A
Liturgia do 5.º domingo do Tempo Comum no Ano A insta a que reflitamos sobre o
compromisso cristão. Os interpelados pelo desafio do Reino dos Céus não podem
remeter-se à vida cómoda e instalada, nem refugiar-se no ritual de gestos
vazios, mas têm de viver tão comprometidos com a transformação do Mundo que se
tornem a luz que brilha na noite a apontar Urbi
et Orbi a pátria de plenitude que Deus nos prometeu – o mundo do Reino dos
Céus.
No
Evangelho (Mt 5,13-16), Jesus exorta
os discípulos a que sejam o sal que dá sabor ao mundo e que testemunha a perenidade
e a eternidade do plano salvador de Deus; e incita-os a que sejam luz a apontar
as realidades eternas e a vencer a escuridão do sofrimento, do egoísmo, do
medo, conduzindo ao Reino de liberdade e de esperança.
Na
prossecução do sermão da montanha, o texto mateano proclamado e meditado nesta
dominga parte de dois símiles – o do sal e o da luz – destinados a relevar o
papel do novo Povo de Deus no Mundo e a definir a missão dos que aceitam viver
no dinamismo das bem-aventuranças.
O
sal é o elemento que, misturado na comida, dá sabor aos alimentos.
Paralelamente, é o elemento que assegura a conservação dos alimentos e a sua
incorruptibilidade. Por isso, significa o que é inalterável. No Antigo
Testamento, é usado para significar o valor durável de um contrato. Nestes
termos, falar de aliança de sal (Nm
18,19) é vincar um compromisso perene (cf 2Cr
13,5).
Proclamar
que os discípulos são o sal é dizer que são chamados a trazer ao Mundo esse
elemento que o mundo não tem e que dá sabor à vida do homem e que da fidelidade
dos discípulos ao programa de Jesus (as bem-aventuranças) depende a perenidade
da aliança entre Deus e os homens e a permanência do projeto libertador de Deus
no mundo e na história.
Frisar
a perda do sabor (“se o sal perder o sabor… já não serve para nada”) é alertar
os discípulos para a necessidade do compromisso efetivo com o testemunho do
Reino. Se os discípulos se demitirem das suas responsabilidades, o Mundo guiar-se-á
por critérios de egoísmo, de injustiça, de violência e de perversidade, ficando
cada vez mais distante da realidade do Reino que Jesus veio pregar, o que tornaria
inútil a vida dos discípulos.
Para
a explicar o símile da luz, Jesus utiliza duas imagens. A imagem da cidade
situada sobre um monte leva-nos a Is 60,1-3, onde ressalta a luz de Deus que
devia brilhar sobre Jerusalém e, a partir de lá, alumiaria todos os povos.
Aplicada a Israel, quer dizer que o Povo de Deus devia ser o reflexo da luz
libertadora de Javé diante de todos os povos da Terra. E a imagem da lâmpada
colocada no candelabro, para alumiar todos os que estão em casa explicita a
mensagem da primeira: os que aderem ao Reino devem ser luz que ilumina e
desafia o mundo. É possível que estas imagens aludam ao Servo de Javé, a luz das
nações, de Is 42,6 e 49,6.
A
verdade é que, na ótica de Jesus, a presença da luz de Deus para alumiar as
nações dar-se-á nos discípulos, os que aceitam o apelo do Reino pelas
bem-aventuranças. Eles são a nova Jerusalém,
ou o novo Servo de Javé, de onde a libertação
de Deus irradia e transforma a vida de todos.
Porém,
estas duas imagens não postulam que os discípulos de Jesus devam dar nas
vistas, mostrar-se, escolher lugares de visibilidade de onde as massas os
admirem e aplaudam, porque a luz é para iluminar, não para encandear e ofuscar.
Pretende-se vincar que a missão das testemunhas do Reino deve levá-las a questionar
o mundo, a ser interpelação profética e reflexo da luz de Deus, não podendo
esconder-se, ou seja, demitir-se da sua missão ou fugir às responsabilidades.
As
boas obras que os discípulos devem praticar e que serão testemunho do Reino
para os homens, são as que Mateus elenca na segunda parte das bem-aventuranças:
a misericórdia, isto é, um coração capaz de compadecer-se, de perdoar, de se
comover, de se deixar tocar pelos sofrimentos e angústias dos irmãos; a pureza
de coração, isto é, a honestidade, a lealdade, a verdade, a verticalidade; e a
defesa intransigente da paz e da justiça, recusando a violência e a lei do mais
forte, lutando pela reconciliação. Desse labor nascerá o mundo novo, o do Reino.
Portanto,
a missão dos discípulos é dar sabor ao Mundo, garantindo a perenidade da
Aliança, e iluminar o mundo com a luz de Deus. Eles são as testemunhas da
realidade nova que nasce da oferta da salvação e da vivência das
bem-aventuranças. Neles tem de estar presente o Reino.
***
A
primeira leitura (Is 58,7-10) especifica
as condições para ser luz: é uma luz que ilumina o Mundo, não quem pratica
ritos estéreis e vazios, mas quem se compromete com a justiça, com a paz, com a
partilha, com a fraternidade. A religião não se fundamenta na relação platónica
com Deus, mas no compromisso concreto que leva o homem a ser um sinal vivo do
amor de Deus no meio dos irmãos.
Os
capítulos 56 a 66 do Livro de Isaías são preenchidos por um conjunto heterodoxo
de textos atribuíveis a uma pluralidade de autores, sob o nome genérico de Tritoisaías,
da época pós-exílica, provavelmente dos últimos decénios do século VI ou dos
primeiros anos do século V a.C. Os repatriados da Babilónia chegaram cheios de
entusiasmo, mas, em breve, ficaram desiludidos. A cidade está destruída, o
domínio persa recorda ao povo que não é livre nem tem nas próprias mãos a chave
do futuro; e, acima de tudo, as promessas de reconstrução e de libertação
parecem ter-se desvanecido e a intervenção definitiva de Deus tarda em chegar.
Os
estudiosos apontam a forte tensão entre dois grupos que procuram impor-se em
Jerusalém: o sacerdócio sadoquita (de Sadoc, sacerdote do tempo de Salomão),
que voltou do exílio convicto de que fora perdoado das suas faltas, que está em
boas relações com o império persa, que domina a política, disposto a fazer
valer os seus direitos e privilégios e que define as coordenadas do culto
oficial; e o partido levítico, que se manteve em Jerusalém durante o exílio,
que dominou o culto nessa época e que tem uma visão mais democrática e mais
pragmática da fé.
O
capítulo 58 surge como reclamação de Deus contra o Povo em dois temas: a
denúncia do culto estéril, que observa as leis externas, mas que não sai do
coração nem tem correspondência na vida; e o convite a que o Povo respeite a
santidade do sábado.
No
trecho em apreço, a palavra-chave é “jejum” (que aparece sete vezes, no
capítulo). O tema do jejum é fundamental para a vivência judaica da fé e da
relação com Deus.
No
Antigo Testamento, o jejum é um gesto religioso utilizado para traduzir a
humildade ante Deus, a dependência, o abandono, o amor. Implica a renúncia a si
próprio e à autossuficiência, para se voltar para o Senhor, manifestar a
entrega confiada nas mãos de Deus e mostrar que se está disposto a acolher a ação
e o dom do Senhor.
O
texto da 1.ª leitura sugere que o Povo pratica certas formas de piedade sem ter
em mente as exigências. No respeitante ao jejum, o Povo pratica-o de forma
interesseira: pôr Deus do seu lado, agradar-Lhe, provocar Nele a resposta à
medida dos desejos do homem. Esse jejum não traduz, num gesto, a humildade, a
dependência e a entrega do homem face a Deus, mas tenta captar a benevolência
Deus, para que Ele satisfaça os interesses egoístas do homem. E Deus desmascara
a falsidade destas atitudes, que manifestam, no jejum, humildade, dependência e
entrega, mas não as confirmam com a vida, antes provocam “rixas e contendas,
dando murros sem piedade”.
Para
Deus, a atitude de dependência, humildade e entrega tem de se traduzir em vida
consentânea com a vontade de Deus, ou seja, em atitudes concretas de bem-fazer.
Assim, o jejum autêntico traduz-se em partilha com os pobres e na eliminação da
opressão, da injustiça, da violência, dos gestos de ameaça. Na ótica de Deus,
não é o culto formalista, de jactância, de estrondosos gestos e de ritos
solenes, mas vazio quanto aos sentimentos, que faz do Povo de Deus a luz do
mundo. O Povo de Judá será a luz que anuncia Deus no mundo, se testemunhar o
amor e a misericórdia em gestos concretos de partilha, de amor e de paz. A
relação com Deus só é verdadeira, se se traduz em gestos que anunciem e
testemunhem a misericórdia e o amor de Deus entre os homens.
***
A
segunda leitura (1Cor 2,1-5) adverte
que ser luz não é pôr a esperança de salvação em esquemas humanos de sabedoria,
mas identificar-se com Cristo e interiorizar a loucura da cruz, que é dom da
vida. Com efeito, o escândalo de um Deus que morre na cruz mostra que é na
fragilidade e na debilidade que Deus Se manifesta, como se vê com Paulo, homem
frágil e pouco brilhante.
Um
dos grandes problemas da comunidade de Corinto era a propensão para a busca de
uma sabedoria puramente humana, que levava os Coríntios a apostar em Pedro,
Paulo, Cefas, mestres capazes de transportar os discípulos ao encontro da sua
realização, mas que acabavam por os fazer esquecer Jesus Cristo, passando ao
lado da sabedoria da cruz.
Neste
contexto, o apóstolo recorda que a sabedoria humana não salva nem realiza
plenamente o homem e que a realização do homem está em Cristo e na “loucura da
cruz”.
A
explicar que a salvação e a realização plena do homem se manifestam no facto
paradoxal de um Deus condenado à fragilidade, que morre na cruz como um malfeitor,
recorre a dois exemplos: o primeiro é a comunidade de Corinto, em que, apesar
da pobreza, debilidade e fragilidade dos membros da comunidade, Deus os chamou
a serem testemunhas da salvação; o segundo é o caso do próprio apóstolo que ele
exibe com humildade e que vem transcrito no trecho desta dominga.
Paulo
afirma-se na dupla condição de evangelizador e de homem. Como evangelizador, não
fez gala das palavras caras, dos discursos sublimes, das filosofias elaboradas
e coerentes, mas da simplicidade no anúncio do paradoxo de um Deus fraco, que
morreu na cruz rejeitado por todos. Não obstante, em Corinto irrompeu uma
comunidade cristã cheia de força e de fé. Como homem, apresentou-se cônscio da
sua fraqueza, assustado e cheio de temor.
Não
foi, pois, com a sedução de personalidade arrebatadora, com brilhantes
qualidades de orador, com brilho e coerência de exposição que os Coríntios se
sentiram atraídos por Jesus e pelo Evangelho. É que a força de Deus se impõe, para
lá dos limites do homem que faz o anúncio e de quem o escuta. O Espírito de
Deus está presente e age no coração dos crentes, de modo que eles não se fiquem
pelos esquemas da sabedoria humana, mas se deixem tocar pela sabedoria de Deus.
***
Vincava
o padre Tiago Neto, pároco de Bucelas, na festa paroquial da Senhora da Purificação,
que dizer que somos sal da Terra e luz do Mundo significa participar na missão
de Deus, que, não aceitando circunscrever-se a si próprio e ao seu mundo,
pretende estender a sua misericórdia amorosa a todos os povos, a todas as pessoas,
em dinamismo de convivência e de comunhão. É participar na missão do primeiro grande
missionário, Jesus Cristo, que veio testemunhar, habitando entre nós, o rosto misericordioso
do Pai que nos ama a todos de tal modo que nos enviou o seu Filho Unigénito
para nos salvar pela cruz e nos tornar filhos com o Filho e verdadeiros irmãos.
Nas
palavras daquele sacerdote, Jesus se tivesse lido na Sinagoga de Nazaré o passo
de Isaías proclamado nesta dominga, teria dito: “O espírito do Senhor está
sobre mim, para repartir o pão com o faminto, dar pousada aos pobres sem
abrigo, levar roupa ao que não tem que vestir e nunca voltar as costas ao
semelhante.” Parece estranha esta assunção messiânica, mas o Papa Francisco tem
mostrado ao Mundo gestos desta dimensão, gestos em que há, graças a Deus, muita
gente e muito empenhada, neste dealbar do seculo XXI.
2023.02.05 – Louro de Carvalho
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