É
uma notável asserção do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, na Cimeira dos Oceanos (ou Ocean Race Summit) no
Mindelo, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde, a 23 de Janeiro deste ano,
efeméride a que a opinião pública parece ter dado importância diminuta, mas que
representa a concretização de relevante ponto de agenda em prol dos oceanos,
neste país-arquipélago assente em pleno oceano.
A cimeira, que também equacionou o problema financeiro
inerente ao tema, realizou-se no Ocean
Science Centre Mindelo, no âmbito
da primeira passagem por Cabo Verde da Ocean Race (de 20 a 25 de janeiro), a maior e mais antiga regata do mundo.
Já a 21 de janeiro, o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António
Guterres, afirmou, após reunião com o
primeiro-ministro cabo-verdiano, Ulisses
Correia e Silva, no
Mindelo: “Precisamos de Justiça para aqueles que, como Cabo Verde, praticamente
nada fizeram para provocar esta crise, mas pagam
por causa dela um preço muito elevado. Cabo Verde tem
demonstrado liderança climática em palavras e ações.” Com efeito, perspetivando
a importância da visita a Cabo Verde, defendeu que o momento é de mais
solidariedade e maior sentido de urgência e mais ambição.
Na sessão
de abertura, intervieram o secretário-geral da ONU, o primeiro-ministro
cabo-verdiano e o primeiro-ministro português. Seguiram-se vários painéis com
políticos, especialistas, desportistas e ambientalistas cabo-verdianos e
internacionais.
Da cimeira
constou, também, a assinatura, entre os governos de Cabo Verde e de Portugal,
de um memorando de entendimento para conversão de dívida num Fundo
Climático e Ambiental (FCA).
Efetivamente,
a 19 de janeiro, Ulisses Correia e Silva, em declarações à agência Lusa, anunciava: “Nós já iremos assinar
um memorando de entendimento relativamente à transformação da dívida Estado a
Estado, Cabo Verde e Portugal, para a sua aplicação em investimentos que aumentem a resiliência de Cabo Verde.
No fundo, é a alimentação do Fundo Climático e Ambiental, através de uma
comparticipação de Portugal, esperando que haja comparticipação de outros
parceiros, bilaterais e multilaterais.”
O
primeiro-ministro de Cabo-Verde disse tratar-se de um acordo que representa “um
exemplo” e “um engajamento muito forte”, ante os efeitos que o arquipélago
enfrenta com as alterações climáticas, nomeadamente a seca prolongada desde
2016, além da crise económica decorrente da pandemia de covid-19 e o impacto da
crise inflacionista mercê da guerra na Ucrânia. E vincou: “Há muito tempo e
sempre que se realizam as COP (Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças
Climáticas), já houve várias, várias iniciativas. A questão do financiamento
climático tem estado sempre sobre a mesa. Nós estamos aqui a construir uma
solução muito boa, porque é um investimento, um financiamento, para aumento da
resiliência e do aumento da capacidade do país superar as situações de
eventuais crises. Isso é muito mais forte no percurso do seu desenvolvimento.”
Segundo dados do Governo cabo-verdiano de 2021, a dívida de Cabo Verde a
Portugal ascendia a mais de 600 milhões de euros.
O memorando não fixa os valores, mas os mecanismos. Portugal e Cabo Verde vão
trabalhar para a criação do FCA, segundo o princípio da transformação da dívida
bilateral entre os dois países em financiamento ambiental e climático,
nomeadamente a transição energética, o financiamento para garantir as condições
de proteção da biodiversidade, naquela zona marítima, a questão associada à
proteção da conservação da biodiversidade, também terrestre, e a política da
água.
O secretário-geral da ONU, no discurso de abertura – focado na urgência das alterações
climáticas e na linha da frente que são os oceanos e os Pequenos Estados
Insulares em Desenvolvimento (SIDS, na sigla em inglês), como Cabo Verde –, acusou a humanidade de estar a matar o mar e
reclamou o apoio maciço internacional aos
países em desenvolvimento, como uma das medidas para se acabar com a atual “emergência
oceânica” e agradeceu ao governo e a Cabo Verde o empenho na conservação dos
oceanos. E, este respeito, vincou: “Acabar com a emergência oceânica significa
fornecer apoio maciço aos países em desenvolvimento que vivem com os primeiros
e piores impactos da degradação do nosso clima e oceanos. Os países em
desenvolvimento são vítimas de um sistema financeiro global moralmente falido, projetado
pelos países ricos para beneficiar os países ricos.”
“Estou profundamente frustrado com o facto de os líderes mundiais
não estarem a prestar a esta emergência, uma emergência de vida
ou de morte, a ação e os investimentos necessários. Estamos perante a luta das
nossas vidas e infelizmente estamos a perdê-la”, afirmou António Guterres, que
enfatizou: “As emissões continuam a aumentar, as temperaturas não param de
subir, estamos prestes a ultrapassar o limite de 1,5 graus e, se nada for feito
a caminho, na direção, dos 2,8 graus de aquecimento global até ao final do
século. Seria uma catástrofe de consequências devastadoras. Várias partes do
nosso planeta seriam inabitáveis, particularmente em África, e, para muitos,
esta seria uma sentença de morte.”
O primeiro-ministro cabo-verdiano, enquanto anfitrião,
manifestou a total adesão de Cabo Verde ao apelo do dirigente da ONU e
explanou: “É
neste sentido que Cabo Verde manifesta total adesão ao apelo do Secretário-geral
das Nações Unidas, à ação para salvar os oceanos e proteger o futuro do planeta
Terra. Colocamos justificadas expectativas na Coligação dos Pequenos Estados
Insulares em Desenvolvimento pela Natureza, criada com o objetivo de mobilizar
meios para a implementação dos objetivos ambiciosos a nível da biodiversidade.
E, no apelo ‘Call for Action’, acrescento, ‘Now’. Gostaríamos que os temas e os
compromissos que a Coligação pela Natureza propõe fossem considerados na
Cimeira do Futuro a ter lugar em Setembro de 2023 e na próxima Conferência dos
Oceanos das Nações Unidas em 2025.”
Tal conferência será organizada pela França em conjunto
com a Costa Rica.
António Costa, sustentou que
“a proteção dos oceanos é uma causa global”, a abordar de forma multilateral,
centrada nas Nações Unidas, através de processo participativo que envolva os
governos e a sociedade civil e assente na Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar.
Na sua intervenção, António Costa
relembrou a 2.ª Conferência dos Oceanos das Nações Unidas que decorreu em
Lisboa, 27 de junho a 1 de julho de 2022, e da qual resultou a Declaração de
Lisboa – intitulada “O nosso Oceano, o nosso futuro, a nossa responsabilidade”.
O primeiro-ministro de Portugal,
para quem importa “concretizarmos as nossas responsabilidades e caminharmos, em
conjunto, para uma verdadeira agenda de proteção dos Oceanos, atingindo os
compromissos assentes no Acordo de Paris e na Agenda 2030”, destacou a
necessidade de uma estratégia credível para cumprir as metas de descarbonização
e fazer face às alterações climáticas, que “passa obrigatoriamente por
desenvolver uma transição azul a par de uma transição verde”. Assegurar o
adequado financiamento destas transições é o objetivo.
***
É de
recordar que a ONU mantém coerentemente a sua linha de preocupação pelo clima e
pelos Oceanos. No balanço de 2022, que efetuou a 19 de dezembro, António
Guterres voltou a apelar aos líderes de governos, de empresas e da sociedade
civil a que tomem novas medidas que sejam credíveis. E prometeu convocar “uma
ambiciosa Cimeira Climática para setembro de 2023”, convidando “todos os
líderes a participar” – convite aberto, mas com preço de entrada a pagar. E o
preço “não é negociável”, sublinhou Guterres, revelando os objetivos: “Devem
ser apresentadas novas ações credíveis e sérias e novas soluções para responder
à urgência da crise climática.”
Após quatro
anos de conversações e duas semanas de negociação, os Estados-membros da COP15 (Conferência
da Biodiversidade), realizada em Montreal, Canadá (7 a 19 de dezembro de 2022),
aprovaram um acordo histórico de proteção da biodiversidade global. O acordo, do
penúltimo dia, prevê garantias de proteção de, pelo menos, 30% da terra e da água
do planeta até 2030, com centenas de milhares de milhões de euros para a
conservação de locais e espécies selvagens.
O
biólogo português Humberto Rosa,
ex-secretário de Estado do Ambiente, e líder da Direção-Geral para a Biodiversidade
na Comissão Europeia (conselheiro de Guterres em matéria ambiental no governo)
desejava, em declarações à Rádio
Renascença (ainda não sabendo do acordo), que a COP15 fosse mais longe na
definição de metodologias que permitam medir o estado e o progresso na defesa
da biodiversidade. Entre os pontos mais complexos estão as questões do
financiamento e da proteção dos recursos genéticos.
Observando
que a
biodiversidade não é problema autónomo face à crise da insustentabilidade
global, diz que as alterações climáticas são a manifestação mais evidente da
crise, mas que há “um declínio brutal da natureza porque estamos a desenvolver-nos
à custa da biosfera”.
Com efeito,
as alterações climáticas, a biodiversidade e a economia estão intrinsecamente
ligadas. E, não sendo crível que a simples decisão da cimeira resolva problema
tão vasto, pode, no entanto, contribuir para deixarmos de ser o que António
Guterres exemplificou, ao referir que “o ser humano está a transformar-se numa
arma de destruição maciça”. Há que parar com isso, não por estética, mas por
dependência estrita. Do ponto de vista científico, está claro que a ação humana
está a provocar esta enorme crise de natureza e biodiversidade no mundo. Na
perceção da opinião pública, que determina a ação política, a biodiversidade
tem menos “pedagogia da catástrofe” comparando com a das alterações climáticas,
que está ilustrada com cheias, ondas de calor ou fogos florestais. E são os
povos indígenas que mais cuidam do ambiente, sem benefício, quando os ricos,
neocolonizadores, não aceitam ser “vítimas” da biopirataria.
Não
obstante, começam a registar-se casos, como o declínio de insetos
polinizadores, que ocorre na Europa e noutras partes do Mundo, com relação
direta com a segurança alimentar. Isso é sentido pelas pessoas, como sucede com
os plásticos nos oceanos ou com os fogos florestais, que ligam os temas da
biodiversidade e das alterações climáticas. E o discurso político liga cada vez
mais os dois temas, nomeadamente através das soluções baseadas na natureza,
mais eficazes em tantas frentes. Na verdade, não se resolve o problema
climático, se se degradar a natureza. A janela de oportunidade é curta. Os
seres humanos precisam de números e de metas para se mobilizarem. Trabalha-se
em décadas, por ser mais percetível para o ser humano cumprir os objetivos.
Havendo metas climáticas para 2030, faz sentido que as outras metas
interligadas, como a conservação, o restauro e o uso sustentável da natureza
convirjam.
Assim o
queiram as instâncias internacionais, os governos dos países, os cidadãos e os
agentes económicos. As cimeiras temáticas em países assentes no Oceano são um
belo contributo. E a cimeira de Cabo Verde é ponto de contacto entre a
Conferência dos Oceanos de 2022 e a de 2025.
2023.02.07 – Louro de
Carvalho
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