
superação do orgulho e da autossuficiência, faz nascer o Homem Novo, plenamente
livre. Foi essa a proposta que Jesus fez à humanidade e libertou os homens da
economia de pecado e inculcou no Mundo a economia de graça que gera a vida
plena.
Não
é claro que Paulo se refira, aqui, ao que a teologia posterior designou como
pecado original (enquanto pecado histórico cometido pelo primeiro homem, que
atinge e marca todos os homens). O que é claro é que a intervenção de Cristo na
história humana se traduziu num dinamismo de esperança e de vida autêntica.
Cristo apresentou à humanidade a via de comunhão com Deus e de obediência ao
seu desígnio. E não pode haver serpente que desvie o Homem dessa via.
Para
tanto, urge a conversão, urge colocar ou recolocar Deus no centro das nossas vidas.
2023.02.26 – Louro de Carvalho
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