Faleceu, vítima de insuficiência respiratória, com 106 anos de idade, no passado dia
31 de janeiro, no Hospital Samaritano, do Rio de Janeiro, Brasil, Cleonice Seroa da Mota Berardinelli, Decana da Academia Brasileira de Letras (ABL),
ocupando ali a oitava cadeira, para a qual foi eleita, a 16 de dezembro de
2009, após o falecimento de Evaristo Moraes Filho, e, desde 27 de novembro de 1975, sócia
correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, na Classe de Letras.
Logo
no dia 1 de fevereiro, em nota publicada na página oficial da Presidência da
República, o Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa,
manifestou pesar pela morte de Cleonice Berardinelli, vincando o seu lugar “destacadíssimo”
entre os estudiosos brasileiros da Literatura Portuguesa. “De todos os
lusitanistas, que tanto contribuem para manter viva a cultura portuguesa no
mundo, os brasileiros merecem menção especial, dada a nossa história antiga e a
nossa língua comum. E, de entre os estudiosos brasileiros da Literatura Portuguesa,
Cleonice Berardinelli tinha um lugar destacadíssimo.”
Era
considerada uma das maiores especialistas do Mundo em Literatura Portuguesa,
sobretudo nas obras de Fernando Pessoa (de cuja obra era uma das maiores conhecedoras),
de Luís de Camões e de Gil Vicente.
Foi
professora, durante mais de 50 anos, em instituições como a Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), bem como em outras universidades, no Brasil e não só,
incluindo na Universidade de Lisboa, entre 1987 e 1989.
Nasceu, no Rio de Janeiro, a 28 de agosto de 1916. Como o pai,
oficial do exército, era obrigado a mudar-se com frequência, estudou e
trabalhou entre o Rio de Janeiro e São Paulo. No Instituto Nacional de Música,
no Rio de Janeiro, fez todos os cursos teóricos e diplomou-se sob a orientação
do maestro Oscar Lorenzo Fernández, seu professor de piano. Em São Paulo,
concluiu o curso do ensino secundário e fez, na Universidade de São Paulo, o
curso de Letras Neolatinas, onde foi assistente de Fidelino de Figueiredo. No
Rio de Janeiro, conheceu o professor da mesma disciplina na Universidade do
Brasil, Thiers Martins Moreira, que lhe fez o mesmo convite e a ajudou a
definir o seu caminho.
Licenciou-se
em Letras Neolatinas, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo (1938), doutorou-se em Letras Clássicas e Vernáculas, pela
Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1959) e tornou-se livre-docente
de Literatura Portuguesa, por concurso, pela Faculdade Nacional de Filosofia
(1959), defendendo a tese Poesia e
poética de Fernando Pessoa, a primeira feita no Brasil sobre o escritor
poliédrico.
Foi pesquisadora 1-C do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, consultora ad hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), consultora ad hoc
da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro e membro do júri do Prémio Camões.
Marcelo
Rebelo de Sousa sublinha o facto de Cleonice Berardinelli ter sido professora em universidades brasileiras, americanas e
portuguesas, dedicando-se aos estudos camonianos e a diversos trabalhos sobre Fernando
Pessoa (ensaios, antologias, edições críticas).
Entre
as principais obras de Cleonice Berardinelli encontram-se: Estudos Camonianos, de 1973 (edição original: Rio de Janeiro, MEC – Departamento de Assuntos
Culturais,
com prefácio de Maximiano de Carvalho e Silva), revista e ampliada em 2000 (Rio de Janeiro, Nova Fronteira); Antologia do Teatro de
Gil Vicente, de 1971 (Grifo Edições, Universidade do Texas); Fernando Pessoa,
Obras em Prosa, de 1975
(Quíron, Brasília: Instituto Nacional do Livro); Sonetos de Camões, de 1980 (Barbosa & Xavier
Editores, Braga); Obras em prosa: Fernando Pessoa, de 1986 (Organização,
introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro, Nova Aguilar); A passagem das
horas de Álvaro Campos, de 1988 (edição crítica de
Cleonice Berardinelli, com Nota prévia de Ivo Castro. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda);
Poemas de Álvaro Campos, de 1990 (edição crítica de
Cleonice Berardinelli: Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda); Fernando
Pessoa: outra vez te revejo..., de 2004 (Rio de Janeiro, Lacerda); e Gil Vicente: Autos, de 2012 (Rio de Janeiro, Editora
Casa da Palavra).
Entre
as muitas distinções que recebeu, contam-se: Comendadora da Ordem do Infante D.
Henrique, de Portugal, em 21 de setembro de 1966; Comendadora da Ordem Militar de Santiago da
Espada, de Portugal, em 26 de novembro de 1987; Grã-Cruz da Militar de Santiago da Espada, de
Portugal, em
21 de julho de 2006; Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal, em 8 de junho de 2016.
E, em
2014, aos 98 anos, recebeu o “Prémio Faz Diferença”, na categoria Prosa, das mãos do discípulo Zuenir Ventura.
Um
dos elementos do Centro Nacional de Cultura rasga-lhe indesmentíveis elogios e enaltece
os seus méritos académicos, o que também faz o Instituto Camões. Desses textos
respigam-se as linhas que justificam a homenagem que lhe prestam os amantes e
paladinos da cultura e das letras.
Ocupante
da oitava cadeira da ABL e integrante da atual mais longeva da organização, foi
homenageada no cinema no documentário O
Vento Lá Fora, onde apareceu com Maria Bethânia a ler Pessoa a uma plateia
de convidados, e em Cleo, onde
recitou poemas de cor.
Com longa carreira docente, foi livre-docente de Literatura
Portuguesa na Faculdade Nacional de Filosofia, além de professora emérita da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica,
do Rio de Janeiro, e docente na Universidade Católica de Petrópolis, no
Instituto Rio Branco e, como professora convidada, nas universidades da
Califórnia e de Lisboa.
O jornal O Globo republicou
crónica do escritor Zuenir Ventura, de 2015, em homenagem ao ano do centenário
da “divina Cleo”. Venerada pelos seus discípulos, era conhecida na turma do
curso de Letras Neolatinas, da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, como “a
divina Cleo”.
Dizem que era a musa e a paixão platónica e inconfessável dos
estudantes. A voz cristalina e segura de quem, na juventude, interpretara no
palco peças do quinhentista Gil Vicente, o seu charme e a sua capacidade de
seduzir a plateia demonstravam como a inteligência pode ser alegre, e a
erudição, agradável. Graças à insigne mestra, algumas centenas de alunos descobriram
Fernando Pessoa e passaram a entender Os
Lusíadas, de Luís de Camões.
Ninguém
poderia ficar indiferente a Cleonice Berardineli. Foi Fidelino de Figueiredo
que, ao fundar a verdadeira escola do estudo da Literatura Portuguesa em S. Paulo,
catapultou Cleonice Berardinelli para a ribalta. É, aliás, fundamental a carta
de 1958 que endereçou à sua discípula com elementos curiosos para o conhecimento
de Fernando Pessoa. Dizia Fidelino: “Fomos condiscípulos no 1.º ano da faculdade,
que então se chamava Curso Superior de Letras.”
Fidelino
chegara da África do Sul, alto, magro, narigudo, um pouco tartamudo e mantendo
sempre uma expressão sorridente, a lembrar o rir japonês. Caminhava de
esguelha, como afligido por escoliose espinal. Em breve desapareceu, talvez por
não obter a revalidação dos estudos que trazia, apesar da simpatia com que
atraía os estudantes.
Depois,
houve um encontro junto da igreja da Madalena, em que Fidelino e Cleonice falaram
animadamente, tendo Fidelino louvado um texto de Fernando Pessoa sobre o
espírito provinciano.
Na
referida carta de 1958, Fidelino confirmava as fundamentais qualidades de
Cleonice, sua dileta discípula, dando-lhe conselhos avisados sobre a defesa e
publicação da tese. Poesia e Poética de
Fernando Pessoa (1959) é, de facto, um texto muito importante –
exemplificação perfeita dos métodos da estilística moderna, constituindo
indispensável instrumento para a compreensão da obra do poeta, principalmente
se for articulada com o movimento poético imediatamente anterior. E, se
Fidelino de Figueiredo foi o mestre essencial da mestra, não se pode esquecer o
afeto que Dona Cleo dedicava ao rigor de Pierre Hourcade (lamentando não ter
podido falar com ele sobre Fernando Pessoa) e à fantasia, quase louca, de
Giuseppe Ungaretti.
Para
Cleonice, não há conflito entre as literaturas portuguesa e brasileira. Têm em
comum a mesma língua. As pequenas diferenças não fazem com que haja dissensão.
Quando veio lecionar na Faculdade de Letras de da Universidade de Lisboa, a
convite de Maria de Lourdes Belchior e de Maria Vitalina Leal de Matos,
exprimiu o maior contentamento, evocando as lições que recebera na sua
Universidade, sob a batuta de Fidelino de Figueiredo – através das quais se
apaixonou por Gil Vicente, por Luís de Camões, por Almeida Garrett, por
Alexandre Herculano, por Eça de Queiroz e por Machado de Assis. Depois, viria o
misterioso Pessoa e uma relação especial com o engenheiro Álvaro de Campos, bem
como com o padre António Vieira, figura complexa, mistura de lucidez e de imaginação
prodigiosamente criadora. A referência a Mestre Gil ficou sempre muito evidente
em Dona Cleo, que não esqueceu as representações que fez do Auto da Alma, do Auto de Mofina Mendes e do Auto
da Lusitânia, com Manuel Bandeira, na primeira fila, a aplaudir. E as
intuições lapidares da professora trazem à baila Cesário Verde, entre Fradique Mendes
e Mário de Sá-Carneiro, uma espécie de ponte para o século XX, em que Fradique
Mendes é muito mais do que uma criação ficcional, a simbolizar os seus
criadores (Antero Quental e Eça de Queirós) e a anunciar Orpheu e um novo tempo. Com efeito, Alberto Caeiro, o Guardador de Rebanhos, foi um fiel
leitor de Cesário Verde.
Em
suma, a grande preocupação de Cleonice mantém-se viva, sendo indispensável que sejam
mais conhecidas e estudadas as literaturas da língua portuguesa, num diálogo íntimo
e fecundo. Como afirmava a “Dona Cleo”, para o Brasil, a Literatura Portuguesa
deve fazer parte das matérias básicas, “porque é a literatura mãe, a primeira a
exprimir-se em língua portuguesa, a que constitui o passado da Literatura
Brasileira, a que preenche todo o espaço medieval anterior à nossa experiência,
mas também porque é o elemento primordial de uma cultura viva, dentro da qual
tomamos as nossas origens e que não pode ser excluída da nossa formação
histórica.”
***
Não
podemos eclipsar os génios das belas letras, nem os monstros sagrados da
crítica literária!
2023.02.03 – Louro de Carvalho
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