É
o padre ortodoxo Cyril Hovorun, ex-secretário de Cirilo, o patriarca de Moscovo
e de todas as Rússias, que fala de putinismo e o define como um conjunto de
crenças convergentes na ideia fundamental de que “a Rússia é uma civilização especial favorecida por Deus”. E, à luz dessas
crenças, conclui-se que a Rússia é “o país eleito”, o que legitima todo
o tipo de violações e de violência, como está a acontecer, de facto, na Ucrânia.
Sustentando que “é necessário
desmantelar o putinismo como se fez com o nazismo”, Hovorun explica a sua
posição em entrevista publicada pelo jornal espanhol La Vanguardia, a 21 de fevereiro, precisamente, no primeiro
aniversário da decisão do presidente russo de proceder a uma “operação militar especial”
na Ucrânia, para desnazificar o regime e “libertar” o seu povo, tendo a operação
– diga-se invasão – vindo para o terreno, passados três dias.
O
padre ortodoxo é ucraniano, é professor de Teologia e foi, durante dez anos, secretário
do patriarca Cirilo. Um ano após a invasão da Rússia ao seu país, assegura que
o mais perigoso não é Vladimir Putin, mas o que chama de “putinismo”,
fortemente suportado na Igreja Ortodoxa Russa. Com efeito, como adverte, “Putin
pode ser derrotado com armas, mas o putinismo só com ideias”. E, se não se
acabar com ele, todo o resto da Europa pode estar em perigo real.
Segundo
Cyril Hovorun, “Putin tem um problema para explicar esta guerra aos russos e a
si próprio, em termos racionais”. E, como “tal explicação é simplesmente
impossível”, fica sem outra opção “senão recorrer a explicações metafísicas ou
quase religiosas”. Para isso, “necessita da Igreja Ortodoxa Russa”, onde
encontrou um forte aliado.
Assim,
“o Kremlin e o Patriarcado de Moscovo fabricaram uma mitologia que doutrina a
população russa e a faz aprovar a guerra” – explicita o professor de Teologia. “Esta
mitologia não é nova”, diz, e pode encontrar-se “nas religiões dualistas do
passado, que viam o Mundo dividido em partes boas e más”. Na ótica do presidente
russo, o Ocidente é a parte malvada, enquanto a Rússia é a parte boa. Nos
termos desta doutrina, a Ucrânia está ocupada pelas forças do mal do Ocidente e
Putin diz acreditar que libertará a Ucrânia destas forças do mal. E a maioria
dos russos acredita nisso mesmo. Por consequência, como os cruzados medievais eram
impelidos pelas ideias similares de “libertação” (dos Lugares Santos, na
Palestina, e das vias que para lá convergiam), sem contarem as vítimas dos seus
esforços de “libertação”, também os Russos, no século XXI, não contam as
vítimas da sua agressão, onde quer que seja necessário.
O discurso
de Vladimir Putin no Parlamento de Moscovo, no mesmo dia em que era
publicada a entrevista a Hovorun, reforça esta teoria. Na sua alocução anual sobre
o estado da nação, o presidente russo, preocupado
com a saúde espiritual das crianças russas, desferiu fortes
críticas contra o Ocidente, onde considera ter-se instalado a decadência: “Vejam
o que eles fazem com os seus próprios povos: a destruição das famílias, das
identidades culturais e nacionais, a perversão e os maus-tratos de crianças,
até a pedofilia são declarados como sendo a norma [….]. E os padres são obrigados
a abençoar os casamentos homossexuais.”
Aduzindo
argumentos usados por Cirilo, recorreu à Bíblia para “defender a família
tradicional”. “A família é uma união entre um homem e uma mulher” e isso é algo
que “aparece nas escrituras sagradas de todas as religiões”. Porém “os textos
sagrados, atualmente, são questionados” pelo Ocidente, frisou, revelando particular
preocupação com a saúde mental e espiritual das crianças russas: “temos que
proteger os nossos filhos da degradação e da degeneração, e fá-lo-emos”.
A este
respeito, é de recordar que, por ocasião do septuagésimo aniversário do líder
do Kremlin, a 7 de outubro de 2022, o patriarca russo o felicitou, elogiando o
papel do chefe de Estado na “transformação da imagem” do país.
Em
mensagem dirigida a Vladimir Putin, Cirilo destacou a figura do líder “pelo
reforço da soberania e das capacidades defensivas e da defesa dos interesses
nacionais”. “Deus colocou-o a si no poder para que pudesse levar a cabo uma
missão com uma importância particular e de uma grande responsabilidade para o
destino do país e do povo que vos foi confiado”, acrescentou o líder da Igreja
Ortodoxa Russa, que fez votos por que o chefe do Estado, no poder há 22 anos,
tenha “capacidades físicas e morais para mais anos” e apelou aos fiéis a que
rezassem por ele naquele dia, em todo o país. Putin “conquistou a reputação de um líder
nacional, leal à pátria,
que o ama com sinceridade e que lhe dá forças”, vincou Cirilo. “Que a sua força não falhe e que
a ajuda de Deus seja grande”,
concluiu.
O patriarca Cirilo, líder dos ortodoxos russos desde 2009, pôs a Igreja Russa
ao serviço de Vladimir Putin, que chegou a classificar como “um milagre” em
2012. Os dois homens partilham a ambição de uma Rússia conservadora e dominadora
e o chefe da Igreja ortodoxa apoiou a nova campanha militar contra a Ucrânia. Em
particular, concordam que se verifica “uma decadência moral e declínio no
Ocidente”, nomeadamente pela tolerância em relação à comunidade LGBT, o que significa
o advento do “ satanismo”.
Cirilo, como é conhecido Vladimir Mikhailovitch Goundiaiev, sucedeu a
Alexandre II, tem 75 anos, nasceu em Leninegrado (hoje São Petersburgo), em
1946 e, tal como Putin, foi agente do KGB, a polícia política da ex-União
Soviética.
Além de Cirilo, outras personalidades felicitaram o chefe de Estado russo pelo seu aniversário. O líder checheno,
Kadyrov, postou uma mensagem na rede Telegram
felicitando “o líder de todo um povo”, uma das personalidades mais influentes e
excecionais do mundo contemporâneo. E o presidente da Câmara Baixa do
Parlamento, Viatcheslav Volodine, difundiu, através das redes sociais, um
retrato do presidente com a legenda: “Se existe Putin, então a Rússia existe.”
Cyril
Hovorun recorda que o Papa Francisco apelidou Putin de “acólito de Cirilo” e
defende que “do ponto de vista de Cirilo, Putin é que é o seu acólito”. Na
opinião do padre ortodoxo ucraniano, Putin e Cirilo não gostam muito um do
outro, mas precisam um do outro. Se, para o presidente russo, a Igreja é “um
dos principais provedores da sua legitimidade” e ajuda a fabricar argumentos de
apoio à sua guerra, para Cirilo “Putin é a sua principal fonte de riqueza e
prestígio”. Como consequência deste “casamento de conveniência”, haverá pesadas
faturas. A Igreja na Rússia está a ser desacreditada pelo apoio que vem dando à
guerra, com os Russos que ainda a apoiam cada vez mais a crerem que não é função
da Igreja dar-lhe suporte. Assim, quando a guerra acabar, haverá um grande
fiasco pessoal para Cirilo e para a Igreja russa. E, para encontrar, por si
mesma, um novo lugar na nova Rússia, esta Igreja terá de se arrepender do que
fez sob Putin, mas sem ser capaz de evitar que a sociedade russa se torne ainda
mais secularizada.
Quanto
às diversas Igrejas locais independentes que compõem a Igreja ortodoxa, apenas
algumas condenaram explicitamente a agressão russa. Muitas não se atrevem a
avaliar a guerra. Isto significa, para Hovorun, que a guerra dividiu a
“Ortodoxia global” e que só pode reconciliar-se depois de condenar unanimemente
a guerra e o seu perpetrador: a Rússia de Putin.
Em todo o caso, Hovorun considera
que, para haver “uma paz duradoura na Europa”, a vitória “deveria ser ucraniana
e não russa”. Com efeito, se a Rússia sente que ganhou a guerra, continuará a
tentar a sua sorte, invadindo o Ocidente, ou seja, fazendo estender ainda mais a
guerra ao continente europeu, como uma gangrena. E não se pode parar uma
gangrena, a não ser que se remova cirurgicamente. Por isso, conclui o sacerdote
que “é indispensável “desmantelar o putinismo, tal como se desmantelou o
nazismo na Alemanha depois da morte de Hitler”.
***
As suspeitas sobre o passado do patriarca ortodoxo russo circulavam há anos
e dois jornais suíços, que cederam a arquivos desclassificados dos respetivos serviços
secretos, confirmaram-nas a 5 de fevereiro. Cirilo trabalhou para a principal
organização de serviços secretos da então União Soviética, o KGB, durante os
anos que viveu na Suíça, na década de 1970.
De acordo com o Le Matin Dimanche e o Sonntagszeitung, a ficha
policial de Cirilo, atual líder espiritual da Igreja Ortodoxa Russa que tem
apoiado assumidamente a invasão russa à Ucrânia, “confirma que ‘Monsenhor
Kirill’, como é chamado no documento, pertence ao KGB”.
No início dos anos 70, o patriarca foi morar para Genebra, para representar
o Patriarcado de Moscovo no Conselho Ecuménico de Igrejas (CEI). A missão de
Cirilo, cujo nome de código era Mikhailov, seria influenciar a instituição,
para que denunciasse os Estados Unidos e aliados e moderasse as críticas à
falta de liberdade religiosa na União Soviética. Porém, contactado por ambos os
jornais, o CEI afirmou não ter “nenhuma informação” sobre este assunto.
Entretanto, Mikhail Gundiaev, um sobrinho que o substituiu como
representante do Patriarcado de Moscovo em Genebra declarou ao Le Matin Dimanche que o tio “não era um
agente, apesar de estar sob o ‘estrito controlo’ do KGB”, o que “não afetou a
honestidade do seu compromisso no trabalho ecuménico com outras igrejas”.
As declarações de Mikhail Gundiaev não desvinculam Cirilo da sujeição ao
KGB e muito menos o papel do Líder da Igreja Ortodoxa Russa na consolidação do nefasto
putinismo.
2023.02.24 – Louro de Carvalho
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