A Jornada Mundial da Juventude de
2023 (JMJ 2023) chegou ao fim, o que exige um balanço e a avaliação das
expectativas para o futuro, sendo prematuro avaliar já o retorno económico.
A organização encarou as críticas,
quer a nível da validade da iniciativa, quer a nível das despesas excessivas,
no quadro do direito à diferença de opinião, até porque, no segundo aspeto,
reduziu despesas, embora com diminuição da volumetria de algumas estruturas
importantes.
Ter havido despesas elevadas
deve-se, em parte, à multiplicidade de lugares de concentração de peregrinos (o
que implicou logísticas diversas) e ao ganho utilitário de novos espaços e
estruturas para algumas autarquias. O montante de dinheiros públicos investido
justifica-se, em parte, pelo que fica dos espaços e das estruturas para futuro.
Por outro lado, em Portugal, a Igreja não tem a capacidade de arcar com os
encargos referentes a infraestruturas de peso, em Lisboa e arredores, ao invés
do que sucede, por exemplo no Santuário de Fátima. E, no atinente a objeções
conexas com o caráter aconfessional do Estado, é de reter a opinião de Bacelar
Gouveia, constitucionalista e investigador de Direito e Religião
da Universidade Nova e da Universidade Autónoma de Lisboa, expressa em artigo
de 3 de agosto, no Diário de Notícias (DN).
***
Diz Bacelar
Gouveia que, em vez de discorrer sobre a ligação (com luzes e sombras) de
Portugal à Igreja Católica – desde a fundação da nacionalidade, passando
pela reconquista cristã e pela gesta dos Descobrimentos – deve equacionar-se a
questão à luz da liberdade religiosa, que tardou em ser reconhecida, como
direito fundamental, que permite ao homem mergulhar nas profundezas do ser,
para desenvolver a fé, sem coação, e prestar culto a Deus, segundo os critérios
da laicidade.
Segundo o
constitucionalista, é neste “quadro que devem ser observadas as relações do
Estado com a pluralidade das religiões, na ótica do modelo que se tem designado
por ‘laicidade’, implicando que o Estado não adote qualquer religião”, nem se
pronuncie “sobre questões do foro interno das organizações religiosas”. Porém,
esta laicidade da Idade Contemporânea, em contraste com o hierocratismo
medieval e com o jurisdicionalismo moderno, não é construída sem sobressaltos. Num
passado não muito longínquo, assinalaram-se duras manifestações laicistas dos
regimes liberais, das repúblicas positivistas e dos Estados marxistas-leninistas,
que tentaram aniquilar a expressão religiosa. No presente, registam-se episódios
de “laicidade negativa”, que cortam a possibilidade de cooperação com as
atividades religiosas, pretendendo remetê-las ao seu espaço privado. São visões
algo contrárias à afirmação da liberdade religiosa, que os textos nacionais e
internacionais de direitos fundamentais ou de direitos humanos proclamam, o que
supõe “uma laicidade cooperativa”.
Ora, nisso, vai
bem o Estado português com a Lei da Liberdade Religiosa (LBR), bom exemplo para
muitos países, com o princípio da cooperação como corolário de uma laicidade
positiva. Porém, o futuro confirmará outro tipo de laicismo subtil, numa
diferente modelação da relação entre o Estado e a Religião, a teofobia, que
diaboliza a religião baseada na generalização, exercício que acusa erros e
crimes, sempre lamentáveis, que justificam toda a punição e reparação
possíveis, levando ao vilipêndio do fenómeno religioso, ridicularizando-o,
caricaturando-o ou apoucando-o na sua função moral e social.
Assim, faltando
a coragem de proibir a religião, pretende-se moldá-la ao sabor de uma ideologia
de Estado, sob a capa de neutralidade. No entanto, enfatizam-se os abusos que acontecem
na Igreja Católica, eclipsando os ocorrentes noutros meios, como o educacional,
o desportivo, o militar e o policial; critica-se o segredo inquebrantável do
confessionário, quando também o são o de Estado e o profissional; e gera
escândalo o financiamento público que “só nas atividades religiosas sucede” –
quando também o há, e não pouco, aliás superior, no desporto ou na arte, em
cujo domínio abundam os ajustes diretos.
A neutralidade do Estado, com a separação em relação às Igrejas (um dado
bom) tem respaldo no Concílio Vaticano II, do lado da autonomia das realidades
terrestres. Contudo, a separação é comparável a pontes paralelas sobre o rio:
separadas, não se encontram; mas, a céu aberto, passam nelas pessoas que se
avistam, se saúdam e se entendem. Mas, atravessadas as pontes, têm hipótese de
se encontrar. Por isso, o Estado neutro não tem de ignorar a sociedade como ela
é ou de deixar de cooperar com ela. Aliás, a Constituição, que impõe a
aconfessionalidade do ensino público e proíbe o Estado de programar a educação
e a cultura segundo qualquer diretriz ideológica (O que não vem sendo observado!),
estabelece o princípio da não discriminação e de igual tratamento dos cidadãos.
É a LBR que preconiza o tratamento igual por princípio, mas concretizado
segundo a representatividade.
***
No respeitante à validade da JMJ,
é óbvio que já bastaria que tivesse funcionado com ponto de encontro ecuménico
e se posicionasse como oportunidade mobilizadora dos jovens para o futuro,
pondo a nu os problemas que encaram e tornando-os cônscios dos verdadeiros
desafios. Porém, como não se espera que tenha havido um terramoto eclesial ou
social, aguarda-se, na esperança ativa, que o evento haja impulsionado a
mudança paulatina, nas sem recuos.
Talvez seja interessante atentar
no modo como o Papa, em torno de quem se juntou a juventude mundial, aprecia a
JMJ.
No passeio marítimo de Algés, a 6
de agosto, Francisco mostrou-se grato pela quantidade e pela qualidade de
trabalho desenvolvido, nestes “dias inesquecíveis”, pelos voluntários, em grupo, “de
forma escondida, sem alarde, nem protagonismo”, para que todos se encontrassem
a cantar juntos: “Jesus vive e não nos deixa sós: não mais deixaremos de amar”.
E “mais do que trabalho”, este “foi um serviço”, serviço semelhante ao prestado
pela Virgem Maria, que “Se levantou e partiu apressadamente”, para servir
Isabel, sentindo urgência de “partilhar
a alegria no serviço”.
Também
Zaqueu, para ver Jesus, subiu a uma árvore e desceu apressadamente. Algo o
tocara dentro: queria encontrar Jesus e acolhê-Lo em casa. As mulheres e os
discípulos, na Páscoa, correram do túmulo para o Cenáculo, a fim de anunciarem
que Cristo ressuscitou. “Quem ama não fica de braços cruzados”, mas serve,
corre para servir, “corre empenhado no serviço aos outros. E o Papa, que só
esteve nos “nos momentos finais”, viu como os voluntários davam “resposta a
inúmeras necessidades, às vezes, com o cansaço impresso no rosto e, outras, um
pouco esmagados com a urgência do momento, mas sempre de olhos luminosos pela
alegria do serviço.
Tornaram possível
esta JMJ, fizeram grandes coisas, sem se negarem a gestos pequeninos. “E isto
cria amizade”. Correram tanto, mas não com a corrida frenética e sem meta que,
às vezes, nos carateriza. Antes, fizeram “uma corrida que leva a encontrar os
outros, para os servir em nome de Jesus. Vieram para servir, não para serem
servidos.”
Depois, o
Papa serviu de amplificador aos testemunhos de três jovens voluntários que
falaram dum “encontro especial com Jesus”, o “motor de todos os outros, aquele
que faz mesmo caminhar, que faz a vida avançar”. A renovação diária do encontro
pessoal com Jesus “é o coração da vida cristã”. Todos experimentámos que “um
pequeno ‘sim’ a Jesus pode mudar a vida”, mas “o ‘sim’ dito aos outros faz-nos bem”,
quando se visa “o serviço”. Ora, “no momento do cansaço, os voluntários
retomaram a coragem, “dizendo ‘sim’, prontos a servir os outros”.
Caminhando,
trabalhando e rezando com os outros, compreendemos que não nos podemos “deixar
agrilhoar pela desordem, pelo ‘leito desarrumado’ do passado, nem viver com o
coração atormentado por sensações de pessoa inacabada”. E “esta Jornada é útil,
ajuda muito a pôr ordem na vida”, “graças a Jesus, que está aqui no meio de nós
e Se nos revela”. Para colocar a vida em ordem, “é preciso é dilatar o coração”, sem medo. Na JMJ,
houve “um encontro com Jesus e um encontro com os outros”. O encontro com Jesus
é momento pessoal, único, que só até certo ponto se pode descrever e contar, “mas
sempre tem lugar, graças a um caminho feito com os outros, feito por meio da
intercessão de outros, no serviço aos outros”.
E, a
terminar, Francisco deixou a imagem de Nazaré, “onde se podem admirar ondas que
chegam aos 30 metros de altura tornando-se uma atração mundial, especialmente
para os surfistas que as cavalgam”. E verificou: “Também vós enfrentastes uma
verdadeira onda, não de água, mas de jovens, jovens como vós, que afluíram a
esta cidade”. Porém, “com a ajuda de Deus, com tanta generosidade e
apoiando-vos mutuamente, conseguistes cavalgar esta grande onda”. E exortou: “Continuai
a cavalgar as ondas do amor, as ondas da caridade, sede surfistas do amor!” E fez votos, por
que o serviço prestado nesta JMJ “seja a primeira de tantas ondas de bem”, pois
“cada vez sereis levados mais alto, mais perto de Deus”, o que vos permitirá “ver
duma perspetiva melhor o vosso caminho”.
***
No Vaticano,
no dia 9, na Audiência Geral, o Papa considerou que a JMJ de Lisboa, vinda
depois da pandemia, “foi sentida por todos como dom de Deus”, que repôs em
movimento os corações e os passos de “muitos jovens de todas as partes do mundo
– muitos! – para se encontrarem e encontrar Jesus”. Frisou que a pandemia “incidiu
gravemente nos comportamentos sociais: muitas vezes o isolamento degenerou em
fechamento, e os jovens foram particularmente atingidos”. Com a JMJ, “Deus deu
um ‘empurrão’ na direção oposta”, marcando “novo início da grande peregrinação
dos jovens pelos continentes, em nome de Jesus Cristo”, e não tendo sido,
casualmente, que se fez na cidade do oceano, cidade-símbolo das grandes
explorações marítimas.
Assim, o
Evangelho propôs aos jovens o modelo de Maria, que, no momento mais crítico
para Si, visita Isabel: “Levantou-se e
partiu apressadamente” (Lc 1,39). É a Senhora Apressada, que
nunca nos faz esperar, pois Ela é a mãe de todos. Assim, no terceiro milénio, “guia
a peregrinação dos jovens no seguimento de Jesus”, “como fez há um século, em
Portugal, em Fátima, quando se dirigiu a três crianças, confiando-lhes uma
mensagem de fé e de esperança para a Igreja e para o Mundo”. Por isso,
Francisco voltou a Fátima e, com alguns doentes, rezou para que Deus cure o
mundo das doenças da alma: soberba, mentira, inimizade, violência. E renovou a consagração,
da Europa, do Mundo ao Imaculado Coração de Maria. Rezou pela paz, pois há demasiadas
guerras em todas as partes do Mundo.
Os jovens de
todo o mundo foram a Lisboa, muito numerosos e com grande entusiasmo. O Papa
encontrou-se com eles, inclusive em pequenos grupos, e alguns com muitos
problemas. Os jovens ucranianos traziam histórias dolorosas. Não eram férias,
nem turismo, e muito menos um evento espiritual por si só. A JMJ é “um encontro
com Cristo vivo através da Igreja”. Os jovens “vão encontrar Cristo”. É
verdade, onde há jovens há alegria e um pouco de todas as coisas.
Referiu que a
visita a Portugal, por ocasião da JMJ, beneficiou do clima festivo daquela onda
de jovens. E pensa que a Igreja de Lisboa, em troca do grande esforço que fez
para a organizar e acolher, “receberá novas energias para prosseguir o novo
caminho, para lançar de novo as redes com paixão apostólica”. Os jovens, em
Portugal, “são uma presença vital” e, após esta transfusão recebida das Igrejas
de todo o Mundo, tornar-se-ão ainda mais. E jovens, no regresso, passaram por
Roma.
Frisou que, enquanto,
na Ucrânia e noutros lugares do Mundo, há combates e enquanto, em certos salões
escondidos, se planeia a guerra, a JMJ mostrou a todos que outro Mundo é
possível: “um Mundo de irmãos e irmãs, onde as bandeiras de todos os povos
flutuam juntas, lado a lado, sem ódio, sem medo, sem fechamentos, sem armas”. Será
ouvida pelos “grandes da terra” esta mensagem clara? É a interrogação do
Pontífice.
E referiu que
se encontrou com os voluntários, que foram 25 mil.
***
No voo de
regresso ao Vaticano, tinha respondido à pergunta do porta-voz da Santa Sé, Matteo
Bruni, sobre como vivera a JMJ, dizendo que esta, a quarta a que presidiu, foi
a mais numerosa e a mais bem preparada. Os dados concretos, reais apontavam
para mais de um milhão e meio. E os jovens são uma surpresa, “procuram olhar
para a frente... são o futuro”. A questão é “saber acompanhá-los e fazer com
que não se separem das raízes”. Por isso, o Papa insiste no diálogo entre
idosos e jovens, avós e netos.
Depois, “os
jovens são religiosos; procuram uma fé não invasiva, uma fé não artificial, nem
legalista, mas um encontro com Jesus Cristo”. Objeta-se que “os jovens nem
sempre vivem segundo a moral”. E Francisco pergunta quem “não praticou um erro
moral na própria vida”, mas vincou a grandeza da misericórdia de Deus. Para ele,
a JMJ foi belíssima. Disse-o, enaltecendo a mística e o compromisso dos
voluntários com quem se encontrou.
***
É claro que
não sai da JMJ uma espetacular revolução na Igreja e no Mundo. Porém, a semente
está lançada para frutificar no futuro. Importa que todos e cada um a saibam e
queiram proteger, para que germine e alastre. Porém, muitos preferem ater-se a
pormenores, por exemplo onde e como foram guardadas as partículas sagradas para
a comunhão, não reparando como as tendas da guarda da reserva eucarística eram
veladas por adoradores.
É certo que a
Igreja do bem-fazer, da humildade, dos pobres, das pontes terá a tentação do
poder e do mando, corre o risco de se enfeudar à riqueza e de ser
instrumentalizada pelos oportunistas e muitos dos seus membros continuarão
tentados ao pecado. É a realidade da parábola do trigo e do joio, que devem
crescer juntos, não cabendo à Igreja de todos excluir ninguém. E só Deus
avaliará os frutos espirituais que resultarão do evento, a curto ou a médio prazo.
A JMJ é uma
das pérolas que não deve ser subestimada, muito menos jogada fora!
2023.08.11 – Louro de Carvalho
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