A 26 de julho, o denominado Conselho Nacional para a
Salvaguarda da Pátria (CNSP) tomou o poder no Níger, através de golpe de
Estado, que implicou a deposição do presidente Mohamed Bazoum, mas os objetivos
não estão clarificados, pois a questão da insegurança, invocada no comunicado do
líder golpista, Abdorahamane Tciani, é o cliché dos golpes no Sahel.
O Sahel ou Sael é uma faixa de 500 a 700
quilómetros de largura, em média, e 5 400 quilómetros de extensão, entre o
deserto do Saara, ao Norte, e a savana do Sudão, ao Sul; e entre o Oceano
Atlântico, a Oeste, e ao mar Vermelho, a Leste.
Apesar de o Níger ter tido o seu quinhão de insegurança na
região e de ter sofrido cinco atentados desde que se tornou independente da
França, em 1960, tem vivido em melhores condições do que os vizinhos governados
por juntas, e as reformas políticas vigentes desde 2013 asseguraram alguma
inclusão. Com efeito, nos vizinhos Mali, Burkina Faso e até no Chade, os
militares atribuíram à insegurança a sua presença nos palácios presidenciais.
Apesar disso, a tomada do poder pelos militares não melhorou a segurança em
nenhuma circunstância.
A situação escalou no país que tem o maior território da
região, onde afiliados da Al-Qaeda e do autodenominado Estado Islâmico provocam
cerca de 50% das vítimas globais de terrorismo, em particular no Mali e no
Burkina Faso.
Nos dias 2 e 3 de agosto, o conselho dos 15 membros da Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO/ECOWAS), após haver imposto sanções
económicas ao Níger, reuniu-se na Nigéria, para deliberar medidas futuras e
porfiar a sua intolerância ao golpe, exigindo que os autores devolvam o poder a
Bazoum, no prazo de uma semana, sob ameaça de intervenção militar pelas forças
daquela organização regional. Todavia, os governos burquinabês e maliano
prometeram reagir à pretensão da ECOWAS, defendendo os golpistas do Níger.
O regresso aos golpes não é novidade: uns toleram-nos; outros
não. A ebulição no Sahel não é de hoje. As condições climáticas, políticas,
económicas e demográficas na região são suficientes para serem utilizadas por
quem queira manter o pode. A situação pode levar à guerra, pois Burkina Faso e
o Mali farão tudo o que for necessário para impedir que a ECOWAS reverta a atual liderança do Níger e
a Nigéria pressionará a reposição do poder anterior legítimo. E os próprios
Nigerinos estão divididos.
***
O golpe de Estado no Níger em 2023 – o
quinto golpe militar, desde a independência em 1960, e o primeiro
desde 2010 – ocorreu a 26 de julho, quando a guarda presidencial deteve Bazoum e
o comandante da guarda presidencial, general Abdourahamane Tciani, se
proclamou líder de uma junta militar. A guarda presidencial fechou as fronteiras,
suspendeu as instituições estatais e declarou o toque de recolher.
O país
sofrera, como se disse, quatro golpes militares desde a independência, mas, nesse
intervalo, houve várias tentativas golpistas, como a de 2021, quando
dissidentes militares tentaram tomar o palácio presidencial, dois dias antes da
posse do presidente eleito Mohamed Bazoum, o primeiro presidente
democraticamente eleito do país a assumir o cargo de um antecessor eleito de
forma semelhante. O golpe de 2023 ocorreu, também, na sequência de golpes
recentes em países próximos, como a Guiné-Conacri, o Mali e o Sudão, em 2021, e
dois em Burkina Faso, em janeiro e em setembro de 2022, o que levou a ter a região
como “cinturão golpista”. Terão impulsionado a revolta o aumento do custo de
vida e as perceções de incompetência e de corrupção do governo. O país ocupa,
não raro, o último lugar no índice de desenvolvimento humano (IDH) da Organização
das Nações Unidas (ONU) e sofre ingerências islamistas da Al-Qaeda, do
Estado Islâmico e do Boko Haram, apesar de os seus militares receberem
treino e apoio logístico dos Estados Unidos da América (EUA) e da França,
que detêm bases no país.
Em 2022, o
país tornou-se o centro das operações antijihadistas da França na região
do Sahel após a sua expulsão do Mali e de Burkina Faso,
sendo Bazoum descrito como um dos poucos líderes pró-ocidentais da região. O
Níger tornou-se aliado fundamental para as forças ocidentais, especialmente
francesas e dos EUA. Vários golpes e crescentes sentimentos antifranceses na
região tornaram-no o parceiro de última instância da França. E diz-se que
oficiais treinados pelos EUA treinaram muitos membros da guarda presidencial.
Na manhã do
dia 26, o palácio e os ministérios adjacentes foram bloqueados por veículos
militares e os funcionários do palácio impedidos de aceder aos seus locais de
trabalho. Até 400 apoiantes civis de Bazoum se aproximaram do palácio,
mas foram dispersados pela guarda presidencial com tiros. Em resposta, as
forças armadas do Níger cercaram o palácio presidencial, em apoio a Bazoum. O
exército emitiu um comunicado a dizer que garantiu os principais pontos
estratégicos no país. Todavia, à noite, o coronel-major da Força Aérea
Amadou Abdramane foi ao canal de televisão estatal Télé Sahel afirmar que o presidente
Bazoum havia sido destituído do poder e anunciou a formação do CNSP. Disse que
as forças de defesa e segurança decidiram derrubar o governo, “devido à
deterioração da situação de segurança e má governança”. E anunciou a dissolução
da Constituição, a suspensão das instituições estatais, o fechamento das
fronteiras e o toque de recolher nacional das 22h00 às 05h00, até novo aviso,
alertando contra qualquer intervenção estrangeira.
Na manhã do
dia 27, Bazoum twittou que os Nigerinos
que amam a democracia salvaguardariam os ganhos duramente conquistados ,
indicando a recusa em renunciar. O seu ministro das Relações Exteriores, Hassoumi
Massaoudou, disse ao France 24
que o “poder legal e legítimo” do país permanecia com o presidente e reiterou
que Bazoum estava em boas condições e que o exército não estava todo envolvido. Declarando-se
chefe de Estado interino, convocou todos os democratas a fazerem esta aventura
fracassar. Entretanto, no mesmo dia, a liderança das forças armadas emitiu uma
declaração, assinada pelo chefe do Estado-Maior do Exército, general Abdou
Sidikou Issa, de apoio ao golpe, para “preservar a integridade física” do
presidente e da família e para evitar um confronto mortal que leve um banho de
sangue e afete a segurança da população.
Também no
dia 27, cerca de mil apoiantes da junta fizeram uma manifestação
hasteando bandeiras russas, expressaram apoio ao Grupo
Wagner e apedrejaram o veículo de um político que passava. Denunciaram
a presença francesa e de outras bases estrangeiras. Outros manifestantes reuniram-se
no exterior da sede do PNDS-Tarayya, partido de Bazoum, com imagens
mostrando-os a apedrejar e a incendiar veículos. Em seguida, saquearam e
queimaram o local, forçando a polícia a dispersá-los com gás lacrimogéneo. E
ocorreram manifestações em frente à Assembleia Nacional, o que levou o
Ministério do Interior, à noite, a proibir todas as manifestações com efeito
imediato. E os funcionários públicos foram aconselhados a ficar em casa.
No dia 28, o
general Abdorahamane
Tciani autoproclamou-se presidente
do CNSP, num discurso na Télé
Sahel. Criticou a estratégia de segurança do governo pela suposta
ineficácia e pela falta de colaboração com o Mali e com Burkina Faso, mas não
deu prazo para o retorno ao governo de civis. A sua posição como chefe de
Estado de facto foi, posteriormente, confirmada pelo coronel Abdramane, que
acusou funcionários do governo de conspirarem contra o novo regime, abrigados
em embaixadas estrangeiras.
No dia 29, o CNSP acusou a ECOWAS de um plano
de agressão contra o Níger por meio de uma iminente intervenção militar em
Niamey apoiada por certos países ocidentais. E o Conselho de Paz e Segurança da
União Africana (UA) emitiu um ultimato, afirmando que, se os militares não “retornassem
imediata e incondicionalmente, aos quartéis e não restaurassem a democracia
constitucional, dentro de um prazo máximo de quinze dias”, o bloco seria
obrigado a tomar “medidas necessárias, incluindo medidas punitivas contra os
perpetradores”. No dia 30, a ECOWAS deu à junta um ultimato para que Bazoum fosse reinstalado como
presidente em uma semana. E, a 31, a presidência
do Chade divulgou fotos do presidente Mahamat Déby Itno com o presidente Bazoum,
na sua primeira aparição desde o golpe. E a junta ordenou a suspensão das
exportações de urânio e ouro para a França, acusando o líder interino,
substituto de Bazoum, de autorizar um ataque francês ao palácio presidencial,
para libertar Bazoum.
A 1 de agosto, a junta anunciou a
reabertura das fronteiras. Porém, houve apagões em cidades do Níger, com a
empresa de eletricidade Nigelec a culpar a Nigéria de cortar o
fornecimento.
A ECOWAS
enviou nova delegação ao Níger, para negociar. Abdel-Fatau Musah, comissário
da ECOWAS para Assuntos Políticos, Paz e Segurança, afirmou: “A opção militar é
a última opção na mesa, o último recurso, mas temos de nos preparar para a eventualidade.” Entretanto,
chefes militares dos Estados-membros da ECOWAS reuniram-se em Abuja, na
Nigéria, para discutir a situação no Níger. E uma delegação da junta nigerina,
liderada pelo general Salifou Mody, viajou para Bamaco, capital do Mali, e
para Uagadugu, capital de Burquina Faso, o que originou especulações
sobre se buscava o apoio do Grupo Wagner, presente no Mali.
A 4 de agosto, a junta
anunciou ter retirado o acordo militar do Níger com a França e ordenou a
retirada dos embaixadores do Níger na França, na Nigéria, no Togo e nos EUA.
***
Enfim, há acusações mútuas: o Ocidente africano e europeu –
com uns apontam grupos jihadistas e outros frisam a pretensão russa, através do
Grupo Wagner, com presença em África, sem diminuir a presença à beira da Rússia
e à beira de alguns países limítrofes.
Ana Carina Franco, investigadora no Instituto Português de
Relações Internacionais (IPRI-NOVA), não vê a ECOWAS a intervir no Níger. A especialista
em conflitos e em pós-conflitos reconhece que já antes havia conflito na
região, travados por grupos jihadistas.
Logo após o golpe, o centro da capital, Niamey, foi tomado
por manifestações populares pela libertação do presidente deposto, mas havia
apoiantes da nova situação e bandeiras da Rússia eram penduradas ou agitadas
bem à vista das câmaras dos fotógrafos internacionais.
Na origem do golpe estará o alinhamento de Bazoum com os
parceiros ocidentais. O governo acolheu o contingente francês que saiu do Mali,
e era a partir da base de Niamey que operava a presença militar estrangeira
para toda a região central e ocidental do continente.
Tratar-se-á do ressurgir de um movimento anticolonial de
afirmação regional na área mais francófona de África, contra a política, a presença
e os interesses franceses na região, que vão da presença económica, pela via da
exploração e da importação de urânio, essenciais para as centrais nucleares em
França, e de ouro, passando pela afirmação político-diplomática e pela presença
militar na região? Ora, a revolta social e identitária contra a presença
francesa afeta, por tabela, a aceitação e o apoio das missões da União Europeia
(UE) por estes países, entendidas como extensão da política francesa no Sahel.
Nestes termos, surge, estrategicamente, a Rússia. Com empresas
de segurança privada (por exemplo, o Grupo Wagner), tem ocupado este vazio
político-estratégico. Usa-as, para proteger e para reforçar os seus interesses
e os das emergentes lideranças africanas.
A cimeira África-Rússia, de 27 e 28 de julho, em São Petersburgo,
firmou a influência russa na África. Porém, fracassou em alguns aspetos, desde
logo pela presença de apenas 17 chefes de Estado dos 54 países africanos, pois
a presença da China (mais subtil) é mais facilitada na África.
Assim, não se sabe qual o desfecho do golpe no Níger e dos
acontecimentos no Sahel.
2023.08.06 – Louro
de Carvalho
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