Diz-se que, a 24 de fevereiro de 2022, se iniciou o primeiro conflito
militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Com efeito, embora
o conflito remonte, pelo menos a 2014, com a anexação da Crimeia, só desta
feita, se ouviam sirenes e eram dadas ordens de recolha domiciliária, à medida
que os Russos iam ganhando terreno. Nos meses subsequentes, ocorreram massacres
e alegados crimes de guerra em cidades que, em Portugal, a maioria nunca ouvira
falar, como Bucha, Kherson, Mikolayiv ou Mariupol. E, apesar de muitos Ucranianos
terem recusado dar o país à Rússia, ficando na Ucrânia em pleno conflito, nas
semanas seguintes, iniciou-se uma das maiores vagas de
refugiados na História recente da Europa.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) revela
que, desde o início, mais de cinco milhões de Ucranianos optaram por ficar no
país, mas fugiram para outras cidades onde o conflito ainda era pouco visível.
Porém, 6,2 milhões deixaram a Ucrânia, procurando refúgio em
países vizinhos, como a Polónia, a Moldávia ou a Roménia. Outros foram mais
longe, na Europa, tendo chegado até Portugal mais de 50
mil.
Os que chegaram ao nosso país receberam apoio institucional para a
documentação e, em Lisboa, a Associação de Ucranianos em Portugal (AUP), “uma ilha ucraniana” no país, desde de 2003, abriu-lhes as
portas, segundo Yuriy Kondra (voluntário ali desde 2007, após ter imigrado para
Portugal, em 1999). Deu assistência no preenchimento de documentação e de formulários
e no apoio a nível da habitação, pela criação de um programa com o Instituto da
Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU). “Desde o dia 25 de fevereiro [de
2022] que estamos a prestar apoio à Ucrânia. Logo no início de março, começaram
a chegar os primeiros refugiados”, diz Kondra.
Segundo o balanço do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), até junho
de 2023, chegaram a Portugal, de carro e de avião, mais de 56528
refugiados ucranianos e estrangeiros que residiam na Ucrânia, valor
que tem vindo a diminuir nos últimos meses. No início de maio, totalizavam 58191,
mas o SEF adiantou que cerca de dois mil Ucranianos
tinham pedido o cancelamento dos pedidos de proteção temporária. Além
dos pedidos de cancelamentos dos títulos, há alguns que não renovam as
proteções temporárias, que tinham a duração de um ano e caducaram.
Além dos títulos de proteção temporária, à chegada de Portugal, o SEF
atribuiu, automaticamente, números de identificação fiscal (NIF), números de identificação da Segurança Social (NISS) e números de
utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Foi tudo muito mais
facilitado para este tipo de refugiados. Seria bom que isto fosse também
transferido para todos os outros migrantes que aqui chegam”, defende o
coordenador do SEF.
A maior dos refugiados da Ucrânia é constituída por mulheres (33949), muitas acompanhadas dos filhos menores, das
mães, das sogras, ou de outras familiares, pois a Lei Marcial obriga os homens
ucranianos entre os 18 e os 60 anos a ficarem no país. O número de refugiados ucranianos masculinos situou-se, até junho,
nos 22579.
O perfil destes imigrantes diferencia-se da maioria dos que provêm de países
do Sul da Ásia ou do Norte de África. “Trabalhamos com outras associações que
apoiam migrantes, em rede, e existe a noção de que este
não é o típico migrante que chega a Portugal”, diz Afonso Nogueira,
coordenador da AUP, aludindo ao estatuto destes refugiados.
***
Sobre o fenómeno concreto das refugiadas ucranianas, com destaque para
mulheres academicamente qualificadas, o jornal digital Eco, publicou, a 19 de agosto, uma reportagem de Jéssica Sousa e
Hugo Amaral, de que se respigam os dados mais significativos.
Um dos casos apontados é o de uma engenheira de
construção civil, de 43 anos, que saiu de Odessa, em março de 2022, quando já sacos
de areia protegiam a estátua de bronze, no centro da Avenida Prymorskyi, dos
bombardeamentos russos que vinham do Mar Negro. Há vários anos, em exercício na
Ucrânia, sabe que a estadia em Portugal é temporária, ainda que a filha de 13
anos e o filho de sete estejam inscritos na escola, onde aprendem Português. A
falta de oportunidades de emprego na área não a motivam a estabilizar-se por cá.
Uma jurista, de 47 anos, deixou, também em março de
2022, a região de Butcha, em Kiev – quando foram denunciadas mais de 400 mortes
de civis, encontrados em valas comuns. Trouxe consigo a sua mãe de 75 anos de
idade e o filho de oito. A jurista, com décadas de experiência na área, quer regressar
à Ucrânia, mas sabe que não pode ficar à espera de que a guerra acabe. Por
isso, inscreveu-se, juntamente com 22 outras Ucranianas, num curso de culinária
do Mezze Escola. A sua expectativa é que, no final do curso, consiga arranjar
emprego, já que, na sua área de formação, sem o domínio do Português,
dificilmente terá oportunidade.
Uma arquiteta paisagista, de 45 anos, chegou a
Portugal, a partir de Kiev, em abril, com a filha de 11 anos, que começou a
estudar numa escola portuguesa, onde aprende Português. Para trás ficou o
marido, oficial do exército que está na linha da frente do combate. A
expectativa é voltar, pois tem “uma vida estabilizada lá”. Começou por
frequentar os cursos de Português, mas, quando percebeu que o conflito militar não
tinha fim à vista, teve de aceitar a possibilidade de ficar por cá. E, quando
surge a oportunidade, faz trabalhos temporários para uma empresa de catering.
Uma jornalista (e apresentadora de televisão), de 32
anos, conduziu automóvel até Portugal, durante cinco dias. Quando chegou, trabalhava à
distância como editora de uma revista online
e como assessora do Parlamento ucraniano, mas demitiu-se, por ser
“psicologicamente difícil”, e
passou a trabalhar no departamento fiscal de um banco. Não quer que tenham pena
de si.
Uma engenheira química, de 43 anos, quer regressar à Ucrânia, mas não
enquanto lá estiverem os Russos. Enviou currículo para várias empresas da área,
mas ainda espera resposta.
Uma economista, de 31 anos, começara a trabalhar na banca, mas passou a uma
empresa comercial e de logística. Em Portugal, trabalhar no Novo Banco.
E uma especialista de marketing, de 31 anos, saiu de Lugansk, onde sempre viveu, e veio sozinha
para Portugal de avião a partir de Moscovo. Começou,
pouco tempo após a sua chegada, a trabalhar na restauração e, semanas mais
tarde, no serviço de apoio ao cliente do Airbnb. Mas, percebendo que podia ser
mais útil, candidatou-se a uma vaga de marketing e, por sorte, preencheu a
posição que exige que saiba falar, pelo menos, Inglês – língua que começou a
praticar cedo, graças à insistência da avó.
Todas estas refugiadas qualificadas querem regressar, mas trabalhar
enquanto permanecem em Portugal. Por isso, aprendem a língua e espreitam as oportunidades
que rareiam.
***
Grande parte das refugiadas que chegaram a Portugal são de classe média e
com formação numa área especializada – medicina, engenharia, gestão,
economia ou profissões de áreas científicas, como investigação e engenharia
química, profissões de que Portugal podia beneficiar –, mas as
dificuldades nas transferências de competências e equivalências, a falta de
oportunidades especializadas e as barreiras linguísticas impedem que sejam
aproveitadas. Não são migrantes por motivos económicos. O objetivo é manter
as profissões que tinham na Ucrânia ou regressar. Têm mais
expectativas e o trauma leva-as a menor abertura “a começar por baixo”.
Nesse sentido, a AUP organizou dezenas feiras de emprego e
parcerias institucionais com empresas, ao longo de 2022, para
ajudar estas instituições a preencher vagas mais especializadas e para apoiar
estas refugiadas a ter rendimentos numa altura em que regressar ao país da
origem, em segurança, ainda não é possível. Também o Instituto de Emprego e Formação
Profissional (IEFP) procura integrar estas refugiadas através de oportunidades
de emprego. No âmbito da Operação Refugiados Ucrânia, com a criação de um
mecanismo de acolhimento e de integração social e profissional destes cidadãos,
em conjunto com as empresas que manifestaram interesse e disponibilidade para sua
a contratação. Em abril de 2022, as vagas de emprego em Portugal
ascendiam às 22 mil, um pouco por todo o país, com um salário médio de 884 euros por mês.
Entre março e julho de 2022, houve uma avalanche de ofertas,
mas a falta de “disponibilidade emocional” impedia que estes refugiados
estivessem “preparados para trabalhar”. Só a partir de setembro é que as
famílias ucranianas deslocadas em Portugal se viam obrigadas a pensar em constituir
uma vida longe de casa.
Até agosto de 2023, só 10500 dos 56 mil cidadãos ucranianos
refugiados residentes em território nacional tinham celebrado contratos de
trabalho em Portugal, através do IEFP, encontrando-se atualmente
ativas 3278 ofertas de emprego no turismo e na restauração, nas tecnologias
de informação, na construção civil, no setor social e nos transportes. A
maioria (634) está localizada em Lisboa, Portalegre (446), Faro (350) e Coimbra
(267).
Fora da rede IEFP, também se procurou agilizar a integração destes
refugiados. Uma das empresas que trabalhou, de forma autónoma, nessa integração
foi a Sonae, que já efetivou dezenas de contratos de trabalho com refugiados
ucranianos, no âmbito do programa Sonae for Ukraine (que tenta
responder às necessidades dos que fugiram da guerra e se refugiaram em
Portugal, sendo uma das áreas prioritárias o emprego), quer pela criação de uma
plataforma bilingue, em Ucraniano e em Inglês, de forma a permitir candidaturas
simplificadas, quer por ações de recrutamento realizadas um pouco por todo o
país.
Em parceria com a Speak Social, a AUP desenvolveu cursos de Português, na
ótica da educação não formal, cujas aulas contam, semanalmente, com dezenas de
cidadãos ucranianos para melhorar o domínio da língua lusa. Porém, a falta de certificação do curso impede que seja validada a
capacidade linguística destes refugiados. O IEFP ainda não efetivou,
com a AUP, a organização de cursos específicos para Ucranianos.
Da parte do IEFP, mais de 7300 refugiados ucranianos
participaram em cursos de Português para estrangeiros, até agosto deste ano,
e a maioria já obteve os certificados do nível mais básico. E mais de 460 refugiados foram também integrados em outras ações de
formação profissional.
Num estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE), publicado em 2016, as conclusões sobre o impacto dos refugiados numa
economia resumem-se no título: “Os refugiados não são um fardo, são uma
oportunidade”.
No documento, é elencada uma lista de benefícios económicos (bem como um
conjunto de recomendações, entre elas, a nível da educação e apuramento de
competências) que os refugiados podem trazer ao país de abrigo, como
trabalhadores, como empreendedores, como empresários, como contribuintes, como
consumidores e como investidores. “Os esforços [dos refugiados] podem ajudar a
criar empregos, aumentar a produtividade e os salários dos trabalhadores
locais, elevar o retorno do capital, estimular o comércio internacional e o
investimento, e impulsionar a inovação, o empreendedorismo e o crescimento”,
vinca o autor do estudo, Philippe Legrain.
***
Não espanta que as refugiadas qualificadas tenham poucas oportunidades aqui,
pois, também os cidadãos portugueses qualificados têm dificuldade em arranjar
emprego compatível com as suas habilitações. O setor privado tem dificuldade em
admiti-los; é um calvário o percurso de admissão nos quadros da administração
pública (a não ser nos gabinetes ministeriais e equivalentes, onde a nomeação é
feita na base da confiança política); e os salários são baixos. Tudo isto leva
a que alguns fiquem em casa, outros emigrem e outros se sujeitem a trabalho
indiferenciado. Entretanto, as empresas não têm competitividade e a administração
pública parece em pré-falência.
Penso que o país está a fazer o que pode pelos refugiados e pelas refugiadas
– qualificados ou não. Porém, a resposta às necessidades é sempre insuficiente.
2023.08.20 – Louro de Carvalho
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