A 23 de agosto o jornal digital “7Margens”,
citando o jornal “Industan Times”, dava conta de que, no dia 22, quatro jovens padres católicos da
arquieparquia (equivalente a arquidiocese) de Ernakulam-Angamaly, no estado de
Kerala, na parte Sul da Índia, foram transferidos para outro local, por terem
recusado as decisões do Sínodo quanto ao modo de celebrar a liturgia da missa,
passando por cima do ultimato que lhes fora dado, na última semana, pelo
enviado do Papa, o arcebispo Cyril Vasil, SJ.
Os quatro sacerdotes exerciam funções ministeriais no
Seminário Menor do Sagrado Coração de Jesus, em Kochi. E, tendo-lhes sido
perguntado se iriam seguir o ritual da missa aprovado pelo Sínodo da Igreja
Siro-Malabar e homologado pelo Papa Francisco, responderam negativamente, pelo
que tiveram de abandonar o trabalho que exerciam, sem que lhes tivessem sido,
entretanto, atribuídas novas funções.
A disputa
gravita, aparentemente, em torno da posição, durante a missa, do presbítero que
a ela preside. A Igreja Siro-Malabar é sui juris, podendo
tomar decisões que são, depois, submetidas a Roma. No caso vertente, uma
deliberação, tomada pelo Sínodo desta Igreja, em 2021, procedeu a uma conciliação
entre a forma tradicional de celebrar, com o presidente virado a Oriente, e a
solução saída do Concílio Vaticano II, em que preside voltado para o povo (versus populum).
Assim, a Liturgia da Palavra e a parte final passaram a ser
conduzidas de frente para o povo e, do ofertório à ação de graças, com o
presidente de costas. Porém, a esmagadora maioria dos padres da arquieparquia
prefere celebrar toda a Eucaristia de frente para a assembleia.
A decisão do Sínodo, com a respetiva homologação papal, não
foi bem recebida, especialmente na principal circunscrição da Igreja
Siro-Malabar, a arquieparquia de Ernakulam-Angamaly, que é também a maior de
todas, calculando-se que tenha mais de meio milhão de fiéis. Das suas 349
paróquias, não chegou à dezena o número das que seguiram a decisão do Sínodo e
as resistências, nos últimos anos, levaram a cenas em que a polícia chegou a
ser chamada.
O enviado
papal, conhecedor das especificidades da Igreja Siro-Malabar, terá atuado com
recurso, sobretudo, a argumentos de autoridade e de unidade, como reconhecem
vários observadores credenciados da região, referidos numa reportagem do site católico “The Pillar.
O arcebispo Cyril Vasil começou a ser contestado, mal foi
conhecida a notícia da sua nomeação, em julho último. Temia-se que, por ter
estudado em Roma com o atual administrador apostólico de Ernakulam-Angamaly,
nomeado pelo Papa, em 2022, com a tarefa de aplicar a reforma sinodal,
indiciasse a posição do próprio enviado papal.
No dia 17 de agosto, o enviado de Roma escreveu uma dura
carta aos padres, dando-lhes um prazo até ao dia 20, domingo, para adotarem a
decisão do Sínodo.
E, na sequência de várias reuniões que
tinha tido nos dias anteriores, o enviado do Papa interpelou os presbíteros na
última: “Quereis continuar a ser sacerdotes da Igreja Católica, a Igreja
conduzida pelo divino mestre Jesus Cristo que confiou a São Pedro e aos seus
sucessores o direito de desatar e atar, de encorajar os irmãos na fé, de
ensinar e de governar?”
E advertiu, anunciando a inevitabilidade de sanções
canónicas, se continuasse a desautorização do Sínodo e do Papa: “Nunca poderá
haver uma bênção de Deus para a desobediência à Sua vontade, por muito que se
tente encobrir com frases piedosas e até com orações. Nunca haverá a bênção de
Deus para o protesto ilegal e [para] a rebelião”
Porém, no último domingo, dia 20, centenas de manifestantes
bloquearam a celebração da Santa Qurbana (Celebração da Eucaristia) na Catedral-Basílica
de Santa Maria, em Ernakulam, e os protestos por toda a arquieparquia
reiteraram a desobediência. Chegaram a ser queimadas, junto à catedral, cópias
da carta de Cyril Vasil.
Tudo indica que o arcebispo Cyril Vasil regressa a Roma, levando
consigo um impasse, que até poderá ter-se agravado. Efetivamente, a “UCA News”,
instituição católica asiática de difusão de notícias, não hesita em considerar
que a situação ficou pior do que estava.
As penalizações
aplicadas aos padres incidiram sobre responsáveis de um seminário e, a
manterem-se as coisas no ponto em que estão, dificilmente demoverão os
responsáveis das paróquias. Ao invés, informações de última hora, veiculadas
pelo jornal “The New Indian Express”, relatam que alguns padres
contestatários foram recebidos na sede da Igreja Siro-Malabar para um diálogo
com Cyril Vasil, mas se recusaram a abandonar a sala, no final da reunião,
declarando-se em greve de fome. Acabariam por ser retirados pela polícia,
chamada por funcionários da instituição, alegando que os padres estavam a perturbar
o normal funcionamento daquele espaço.
Quando foi
difundida a notícia desta ação policial, um outro grupo invadiu o seminário
menor e quis forçar o reitor a demitir-se, considerando-o “pau mandado” do
administrador apostólico, o qual, por sua vez, estaria a interferir no campo
judicial, dado que haviam interposto uma ação a questionar a autoridade do
enviado papal, que o tribunal estaria a analisar.
***
A Arquieparquia Maior de Ernakulam – Angamaly
(em Latim, Archieparchia Ernakulamensis –
Angamaliensis) é uma circunscrição da Igreja
Católica, cabeça da Igreja sui iuris
Católica Siro-Malabar, situada em Ernakulam,
no Estado de Kerala, na Costa do Malabar, na Índia. É fruto da elevação
do vicariato apostólico de Ernakulam
a arquieparquia. O seu atual arquieparca é o cardeal-arcebispo
Maior George Alencherry. E a sua catedral é a Catedral-Basílica de Santa Maria.
Possui 349 paróquias servidas por 790 padres, abrangendo uma
população de 4 826 000 habitantes, com 13,1% da dessa população
jurisdicionada batizada (633 000 católicos).
Em 1896,
o Papa Leão XIII, pela bula “Quæ
Rei Sacræ”, instituiu o vicariato apostólico de Ernakulam. A 21 de dezembro de
1923, foi criada a hierarquia Siro-Malabar, pela bula “Romani Pontifices”, do Papa Pio XI, e Ernakulam foi elevada
ao estatuto de arquieparquia e
tornou-se o centro da Igreja sui
iuris Católica Siro-Malabar.
Pela bula “Qui en Beati Petri Cathedræ”, de 29
de julho de 1956, do Papa Pio XII, a arquieparquia de Ernakulam foi
bifurcada e erigida a eparquia de Kothamangalam. E as eparquias de
Thrissur, Thalassery e Kothamangalam tornaram-se sufragâneas de
Ernakulam.
O grande
marco histórico para a arquieparquia (equivalente a arquidiocese) e para os Cristãos
de São Tomé foi o 16 de dezembro de 1992, quando o Papa São João
Paulo II declarou a arquieparquia de Ernakulam como uma Arquieparquia
Maior sui iuris, reconhecendo,
assim, a autonomia especial da Igreja Siro-Malabar. Dessa forma, também
foi declarada a primazia desta circunscrição eclesiástica, agora
renomeada para Arquieparquia Maior
de Ernakulam-Angamaly. Por isso, o seu arquieparca maior ou arcebispo
maior passou a ser o chefe da Igreja Católica Siro-Malabar, que é,
atualmente, uma Igreja oriental sui
iuris, em comunhão com a Santa Sé e com o Papa – pelo que lhe estão
vinculadas a Arquieparquia de Changanacherry, a Arquieparquia de Kottayam, a Arquieparquia
de Thalassery e a Arquidiocese de Thrissur.
Porém, a 6 de
março de 2012, foi criada a Eparquia de Faridabad, diretamente sujeita à Santa
Sé.
A Igreja Católica Siro-Malabar é a
segunda maior Igreja Católica Oriental no Mundo, com uma população total de
cerca de 3,8 milhões de católicos (dos quais 2,9 milhões vivem na Índia).
Por isso, é a maior comunidade dos seguidores de São Tomé na
Índia. A sua sede é a Arquidiocese Maior de Ernakulam-Angamaly, situada no Estado de Kerala, na Costa do Malabar, na Índia.
A sua união
com a Igreja Católica Apostólica Romana remonta ao ano de 1599. Adquiriu
o estatuto de Igreja sui iuris
em 1992, quando a Ernakulam-Angamaly se tornou numa Arquidiocese Maior. O
seu rito litúrgico é de tradição siríaca oriental ou caldaica e
usa como línguas litúrgicas o Siríaco e o Malaiala. É, atualmente,
governada por George Alencherry, Arcebispo Maior de Ernakulam-Angamaly, juntamente com o seu Sínodo.
***
O caso em referência não faz, atualmente, qualquer sentido.
Nem a posição tradicional da oração ad
Orientem é a originária. Parece que, no período paleocristão (até ao final
do século V) não havia essa orientação das basílicas. Ao invés, como sucede
ainda hoje, com a Basílica de São Pedro, em Roma, a entrada nos templos era,
então, feita pelo lado do nascente, tal como no Templo de Jerusalém. E, quando
a liturgia era celebrada em casas particulares, estas tinham a orientação inicial,
sem a preocupação da orientação geográfica. Aliás, rezar ad Orientem deveria entender-se como rezar a Cristo, o Sol Nascente
da Igreja, o Deus que nos visitou lá do Alto.
Compreende-se que o Papa, no quadro da autonomia do Sínodo,
tenha homologado aquela deliberação de compromisso. Contudo, não deveria ter o
Sínodo tomado uma decisão à revelia do sensus
ecclesiae; e, tomada tal decisão, o enviado papal, ao ver que a decisão não
colhia consenso, deveria ter motivado o Sínodo a permitir que o presidente da celebração
rezasse versus populum. Não se trata
de questão estrita da fé católica. E, além do mais, uma das formas de presença
de Cristo na Igreja é da assembleia convocada e reunida: assim, padre a rezar voltado
para o povo reza voltado para Cristo.
Conheci um sacerdote que pretendia celebrar, numa capela, a
missa versus populum. Mas, como os habitantes
do lugar não aceitavam que alterasse a disposição do altar, nem quiseram
colocar uma mesa a servir de altar, ao sacerdote não cedeu e passou a celebrar
a missa colocado numa das faces laterais do altar, nem voltado para o povo, nem
de costas para ele: solução de meio-termo O pessoal dizia de outro modo, que me
abstenho de especificar.
Outro sacerdote foi confrontado com um devoto que lhe pediu
uma celebração de missa à antiga. E, como o sacerdote lhe perguntasse como era
a missa à antiga, atirou: “É em latim e de rabo para a gente!” E são estes os
caminhos da fé de muita gente!
***
No caso vertente da Igreja Católica Siro-Malabar, o argumento
da unidade falhou: esta constrói-se no respeito pela diversidade e sem
pretender a uniformidade ou a unicidade. E o argumento da autoridade, a utilizar
parcimoniosamente, não deu resultado, por a norma parecer mais fruto de um
capricho do Sínodo e não ter raízes na doutrina. Por isso, como o “7Margens” aponta,
“Roma avançou
na Índia pela via da autoridade e… falhou”.
2023.08.25 – Louro de
Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário