A Associação de Assistência aos Presos Políticos (AAPP) de Myanmar (a antiga
Birmânia) denunciou que, pelo menos 3.000 civis (entre os quais se contam 300
crianças), morreram no país, devido à repressão dos militares desde o golpe de
Estado lançado pelo exército em fevereiro de 2021. E o seu relatório não inclui as vítimas que lutaram conta a
junta militar.
É uma verdadeira
catástrofe humana.
A 3.000.ª
vítima foi identificada pela AAPP como a freira Sate, “queimada viva” na região
de Sagaing, não tendo conseguido escapar de um ataque a Let Pan Hla, no
município de Khin-U, localidade em que vivia a religiosa, de 70 anos, e onde cerca de cem militares da junta
militar e da milícia Pyu Saw Htee incendiaram todas as casas.
Como já apontado, entre as 3.000 vítimas, incluem-se 300
crianças, mortas pela artilharia da junta militar, por ataques aéreos, ou
baleadas enquanto brincavam.
O balanço,
divulgado pelo portal de notícias The
Irrawaddy, ligado à oposição birmanesa, adianta que 1.229 pessoas, ou seja,
quase 41% do total das pessoas mortas, foram assassinadas pela junta militar e
pelas milícias paramilitares Pyu Saw Htee, da região de Sagaing. Em segundo
lugar da lista de locais com maior número de vítimas, ficou a região vizinha,
Mandalay, contabilizando 350 mortos, enquanto a região de Rangoon registou 316,
colocando-se em terceiro lugar.
Além do
número crescente de mortos, a quantidade de pessoas que teve de deixar as suas
casas por causa da repressão preocupa as Nações Unidas: 1,2 milhões de pessoas
permanecem deslocadas dentro do país e outras 700.000 tiveram de deixar Myanmar
nos últimos dois anos.
A este
número somam-se os milhões de muçulmanos da etnia rohingya que fugiram do país,
nas últimas décadas, devido à perseguição de que são alvo.
As Nações
Unidas referiram que há muitas infraestruturas danificadas, dando como exemplo
os mais de 34.000 edifícios públicos, hospitais, escolas e locais de culto que
foram incendiados.
Já neste ano
de 2023, pelo menos, 118 civis foram mortos pelas forças da junta, embora a
associação que ajuda os presos políticos considere que o número real será muito
maior.
O regime
decidiu, no início de fevereiro, manter o atual estado de emergência por, pelo
menos, mais seis meses, o que abre portas à manutenção da repressão que se
tornou especialmente evidente nas semanas após o golpe contra o governo da
vencedora das últimas eleições reconhecidas, Aung San Suu Kyi.
Os militares
tomaram à força o poder em Myanmar, a 1 de fevereiro de 2021, com o pretexto de
fraude nas eleições do ano anterior, que foram esmagadoramente vencidas pelo
partido pró-democracia de Aung San Suu Kyi, acima referida.
Após o golpe
de Estado, a junta militar assegurou que organizaria novas eleições, estimando
que só acontecessem em agosto de 2023, já que o país, que entrou num violento
conflito civil, deveria primeiro ganhar “paz e estabilidade”. Entretanto, vem realizando
uma repressão sangrenta, numa
tentativa de suprimir a oposição pública ao seu governo, registando-se, de acordo com a AAPP, além dos 3.000
mortos agora denunciados, quase 15.900 presos.
Entre os presos pela junta militar, incluem-se líderes
eleitos, legisladores, manifestantes pacíficos, jornalistas, estudantes,
funcionários públicos em greve, professores, médicos, e até crianças. A junta também
prendeu mais de 450 membros da família de ativistas antirregime, quando as suas
tropas não conseguiram encontrá-los em casa.
No final de
janeiro, Volker Türk, alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, alertou para a “regressão geral em termos de direitos humanos” em
Myanmar nos quase dois anos que decorreram desde o golpe de Estado. E,
afirmando que o revés afeta os direitos económicos, sociais, culturais, civis e
políticos dos cidadãos, pediu às autoridades de facto a libertação de todos os presos políticos, incluindo a ex-conselheira
de Estado e Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, como forma de resolver a
crise humanitária.
***
Face à contínua escalada da violência, às graves violações
dos direitos humanos e às ameaças à paz, à segurança e à estabilidade em
Myanmar, o Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia (UE),
reunido a 20 de fevereiro, em Bruxelas, adotou “medidas restritivas
contra nove pessoas e sete entidades”.
Foram objeto de sanções, entre outros, o ministro da Energia,
destacados empresários que apoiaram a repressão exercida pelo regime com armas
e bens de dupla utilização e oficiais de alta patente das Forças Armadas de
Myanmar estreitamente associados ao regime. Encontram-se, igualmente, incluídos
na lista políticos e administradores da região de Rangum implicados no processo
de condenação à morte e execução de quatro ativistas pró-democracia, em julho
de 2022, e do estado de Cachim, onde foram responsáveis pela supervisão de
ataques aéreos, massacres, rusgas, fogo posto e ainda do recurso a escudos
humanos, atos praticados pelas forças armadas.
Entre as entidades constantes da lista, contam-se elementos dos
departamentos do Ministério da Defesa e de uma empresa pública sob a sua
jurisdição, bem como de empresas privadas que fornecem combustível, armas e
fundos às forças armadas.
Ao todo, as medidas restritivas aplicam-se agora a 93 pessoas
e 18 entidades. As pessoas designadas estão sujeitas a um congelamento de bens e
à proibição de viajar, o que as impede de entrar ou transitar pelo território
da UE. Além disso, é proibido a pessoas e entidades da UE disponibilizarem
fundos às pessoas e entidades incluídas na lista de sanções.
Continuarão em vigor outras medidas restritivas da UE: embargo
às armas e a equipamentos e restrições à exportação de equipamento para a
monitorização de comunicações, utilizável para fins de repressão interna; proibição
de exportação de bens de dupla utilização, para uso das forças armadas e da
polícia de fronteiras; e ainda a proibição da prestação de formação militar às
Tatmadaw (nome oficial das forças armadas de Myanmar) e de cooperação militar
com esta entidade. Por outro lado, as medidas restritivas, agora tomadas, vêm
acrescentar-se à já em vigor suspensão de assistência financeira da UE
diretamente destinada ao Governo e ao congelamento de toda a assistência da UE
que possa ser considerada como legitimadora da junta militar.
***
A 1 de fevereiro de 2022, 1.º aniversário do golpe militar,
em resposta ao apelo da conferência episcopal do país, a Fundação Ajuda à
Igreja que Sofre (AIS) convocou os benfeitores e amigos em todo o mundo para
fazerem daquele dia uma jornada de oração e de solidariedade para com a Igreja
deste país asiático.
O presidente executivo internacional da AIS vincava,
em comunicado, que aquele dia de oração procurava ser “um sinal de
solidariedade e de fraternidade” para com a Igreja local, lembrando todas as
“vítimas inocentes” da violência que irrompeu no país ao longo de 2021.
Entre os estados que mais sofreram estão os de Chin,
Kayah e Karen, marcados por longos conflitos étnicos e onde o exército se tem confrontado
com milícias armadas. E, ainda que minoritária, há uma presença considerável de
população cristã nestes estados, facto que tem motivado um acréscimo de
preocupação por parte da AIS.
Aquela fundação pontifícia dizia estar a seguir de
perto a situação vivida pelos cristãos no país, “apesar das enormes
dificuldades de comunicação”, e sublinhava que, “pelo menos, 14 paróquias no
estado de Kayah foram abandonadas, com muitos padres e irmãs refugiados na
selva ou em aldeias remotas, acompanhando as populações locais.
“Outros – referia a AIS, em comunicado – optaram por
ficar em aldeias quase desertas”. E havia o relato de que, “entre os milhares
de deslocados, cerca de 300 pessoas, na sua maioria idosos, mulheres, crianças
e deficientes, teriam procurado abrigo no complexo da catedral de Kayah.
A Igreja local tem sido porto de abrigo de deslocados
e de vítimas que precisam de apoio, de comida, de água, de abrigo e de medicamentos.
As populações “fogem da violência, por vezes brutal, que tem vindo a ocorrer um
pouco por todo o país”, como foi o caso do “massacre de, pelo menos, 35 civis
inocentes, queimados e mutilados na aldeia de Mo So, também no estado de Kayah,
na altura do Natal” de 2021, assinalava a AIS.
De acordo com as Nações Unidas, a 17 de janeiro de
2022, o número oficial de deslocados em Myanmar ultrapassava já os 405 mil,
estimando-se que o número de pessoas em risco de pobreza tenha chegando aos 25
milhões (quase metade da população) durante o ano de 2022, sendo que, destes,
cerca de 14 milhões precisavam de ajuda humanitária urgente.
***
Enfim, vive a Europa e o Ocidente, em geral, a
situação de guerra entre a Federação Russa e a Ucrânia (a que se aliou o Ocidente:
pelo menos os Estados Unidos da América, o Reino Unido e a UE). Todavia, não
podem esquecer-se e descurar-se as guerras internas em diversos países,
assinaladas pelas Nações Unidas, como é o caso de Myanmar, onde as pessoas são detidas, presas ou mortas, muitos fogem, as
estruturas físicas e sociais são destruídas, a pobreza está em ascendente e
quase generalizada escalada, uma etnia é violentamente escorraçada – tudo em
flagrante violação dos direitos humanos e do desígnio da paz.
2023.02.21
– Louro de Carvalho
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