A
Liturgia da Palavra do 6.º domingo do Tempo Comum no Ano A concita a reflexão
sobre a atitude a assumir, face ao desígnio de Deus para levar o homem à vida
plena, a vida eterna,
A
1.ª leitura (Sir 15,16-21; 15-20, na
Vulgata latina) sublinha, contra a fatalidade dos mentores do judaísmo, que o
homem é livre de escolher entre a proposta de Deus (a da felicidade) e a autossuficiência
do homem (que desemboca na desgraça, na morte), o que vem explícito no Salmo n.º
1, o das duas vias: a dos justos, bem-sucedida; e a dos pecadores, que leva à
perdição.
Para
ajudar o homem que escolhe a vida, Deus dota-o dos mandamentos da Aliança que vinculam
o Povo e o ser humano e servem de sinais com que Deus delimita a vereda que
leva à salvação.
O
Livro de Ben Sirah, designado na Bíblia Católica por Eclesiástico, é livro sapiencial, ou seja, livro cujo escopo é
apresentar indicações práticas, a partir da reflexão e da experiência, sobre a
arte de viver bem, de ser feliz – temática da reflexão sapiencial no Médio
Oriente. O autor é Jesus Ben Sirah, judeu tradicional, cônscio de que a Torah
(Lei) dada por Deus é a súmula da sabedoria.
Estamos
no início do século II a.C., quando a cultura grega, instalada na Palestina
desde 333 a.C., quando Alexandre da Macedónia venceu Dario III, em Issos, e se
apossou da Palestina e do Egito, minava a cultura, a fé, os valores de Israel.
Os jovens abandonavam a fé dos pais, atraídos pelo brilho superior da cultura
helénica, cultura universal. E Ben Sirah, escrevendo para ajudar os israelitas
a perceber a singularidade da sua fé e da sua cultura, e para não se perder a
identidade do Povo de Deus, apresenta, uma síntese da religião e da sabedoria
de Israel, mostrando que a cultura judaica nada fica a dever à cultura grega.
Os
capítulos 14 e 15 contêm uma reflexão sobre como encontrar a felicidade. Dirigindo-se
aos concidadãos, seduzidos pela cultura grega, Ben Sirah sugere a rota da
verdadeira felicidade e insta a percorrê-la. O tema da opção entre dois
caminhos – o da vida e da felicidade e o do caminho da desgraça e da morte – é
caro à teologia de Israel. Para os deuteronomistas, esta é a questão que
determina o sentido da vida e da história: se o homem elege a via de orgulho e
de autossuficiência, à margem de Deus e dos mandamentos, prepara para si e para
a sua comunidade um futuro de desgraça; mas se escolhe viver no temor de Deus e
no respeito pelos mandamentos de Javé, constrói para si e para o seu Povo um
futuro de felicidade, de bem-estar, de abundância, de paz. Este problema está
explícito em Dt 30,15-20. E a
reflexão sapiencial mantém-se na mesma linha. Os sábios de Israel perceberam (a
partir da experiência que a história da nação lhes propiciou) que, respeitando
as indicações de Deus, o Povo constrói uma sociedade fraterna, livre e
solidária, onde todos se respeitam e têm o necessário para viver de forma
equilibrada; mas, quando o Povo opta por caminhos à margem de Javé, menosprezando
a Palavra de Deus, constrói egoísmo, exploração e divisão e, por conseguinte,
sofrimento e morte.
No
trecho em referência, Ben Sirah põe os contemporâneos – sobretudo os que
oscilavam entre a fé e a cultura dominante – diante da opção que a liberdade
lhes oferece: vida ou morte.
Deus
respeita, em absoluto, a liberdade do homem, que não é uma marionete nas mãos
de Deus, ou um robô que Deus liga e desliga com telecomando. O homem, como ser
livre, faz as suas escolhas (que lhe determinam o futuro) e tem nas mãos o próprio
destino. Deus indica-lhe o caminho para chegar à vida; mas, depois, respeita as
opções que o homem faz. Resta ao homem fazer escolhas e construir o seu
destino: com Deus ou contra Deus. Porém, nunca pode culpar Deus pelos erros em
que incorre na sua impiedade, escudado na sua vontade livre.
***
No
Evangelho (Mt 5,17-37), aprofunda-se a
reflexão do Bem Sirah, sobre a atitude de base com que o homem deve abordar o
caminho balizado pelos mandamentos. Não se trata de cumprir só regras externas,
respeitando a letra da lei, mas de assumir a verdadeira atitude interior de
adesão a Deus, com real correspondência em todos os passos da vida.
O
discurso de Jesus no cimo do monte ou sermão da montanha transporta-nos ao
Sinai, o monte da Lei, onde Deus Se revelou e deu ao seu Povo a Lei; agora, é
Jesus que, numa montanha, oferece ao novo Povo a nova Lei que deve guiar todos
os interessados em aderir ao Reino. E o evangelista, agrupando um conjunto de
ditos de Jesus, oferece à comunidade a nova Lei, novo código ético, para guiar
os discípulos na sua marcha pela história.
Na
década de 80, quando surge o Evangelho de Mateus, as questões da comunidade são
as relativas à obrigação de cumprir a Lei de Moisés ou à eventual abolição da
Lei antiga por Jesus.
É
de anotar que, no momento da transfiguração (cf Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36), Pedro, ante a visão de Jesus
transfigurado a falar com Moisés (antonomásia da Lei) e com Elias (antonomásia
da Profecia), propôs-se fazer ali três tendas: uma para Jesus, outra para
Moisés e outra para Elias. E observa Frederico Lourenço que Pedro não sabia o
que estava a dizer, pois não estava a dar conta de que Jesus é superior a Moisés
e a Elias, cabendo-lhe assumir, mas também reformar e interiorizar a Lei e a
Profecia e, sobretudo dar-lhe novo sentido, para que dela nada se perca.
Mateus
pretende conciliar as tendências e as respostas dos vários grupos que, no
contexto da sua comunidade cristã, eram dadas a estas questões. Contudo, marca
uma linha de rumo precisa.
Na
primeira parte do trecho em referência (vv 17-19), Mateus sustenta que Cristo
não veio abolir a Lei que Deus ofereceu ao Povo no Sinai, a qual mantém toda a
validade de eternidade. Todavia, é preciso assumi-la, não como um conjunto de
prescrições externas, que obrigam o homem a certos procedimentos, no contexto
de situações particulares, mas como expressão concreta de adesão total a Deus, que
requer a totalidade do homem e que está para lá desta ou daquela situação
concreta. Assim, enquanto os fariseus (cuja doutrina era dominante no judaísmo do
pós-destruição de Jerusalém), caídos na casuística da Lei, pensavam que a
salvação passava pelo cumprimento de certas normas externas, Mateus considera
que a proposta de Jesus vai mais além, passando pela assunção da atitude
interior de compromisso total com Deus.
Na
segunda parte (vv 20-37), Mateus refere quatro exemplos desta nova forma de
entender a Lei.
No
respeitante às relações fraternas, a Lei de Moisés exige, simplesmente, não
matar (cf Ex 20,13; Dt 5,17); mas Jesus, que não se atém ao estrito
cumprimento da letra da Lei, exige nova atitude interior. Assim, não matar
implica evitar qualquer tipo de dano ao irmão. Com efeito, são muitas as formas
de destruir o irmão: palavras ofensivas, calúnias demolidoras, gestos de
desprezo que excluem, confrontos que põem fim à relação. Ora, os discípulos do
Reino não podem limitar-se a cumprir a letra da Lei, mas têm de assumir uma atitude
mais abrangente, que os leve a um respeito absoluto pela vida e pela dignidade
do irmão. E Mateus apresenta à comunidade uma catequese sobre a urgência da
reconciliação (cortar relações com o irmão, afastá-lo da relação,
marginalizá-lo são forma de matar). A reconciliação com o irmão deve
sobrepor-se ao culto, pois é mentirosa a relação com Deus de alguém que não ama
os irmãos. Não basta não ter nada contra o irmão: importa que ele nada tenha
contra nós.
Depois,
a Lei de Moisés exige não cometer adultério (cf Ex 20,14; Dt 5,18); mas,
segundo Jesus, é preciso ir mais além e atacar a raiz do problema, que é o
coração do homem, onde nascem os desejos de apropriação do que não lhe pertence.
Portanto, a esse nível, impõe-se uma conversão. A referência a arrancar o olho,
que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada ao
desejo), ou a cortar a mão, que é ocasião de pecado (a mão é o órgão da ação,
pelo qual se concretizam os desejos), encerra expressões fortes (ao gosto da cultura
semita) para dizer que é preciso atuar onde as ações más do homem têm origem e
eliminar, na fonte, as raízes do mal.
Quanto
ao divórcio, a Lei de Moisés permite ao homem o repúdio da sua mulher (cf Dt 24,1); mas Jesus corrige esta norma
da Lei: o divórcio não estava no plano inicial de Deus, quando criou o homem e
a mulher e os chamou a amarem-se e a partilharem a vida.
No
atinente ao julgamento, a Lei de Moisés pede a fidelidade aos compromissos
selados com juramento (cf Lv 19,12; Nm 20,3; Dt 23,22-24), mas, para Jesus, a necessidade de jurar assenta num clima
de desconfiança adverso ao Reino. Para os que estão inseridos na dinâmica do
Reino, deve haver um clima de sinceridade e de confiança, a ponto de bastar o
simples “sim” e o simples “não”. Qualquer fórmula de juramento é supérflua e
sinal de corrupção da dinâmica do Reino.
A
questão essencial é: quem vive na dinâmica do Reino não se limita à letra da
Lei, mas assume a nova atitude interior, um compromisso com Deus que envolva o
homem todo e lhe transforme o coração. A Lei não é revogável, mas ganha novo
sentido e deve ser ensinada com o sentido que jesus lhe pespegou, para sermos
grandes no Reino. E não se pode perder tempo a levar a tribunal a relação entre
irmãos: além das consequências no foro espiritual e social, é deitar dinheiro
fora.
***
Na
segunda leitura (1Cor 2,6-10), Paulo apresenta
o plano salvador (que chama sabedoria de Deus ou mistério) que Deus preparou,
desde sempre, “para aqueles que o amam” e que esteve oculto aos olhos dos
homens, mas que Jesus Cristo revelou na sua pessoa, nas suas palavras, nos seus
gestos e, sobretudo, com a morte na cruz. Aí, no dom total da vida, revelou aos
homens a medida do amor de Deus e mostrou ao homem o caminho que leva à realização
plena.
Recorde-se
que o ponto de partida para a reflexão do apóstolo é a pretensão dos Coríntios
em equipararem a fé cristã a um caminho filosófico, a percorrer sob a
orientação de mestres humanos (Paulo, Pedro, Apolo…), ao modo das escolas
filosóficas gregas, correndo o risco de a fé se tornar uma ideologia, mais ou
menos brilhante, conforme as qualidades pessoais ou a elegância do discurso dos
mestres que defendiam essas teses. Ao invés, Paulo está consciente de que o
único mestre é Cristo e de que a verdadeira sabedoria não é a resultante do
brilho e da elegância das palavras ou da coerência dos sistemas filosóficos,
mas é a que brota da cruz.
Após
denunciar a pretensão dos Coríntios de encontrarem nos homens a verdadeira sabedoria
para chegarem à vida plena, Paulo apresenta – de forma mais desenvolvida – a
sabedoria de Deus.
Falar
da sabedoria de Deus é falar do plano de salvação que Deus preparou para a
humanidade (noutros textos, Paulo usa outro conceito para falar do mesmo:
“mystêrion” – cf Rm 16,25; Ef 1,3-10; 3,3.4.9; Cl 1,26; 2,2; 4,3). É o plano “que Deus preparou para aqueles que o
amam”, no sentido de os levar à vida plena, e que resulta do amor e da
solicitude de Deus pelos seus filhos. É um plano que Deus manteve misterioso e
oculto durante muitos séculos e que só revelou através do seu Filho, Jesus
Cristo, pois, antes da revelação através das palavras, dos gestos, da pessoa de
Cristo, dificilmente os homens estariam preparados para compreender o alcance e
a profundidade do plano divino, da sabedoria de Deus.
Na
leitura paulina da história da salvação, as coisas são claras: Deus
escolheu-nos desde sempre, para que, tornando-nos santos e irrepreensíveis,
para cheguemos à vida eterna. Por isso, veio ao nosso encontro, fez aliança connosco,
indicou-nos as vias da vida e da felicidade; e, na plenitude dos tempos, enviou
ao nosso encontro o próprio Filho, que nos libertou do pecado, nos inseriu na
dinâmica de amor e de doação da vida e nos convocou à comunhão com Deus e com
os irmãos. Na cruz, está bem explícita esta história de amor que vai até ao
ponto de o próprio Filho dar a vida por nós. O plano de salvação continua a
acontecer na vida dos crentes pela ação do Espírito: é o Espírito que nos anima
no sentido de nascermos, no quotidiano, como homens novos, até nos
identificarmos com Cristo e sermos compartícipes da sua missão messiânica.
Somos
cristãos ao jeito de Cristo. Não cristãos não praticantes, nem praticantes não crentes!
2023.02.12 – Louro de Carvalho
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