Há cada vez mais casamentos com menores, em Portugal,
desde o fim da pandemia. No primeiro semestre deste ano, registaram-se 101
casamentos de menores.
De acordo com dados do Ministério da Justiça, desde 2017, houve, em
Portugal, 840 casamentos em que, pelo menos, uma das pessoas envolvidas era menor.
A mesma entidade revelou que, em 2019, houve cinco condenações por casamento
forçado, mas não precisou se houve mais condenações nos anos seguintes. Já a Procuradoria-Geral
da República (PGR) referiu que, entre 2015 e o 1.º semestre de 2023, foram
abertos 28 inquéritos por casamento forçado, que podem não envolver menores, pois
o casamento forçado pode ocorrer com adultos.
A pandemia levou à redução drástica do número de casamentos e, também, ao dos
com menores, mas com o fim das restrições e com a retoma económica, os números
voltaram a crescer.
Alexandra Silva, da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres,
disse ao Jornal de Notícias (JN) que “deverá haver uma percentagem
mais elevada que não oficializa os matrimónios”, pelo que não constam nos números
do Registo Civil, continuando os menores casados (unidos de facto ou casados
segundo algumas tradições culturais) a viver com os pais, e vincou que “um
casamento infantil é sempre um casamento forçado”. Por isso, esta é uma das
especialistas que defendem que seja mudada a lei que permite que um menor case
a partir dos 16 anos, se tiver autorização dos pais ou autorização do tribunal
(ou da conservatória).
Antes da pandemia o número dos casamentos com, pelo menos, um menor no
casal estava em subida, mas caiu para 79, em 2020. Não obstante, em 2021, já
tinham disparado para 130; e, no ano seguinte, para 158. Os números oficiais
dão conta de 101 matrimónios, em que, pelo menos, uma das pessoas tinha menos
de 18 anos, entre janeiro e junho deste ano.
De acordo com os dados do Eurostat, 167 jovens de 16 e 17 anos casaram em
Portugal. Destes, 123 são raparigas e 44 são rapazes.
Beatriz Imperatori, diretora executiva da Unicef (Fundo das Nações
Unidas para a Infância) Portugal sublinha: “A UNICEF entende, assim como o Comité dos Direitos da
Criança, que Portugal deve rever a idade mínima para o casamento para os 18
anos.” Na verdade, o crescimento do número de casamentos de menores “constitui
uma preocupação e um alerta”.
Já o vice-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género
(CIG) admite que a revisão da idade “está em cima da mesa”. E fonte do gabinete
da Secretária de Estado da Igualdade e Migrações garante que será lançado
inquérito para ouvir as entidades que,
eventualmente, intervenham em “matéria de casamentos infantis, precoces e
forçados”, com o objetivo de colmatar a falta de informação pormenorizada sobre
o fenómeno.
São
cada vez mais numerosas as vozes que pressionam o Estado português a aumentar a
idade mínima para casamento, dos 16 para os 18 anos. E esta é a principal
reivindicação de várias entidades de proteção de crianças, de meninas e de
mulheres, que são as principais vítimas, segundo os estudos. O grupo de
trabalho criado pelo governo para prevenir e combater os casamentos precoces
devia ter apresentado um livro branco até ao fim de 2021, prazo que foi
prorrogado. No entanto, os especialistas consideram que a permissão do
casamento aos 16 anos, sob condições, constitui uma “grave violação dos
direitos humanos” e frisam que o Comité dos Direitos da Criança pediu ao país a alteração da lei.
Com efeito, o artigo 1601.º do Código Civil (CC) considera impedimento
dirimente absoluto a idade inferior a 16 anos. Porém, este impedimento é
facilmente ultrapassável pela autorização dos pais ou do tutor e, no caso de
essa autorização ser negada, pode ser suprida pelo conservador do registo civil,
nos termos do artigo 1612.º. E o artigo 1604.º considera essa falta de
autorização ou do seu suprimento como simples impedimento impediente do
casamento. Quer dizer que, se o casamento se fizer, o nubente menor fica apenas
sem beneficiar dos efeitos da emancipação, nomeadamente da capacidade de gerir
os seus bens (ver artigo 1649.º do CC).
Assim, para casar antes dos 18 anos, há cobertura legal, o que não acontece
para votar, para conduzir automóvel, para beber álcool. Já para consentir uma
relação sexual, basta a idade de 14 anos, o que parece ninguém contestar. Resta
saber se o hipotético nubente não tem maturidade para decidir sobre o vínculo
matrimonial, mas a tem para a relação sexual, que devia ser a sério, a não ser
que se legitime a cultura do hedonismo ou a do descarte.
Beatriz Imperatori admite que os casamentos de menores e as uniões forçadas
de crianças e jovens são situações distintas, mas ambas condenáveis.
O casamento forçado (ou união similar) é um crime público, recorde-se.
Como
aponta Alexandra Silva, no último exame da Convenção sobre a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de junho de 2022, Portugal foi
interpelado sobre os casamentos a partir dos 16 anos, sem que o Estado tenha
dado uma explicação cabal.
Alexandra
Alves Luís, cofundadora da associação Mulheres sem Fronteiras, adverte que o
casamento infantil “é uma realidade considerada parte da cultura e da tradição
de certos povos minoritários”, pelo que entende que é preciso ter em conta a
possibilidade de haver meninas e mulheres estrangeiras em Portugal não
abrangidas, de facto, por alguns direitos constitucionais.
***
As crianças e
mulheres são os grupos mais sujeitos à violência e à exploração
sexual porque são, ainda, em muitas partes do Mundo, os grupos mais
vulneráveis. Os casamentos forçados são uma forma de violência praticada, na
maior parte das situações, contra raparigas, retirando-lhes, de forma
dramática, a liberdade, os direitos, o acesso à educação e saúde, em especial à
saúde sexual e reprodutiva, e originando, invariavelmente, abusos e
violência.
A Organização
das Nações Unidas (ONU) distingue, nesta matéria, alguns conceitos. Casamento forçado
é a união entre duas pessoas, em que, pelo menos, uma delas não deu o
consentimento pleno e livre para participar nessa união. É considerado pela
mesma organização como uma violação dos Direitos Humanos, pois vai contra os
direitos básicos de autonomia e liberdade. Casamento precoce ou infantil é
aquele em que a pessoa que se está a casar não tem 18 anos. E casamento
arranjado é aquele em que a união é acordada pelas famílias (habitualmente, os
pais) podendo haver aceitação ou não da parte de quem se casa.
Em todo o Mundo,
uma em cada três mulheres casou antes dos 15 anos de idade. Mais de 700
milhões de mulheres em todo o mundo casaram antes de atingir a maioridade.
As
consequências físicas e psicológicas são variadas e graves, nomeadamente porque
as meninas que casam enquanto crianças não se encontram com o desenvolvimento
físico e emocional concluído. Deste modo, estão mais vulneráveis a violência e a
abuso por parte dos maridos.
Por outro
lado, são conhecidas complicações mais frequentes durante as gravidezes e
partos destas meninas e raparigas, o que, muitas vezes, leva à morte. Também,
em termos de acesso à educação e ao trabalho por parte destas meninas e
raparigas, o casamento precoce promove bastantes constrangimentos, pois é
desvalorizado o papel social da mulher, em relação ao do homem, e o facto de
casarem e engravidarem cedo impede-as de continuarem ou de iniciarem as
atividades educacionais ou laborais.
Existem argumentos
culturais e conexos com tradições que servem para justificar os casamentos
forçados, arranjados e precoces, sendo, muitas vezes, vistos pelas próprias
meninas como algo que é preciso manter e de que se orgulham. Em algumas
comunidades, as meninas que têm casamento arranjado, desde cedo, são mais bem
vistas e aceites pela comunidade; e, ao invés, as meninas para quem não surge
tal oportunidade são marginalizadas e discriminadas.
Para algumas
raparigas de países em desenvolvimento, a possibilidade de casarem com homens
mais velhos que residem na Europa (aqui também há casamentos destes) constitui oportunidade
para obter melhores condições de vida, conseguindo, não raro, continuar os
estudos e trabalhar, sendo que muitas, quando chegam à Europa, conseguem também
escapar do casamento e viver uma vida melhor, comparativamente ao país de
origem.
Apesar destas
razões, há casos em que a prática destes casamentos – forçados, arranjados e
precoces – tem consequências extremas, levando a atos de violência e até à
morte.
Renata
Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), considera
que as consequências, de casamento forçado, num menor, são similares às do
abuso sexual, porquanto “interferem na vida da pessoa que sofreu o abuso, na forma
como se sente, física e emocionalmente”, e no modo “como se relaciona consigo e
com os outros à sua volta”. Trata-se de efeitos que “podem ocorrer a curto, a
médio ou a longo prazo”. Além disso, “a esta prática está associado o afastamento
da vítima da sua família, o que pode ter um impacto negativo no seu bem-estar
emocional”.
***
Para obviar a
tais fenómenos (casamento forçado, precoce ou arranjado) atuam instituições
como as comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ), a Associação de
Apoio à Vítima (APAV) e a Associação para o Planeamento da Família (APF). E,
por indicação do grupo de trabalho do governo, como resposta às vítimas de práticas
nefastas, que atingem, sobretudo, o sexo feminino, foi criado um centro de
acolhimento de emergência, que está a funcionar, há dois anos (segundo informação
do vice-presidente da CIG), e que recebe “mulheres e meninas vítimas de
violência de género, onde se incluem os casamentos infantis, precoces e
forçados, e a mutilação genital feminina [MGF]”.
E está disponível,
em https://eeca.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/FEM_roadmap_POR.pdf, o Roteiro
da União Europeia (UE) para o casamento forçado/precoce, que permite aos
profissionais da 1.ª linha, orientação que lhes permita prestar
assistência na proteção e apoio de (potenciais) vítimas de casamento
forçado/precoce. Os profissionais da 1.ª linha, tais como os que trabalham em
centros de acolhimento a imigrantes, as organizações não-governamentais (ONG)
que trabalham com migrantes, as casas de abrigo para mulheres vítimas de
violência ou de tráfico de seres humanos (TSH), os serviços de saúde, os membros
das CPCJ, os magistrados, as escolas e outras organizações educativas, podem
utilizar este Roteiro para reforçar a resposta multissetorial ao casamento
forçado/precoce.
A APF, nos
projetos que desenvolve ou em que participa – de âmbito
regional, nacional ou internacional, dedicados ao estudo e compreensão dos
fenómenos, à intervenção direta e ao trabalho no terreno ou ao estímulo ao
debate público e à resolução das problemáticas que afetam a sociedade –, são
sempre orientados para a promoção e salvaguarda dos direitos sexuais e reprodutivos
dos cidadãos e das cidadãs. E sobressai como parceira no referido
Roteiro da UE.
Segundo a vice-presidente
da OPP, “os psicólogos podem contribuir ao nível da intervenção direta junto
das vítimas e das famílias”, “com intervenção psicológica especializada”, ao
nível da “prevenção junto das comunidades”, desconstruindo mitos e apoiando “a identificação
de sinais de alerta”, e ao nível da intervenção junto dos agressores, “com
programas específicos, [com] a definição de políticas públicas e [com a] investigação.
Enfim, não
podemos contemporizar com certas tradições, costumes e usos que ferem a
dignidade da pessoa humana. Porém, além da boa legislação, que urge, será
conveniente uma aproximação das pessoas e uma abordagem pedagógica destas
questões. Por outro lado, não podem os tribunais, a jusante, anular, casuisticamente,
em nome do respeito por tradições e culturas, o que se define, a montante, por
via legislativa. Casos como MGF e casamento forçado e infantil são intoleráveis.
2023.08.28 – Louro de Carvalho
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