A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que pretendia,
em tempos, salvar o Banco Montepio (ideia de Santana Lopes e de Edmundo
Martinho, que, ao tempo, critiquei) – para o que atraiu outras Misericórdias e
Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) –, agora com menos
dinheiro, maus investimentos e efeitos da covid-19, precisa de reestruturação,
para acautelar a sustentabilidade financeira, “hoje e no futuro”, vinca a provedora
Ana Jorge, que promoveu cortes nos patrocínios ao desporto.
A ex-ministra da Saúde e ex-presidente da Cruz Vermelha
Portuguesa (CVP), que chegou à SCML, em maio, para suceder a Edmundo Martinho,
revela que a atual gestão se deparou “com problemas de estabilidade financeira
e de sustentabilidade”, o que impõe uma reorganização, “sem pôr em causa nenhum
dos objetivos”.
O descontentamento das federações de desporto motivou uma
reunião entre o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo
Correia, e Ana Jorge, de que resultou a manutenção, em 2023, dos patrocínios da
SCML, mas sendo assegurados, em 2024, pela SCML e pelo governo, pois a atuação
da SCML vai muito além do desporto e estão em causa seis milhões de euros por
ano disponibilizados pela instituição para as diversas iniciativas. Contudo,
importa continuar com alguns destes apoios, sobretudo os que reforçam o papel
da SCML, por exemplo à “grande à Orquestra Geração”, que envolve crianças e
jovens vulneráveis.
Os valores destes apoios e subsídios vêm sendo reduzidos, mas
faltam regras para a atribuição das verbas. Com efeito, a SCML tem apoios em
diferentes áreas, pelo que tem de renegociar os valores, porque a situação
financeira não é confortável, e estabelecer critérios de atribuição, sem
olvidar a transparência. Estão em causa, também, eventos culturais, como
festivais de música e de cinema, feiras e parcerias com meios de comunicação
social.
Em maré de grandes desafios económico-sociais, pretende-se
criar um modelo de parceria mais equilibrado e criterioso no apoio ao desporto,
nomeadamente através das federações nacionais, do Comité Olímpico de Portugal
(COP) e do Comité Paralímpico de Portugal (CPP), parceiros inestimáveis na
missão da SMCL. Porém, é de realçar que a revisão do modelo de parceria e do apoio
financeiro entre os Jogos Santa Casa e as federações desportivas nacionais, o
COP e o CPP não põe em causa o projeto olímpico de 2024.
Recentemente, surgiram dúvidas sobre a gestão da SCML e sobre
decisões empresariais lesivas da sua saúde financeira. Com menos receitas dos
jogos sociais e com mais despesa no trabalho social, as contas estão em
equilíbrio delicado. Na gestão anterior, terá havido incompatibilidades que
deterioraram o ambiente e reduziram o número de administradores, com o vice-provedor
João Pedro Correia, ex-deputado do Partido Socialista (PS), a renunciar, em
fins de 2021, em colisão com Edmundo Martinho, que saiu sem acabar o mandato. Assim,
em requerimento de audição à ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança
Social, Ana Mendes Godinho, de abril, sobre a gestão e as contas da SCML, o Partido
Social Democrata (PSD) apontou, na instituição, uma “espiral de desintegração”.
E, a pedido do governo, decorre a avaliação aprofundada às contas da SCML de
2021 e de 2022 (não publicadas) e a auditoria externa (esta a cargo da empresa
BDO) à Santa Casa Global, criada, em 2020, para gerir as lotarias e os jogos de
apostas no mercado externo (internacionalização).
Na altura foi atribuído um capital social de cerca de 5
milhões de euros a essa sociedade, detida a 100% pela SCML, num projeto em que esta
investiu 20 milhões de euros, para internacionalizar os jogos, nomeadamente em
África e na América do Sul, ainda sem retorno.
A SCML tem sido usada para salvar empresas em dificuldades
financeiras graves. Ficou com a maioria do capital da sociedade gestora do hospital
da CVP e entrou no Montepio, numa posição, entretanto, reduzida a simbólica,
depois de a discussão ter surgido na praça pública. Mas a quebra das receitas
dos jogos sociais, das quais fica com 26,52%, pôs a instituição no vermelho,
realidade que destoa dos últimos anos até 2019, de resultados positivos.
Surgiram também dúvidas sobre a contratação de pessoal. Segundo
consta, a dada altura, a SCML era a porta giratória de novos cargos de topo,
com altos vencimentos, quando carreiras e salários dos trabalhadores permaneciam
congelados, o que gerou descontentamento e greves. Aliás, o Ministério Público (MP)
está a investigar as contratações externas de funcionários. Para Ana Jorge, a
estagnação dos vencimentos dos cerca de 6500 trabalhadores é preocupante”, pois,
tal como as pessoas ajudadas pela SCML, “também eles sofrem com os efeitos da
crise global, e é preciso ter capacidade para atender a estas necessidades
internas”. E, sem finanças equilibradas, não é possível acudir fora e dentro de
casa, como diz a provedora.
O destino do Hospital da Cruz Vermelha ainda está em aberto. “Temos
vindo a trabalhar com a Parpública [gestora de participações do Estado, a outra
acionista] no sentido de se aumentar a atividade, o que tem sido conseguido”,
indica a provedora, adiantando que estão a analisar os benefícios de alienar ou
não a sociedade gestora. Não olvidando que é um hospital articulado com o Serviço
Nacional de Saúde (SNS), fará todo o sentido manter esta resposta no setor
social, decisão que depende também da tutela. “Estamos a fazer uma análise
económica e financeira para aferirmos os efeitos do aumento da atividade e se
será suficiente para garantir a sobrevivência do hospital”, refere Ana Jorge.
Ainda
no âmbito da saúde, estão em equação os outros dois hospitais grandes da SCML,
o Centro de Reabilitação de Alcoitão e o Hospital de Santana, importantes pela
diferenciação e qualidade, mas que precisam de regras adequadas de
funcionamento e de financiamento, para serem sustentáveis, caso contrário fazem
falta à estrutura nacional de saúde portuguesa.
O
Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), que ainda não
aprovou as contas (em avaliação), não comenta os cortes nos patrocínios, nem a
gestão da SCML, limitando-se vincar a missão fulcral da instituição de aumentar
a sua capacidade e de melhorar as respostas sociais, garantindo maior
eficiência e melhorando a sua sustentabilidade financeira.
***
As contas da SCML motivaram a ida, em abril, de Ana Mendes
Godinho, ao Parlamento, a pedido do PSD, para esclarecer a razão por que não
foram homologados os resultados de 2021. Porém, a ministra garantiu que os
órgãos deliberativos da SCML estão em plenas funções, recusando a acusação de
vários deputados de que a SCML estava em gestão corrente. E disse que regressara
a terreno positivo, em 2022, com o lucro de €10,9 milhões, indicando que, em
2020 e em 2021, os prejuízos somaram €52 milhões e €20,1 milhões, respetivamente,
pois a pandemia fez-se sentir nas contas, porque teve grande impacto no aumento
das despesas, fruto dos casos a que acudiu. Além disso, as contas refletem a
redução da receita dos jogos sociais.
O regresso aos lucros decorreu, apesar da redução das
receitas de 17,4%, face a 2019, tendo os gastos subido 10,7%, face ao ano anterior
à pandemia. A covid-19 foi um fator de pressão sobre as contas, pois fez subir
os custos com as respostas sociais, e caíram, de forma abrupta, as receitas dos
jogos. Da despesa, a governante frisou que era fruto do assumir de novas
responsabilidades pela SCML, com impacto nos gastos com pessoal, que subiram
14,4%, face a 2019.
Em 2019, antes da pandemia, as receitas correntes da SCML
ascenderam a €268,4 milhões, um acréscimo de 5,8%, face ao exercício anterior,
devido, sobretudo, ao aumento em €11 milhões da distribuição de resultados dos jogos
sociais (84% da receita corrente). O Relatório de Gestão e Contas de 2019
revela que a SCML registou um resultado líquido positivo no valor de €37,5
milhões, o segundo melhor dos últimos anos, só ultrapassado pelo ano de 2017.
Porém, a pandemia não explica tudo e aponta-se o dedo a
investimentos e projetos da SCML que ainda não dão retorno e consomem elevado
volume de recursos (como o hospital da CVP, cuja sociedade de gestão é
controlada pela SCML, desde fins de 2020) ou que demoraram muito tempo a ser
desenvolvidos (como a criação da unidade de cuidados continuados no antigo
Hospital Militar da Estrela ou a reconversão da fábrica da Nestlé, em Monsanto,
em unidade residencial para idosos). E a Santa Casa Global, braço da internacionalização
da SCML, está em auditoria.
Também corre uma investigação do MP, como se disse, a
contratações externas de funcionários na SCML, após queixa de que estaria a
entrar pessoal para o índice remuneratório mais alto, quando permanecem
congelados salários e progressões na carreira. E, no atinente à demora da
homologação das contas, Ana Mendes Godinho disse que pedira uma análise
minuciosa das várias rubricas, face à “disparidade de resultados entre exercícios”
e à necessidade de acautelar “a sustentabilidade financeira” futura da
instituição.
O modelo de financiamento da SCML foi, aliás, questionado por
alguns deputados, que mencionaram o problema da adição de pessoas mais
vulneráveis, como os idosos, a jogos como a raspadinha. Porém, Ana Mendes
Godinho frisou que, em oito anos, a SCML disponibilizou €1400 milhões para
diversas respostas de ação social, nomeadamente no Programa de Alargamento dos
Equipamentos Sociais, no Fundo de Socorro Social, em subsídios às famílias e na
rede de cuidados continuados. A grande rubrica de despesa da SCML é a ação
social que consumiu €141,23 milhões, em 2020, seguindo-se-lhe a área da saúde,
com a despesa corrente de €60 milhões. E o MTSSS aguarda as conclusões da
avaliação independente à Santa Casa Global e da reavaliação dos Relatórios de
Gestão e Contas da SCML de 2021 e de 2022, nada dizendo sobre mudanças no
modelo de gestão ou sobre necessidade de diversificação de receitas.
***
Enfim, nem tudo bate com o ser e com a missão da SCML, pessoa
coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa, cuja tutela
cabe ao membro do governo que detém a pasta da Segurança Social, que participa
na definição das orientações gerais de gestão, fiscaliza a atividade e faz a
coordenação com os organismos do Estado.
Tem por fim, segundo os estatutos, “a realização da melhoria
do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos, abrangendo as
prestações de ação social, saúde, educação e ensino, cultura e promoção da
qualidade de vida, de acordo com a tradição cristã e obras de misericórdia do
seu compromisso originário e da sua secular atuação em prol da comunidade [...]”.
E desenvolve as atividades de serviço ou interesse público solicitadas pelo
Estado ou por outras entidades públicas.
Além do terço dos resultados líquidos dos jogos sociais, são
receitas da SCML: as heranças, legados e doações ou donativos; as
comparticipações e contribuições dos utentes; os valores resultantes da venda
de bens, produtos e da prestação de serviços; os rendimentos provenientes da
gestão do seu património; o resultado de empréstimos; o valor dos prémios
prescritos; as dotações, subsídios ou comparticipações atribuídas pelo Estado
ou por outras entidades públicas; e quaisquer outras receitas legalmente
permitidas.
A adjudicação das receitas dos jogos sociais rege-se pelo
Decreto-Lei n.º 23/2018, de 10 de abril, que procedeu à 3.ª alteração ao
Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de março, que regula a distribuição dos resultados
líquidos dos jogos sociais, como lotarias, Totobola, Totoloto, Euromilhões ou
raspadinha, explorados pela SCML. Tais receitas destinam-se à “multiplicidade
de entidades beneficiárias, afetas a fins de natureza social”, com a seguinte
distribuição: Ministério da Administração Interna, 3,6% das receitas líquidas
dos jogos sociais; Estado, 2,18%; Presidência do Conselho de Ministros, 3,88%;
MTSSS, 32,98%; Ministério da Saúde, 15,7%; Ministério da Educação, 10,3%;
governos regionais da Madeira e dos Açores, 2,47% e 2,38%, respetivamente; e
SCML, “para desenvolvimento de projetos integrados nos seus fins estatutários”,
26,52%.
Uma instituição como a SCML tem de focar-se na ação social (que
inclui a cultura e o desporto para os mais carenciados), pelo que não pode
dar-se ao luxo de salvar bancos ou instituições financeiras e devia parar com a
raspadinha, que aliena, miseravelmente, pessoas sem recursos.
2023.08.26 –
Louro de Carvalho
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