A 2 de agosto, na celebração litúrgica da Hora de Vésperas, no Mosteiro dos
Jerónimos, Francisco pronunciou pertinente homilia dirigida, em especial, aos sacerdotes e diáconos, a consagradas e consagrados, a
seminaristas e a todos os agentes pastorais.
O
propósito papal era de, no contexto da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), partilhar
o nosso “caminho eclesial com as suas canseiras e esperanças” e rezar connosco,
para nos tornarmos ousados em abraçar
“o sonho de Deus e encontrar caminhos para uma participação alegre, generosa e
transformadora, a bem da Igreja e da humanidade”.
Evocando Portugal como “terra de passagem entre o
passado e o futuro, local de antigas tradições e de grandes mudanças”, com
realce para o oceano, sentiu o ambiente da vocação dos primeiros discípulos,
que Jesus chamou nas margens do Mar da Galileia, e acentuou: “O Senhor salvou-nos e chamou-nos, não em
atenção às nossas obras, mas segundo a sua graça” (cf 2Tm 1,9).
Naquele tempo, perante “dois barcos que se encontravam
junto do lago” e perante “os pescadores que tinham descido deles e lavavam as
redes” (Lc 5,2), Jesus decidiu subir para o barco de Simão e, tendo
falado às multidões, mudou a vida daqueles pescadores, incitando-os a
fazerem-se ao largo e a lançarem as redes.
Vê, aqui, o Pontífice duas atitudes contrastantes: os
pescadores descem do barco para
lavar as redes, guardá-las e voltar para casa; Jesus sobe para o barco e convida a lançar,
novamente, as redes para a pesca. Os discípulos descem,
Jesus sobe; os pescadores
querem guardar as redes, ao
passo que o Mestre quer que saiam,
de novo, para o mar, a fim de pescarem.
E a primeira conclusão é que, em Igreja, não se pode
desistir, quando as coisas não correm de feição: limpar as redes, sim, mas
guardá-las e ir para casa, não. Importa seguir sempre as indicações de Jesus,
atendendo aos seus sinais presentes naqueles que encontramos.
Pouco antes, diz o Papa, Jesus tentara iniciar a
pregação na sinagoga de Nazaré, mas os conterrâneos expulsaram-No da cidade e
tentaram matá-Lo (cf Lc 4,28-30). Então sai do lugar sagrado
e prega no meio da gente, pelas estradas onde labutam, dia a dia, as mulheres e
os homens. Cristo quer fazer
sentir a proximidade de Deus nos lugares e nas situações onde as pessoas vivem,
lutam, esperam, às vezes coligindo fracassos e insucessos, como aqueles
pescadores que não tinham pescado nada durante a noite. Jesus olha com ternura
para Simão e para os companheiros que, fatigados e angustiados, lavavam as redes,
num gesto repetitivo, cansado e resignado, pois não havia nada a fazer, senão
voltar para casa de mãos vazias.
Também no caminho eclesial se pode sentir o cansaço e perceber que “nada mais temos
nas mãos, além das redes vazias”. Trata-se dum sentimento difundido nos países
de antiga tradição cristã, “atravessados por muitas mudanças sociais e
culturais e cada vez mais marcados pelo secularismo, pela indiferença para com
Deus, por um progressivo afastamento da prática da fé”. Vê-se isso até na
desilusão e na aversão que alguns nutrem, face à Igreja, mercê do nosso mau testemunho
e dos escândalos que lhe desfiguram o rosto e que nos chamam a humilde e
constante purificação, partindo do grito de sofrimento das vítimas que se devem
acolher e escutar.
E, agora, esplende a multíplice obrigação dos agentes
pastorais: se o lugar sagrado é desprezado ou hostilizado, fale-se de Jesus e
do Evangelho entre as pessoas, onde elas estão, com os seus cansaços, anseios e
aspirações; dê-se testemunho da proximidade de Deus; ultrapasse-se o cansaço e
a desilusão; sujeitemos-mos todos à purificação contante, como contrapeso aos
erros que cometemos; e ouçamos os que são vítimas dos nossos erros.
Não podemos acabar “presos nas redes da resignação e
do pessimismo”. Antes, devemos confiar que Jesus nos toma pela mão. Por isso,
há que levar ao Senhor “as nossas canseiras e as nossas lágrimas, para podermos
enfrentar as situações pastorais e espirituais, dialogando entre nós com abertura de coração para experimentar novos
caminhos a seguir”.
Na verdade, Jesus também hoje passa pelas margens da existência
para despertar a esperança e dizer, como a Simão e aos outros: “Faz-te ao
largo; e vós lançai as redes para a pesca” (Lc 5,4). E o Papa vai
direto ao questionamento do Senhor à Igreja de hoje, neste tempo difícil: “Queres descer do barco
e afundar na desilusão, ou fazer-Me subir, permitindo que seja, mais uma vez, a
novidade da minha Palavra a tomar na mão o leme? Queres apenas conservar o
passado que ficou para trás ou lançar, de novo e com entusiasmo, as redes para
a pesca?”
É preciso “despertar
a ânsia pelo Evangelho”, a ânsia que nos comunica a imensidão do oceano.
É preciso fazer-nos ao largo, “não para conquistar o Mundo, mas para o alegrar
com a consolação e a alegria do Evangelho”. E Francisco citou o Padre António
Vieira, chamado “Paiaçu – pai grande”: “Para nascer, pequena terra;
para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o Mundo!” (A.
Vieira, Sermão de Santo António).
Segundo Vieira, “para nascer, Deus ter-nos-ia dado uma pequena terra, mas, ao
fazer-nos debruçar sobre o oceano, deu-nos o Mundo inteiro para morrer”, diz o
Papa. Somos, pois, chamados a lançar, de novo, as redes e a abraçar o Mundo com
a esperança do Evangelho, sem parar, sem desistir. Não devemos escapar deste tempo, porque nos mete medo, para nos
refugiarmos em formas e estilos do passado. É preciso perceber que “este
é o tempo da graça que o Senhor nos concede para nos aventurarmos no mar da evangelização
e da missão”. Todavia, para sermos eficazes, precisamos de fazer opções. E o Santo Padre enunciou três, com
inspiração evangélica. Ei-las:
“Fazer-se
ao largo” é a primeira opção. Para
lançar, de novo, as redes, há que
sair da margem das desilusões e do imobilismo, afastar-se da tristeza
melosa e do cinismo irónico, que nos assaltam nas dificuldades, e passar do derrotismo à fé, como Simão que,
tendo trabalhado em vão, toda a noite, conclui: “Porque Tu o dizes, lançarei as
redes.” Mas não bastam as palavras, é necessária “muita oração”, pois, só
diante do Senhor, encontraremos o gosto e a paixão pela evangelização, venceremos
a tentação da “pastoral nostálgica feita de lamentações” e ganharemos coragem
para nos fazermos ao largo, sem ideologias, nem mundanismos, animados por um único
desejo: que o Evangelho chegue a todos.
Dos exemplos que não nos faltam, o Papa destaca o do jovem
lisboeta, São João de Brito, que há séculos, no meio de dificuldades, partiu
para a India, onde não desdenhava falar e vestir-se à maneira das pessoas
locais, para lhes poder anunciar Jesus. A seu exemplo, também nós somos
chamados a mergulhar as redes no tempo em que vivemos, dialogando com todos, tornando compreensível
o Evangelho, mesmo com o risco de alguma tempestade. Como os jovens que vêm
de toda a parte, para desafiar as ondas gigantes da Nazaré, devemos fazer-nos
ao largo, sem medo de enfrentar o mar alto, porque, na tempestade e nos ventos contrários,
Jesus vem ao nosso encontro e diz: “Coragem, sou Eu, não temais!” (Mt 14,27).
“Levar
juntos por diante a pastoral” é a segunda opção. Jesus confia a Pedro a tarefa de fazer-se ao largo,
mas, depois, fala no plural, dizendo: “E vós lançai as redes.” Pedro guia o
barco, mas todos estão no barco e todos são chamados a fazer descer as redes.
E, ao apanharem grande quantidade de peixes, não se arranjam sozinhos, nem
gerem a dádiva como posse e propriedade privada, mas “fizeram sinal aos companheiros
que estavam no outro barco, para que os viessem ajudar” (Lc 5,7). E
encheram, não um, mas dois barcos: “um” significa solidão, fechamento, autossuficiência;
“dois” significa relação. Ora, a Igreja é sinodal, é comunhão, ajuda mútua, caminho comum. E
Francisco evocou o Sínodo em curso, que terá a primeira assembleia geral em
outubro, para assegurar que, “na barca
da Igreja, deve haver lugar para todos: todos os batizados são
chamados a subir para ela e lançar as redes, empenhando-se pessoalmente no anúncio
do Evangelho”.
Este é, segundo o Papa, “um grande desafio,
especialmente em contextos onde os sacerdotes e os consagrados estão cansados”,
pois as necessidades pastorais aumentam e “eles são cada vez menos”. Porém,
esta situação pode servir de ensejo para, com fraterno entusiasmo e sã
criatividade pastoral, envolver os leigos. E as redes dos primeiros discípulos
tornam-se a imagem da Igreja, que é uma “rede de relações” humanas,
espirituais e pastorais, mas que envelhecerá, se faltar o diálogo, a corresponsabilidade e a participação. Por
isso, o Bispo de Roma clama: “Nunca um Bispo sem o próprio presbitério e o Povo
de Deus; nunca um padre sem os seus irmãos sacerdotes; e todos juntos – sacerdotes, religiosas,
religiosos e fiéis leigos – como Igreja, nunca sem os outros, sem o Mundo.
Sem mundanismo, mas não sem o mundo.”
Em Igreja, apoiamo-nos reciprocamente e somos chamados
a difundir, também fora dela, um clima de fraternidade construtiva, pois, como
escreve São Pedro, “nós somos as pedras vivas usadas para a construção do edifício
espiritual. E o Santo Padre adapta o texto petrino: “Vós, fiéis portugueses,
formais uma calçada, sois os ladrilhos preciosos que compõem um tal pavimento
acolhedor e brilhante que o Evangelho há de pisar; e não pode faltar uma
pedrinha sequer, senão imediatamente se dá conta. Tal é a Igreja que, com a
ajuda de Deus, somos chamados a construir!”
“Tornar-se
pescadores de homens” é a terceira opção. Jesus
confia aos discípulos a missão de se fazerem ao largo no mar do Mundo. O mar
simboliza o lugar do mal e das forças adversas que não conseguimos dominar.
Assim, pescar as pessoas é tirá-las
da água, ajudá-las a voltar a subir de onde afundaram, salvá-las do mal que
ameaça afogá-las, ressuscitá-las de todas as formas de morte. Ora, o
Evangelho “é um anúncio de vida no mar da morte, de liberdade nas voragens da
escravidão, de luz no abismo das trevas”. Para Santo Ambrósio, os instrumentos
da pesca apostólica são como as redes, que não fazem morrer quem fica preso
nelas, mas conservam-no em vida, arrastam-no dos abismos para a luz. Não faltam trevas na sociedade, incluindo
Portugal. Sente-se que terá diminuído o entusiasmo, a coragem de sonhar, a
força para enfrentar os desafios, a confiança no futuro. E vamos
navegando nas incertezas, na precariedade económica, na pobreza de amizade social,
na falta de esperança. Porém, a nós, como Igreja, incumbe a tarefa de nos
fazermos ao largo, lançando a rede
do Evangelho, “sem acusar ninguém, mas levando às pessoas do nosso tempo uma
proposta de vida nova, que é a de Jesus”. Precisamos de “levar o
acolhimento do Evangelho a uma sociedade multicultural”; “a proximidade do Pai
às situações de precariedade e de pobreza, que crescem sobretudo entre os
jovens”; “o amor de Cristo onde é frágil a família e se encontram feridas as
relações”; e “a alegria do Espírito onde reinam o desânimo e o fatalismo”. Uma
paráfrase à dita Oração de São Francisco. E, citando Bernardo Soares, proclama:
“Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos
um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido” (F. Pessoa, Livro
do Desassossego, Lisboa 1998).
E sonha a Igreja Portuguesa como “porto seguro” para
quem “enfrenta as travessias, os naufrágios e as tempestades da vida”.
Por fim, salienta o exemplo e a constância dos nossos
agentes pastorais, que agradece, e confia-os a Nossa Senhora de Fátima, à
guarda do Anjo de Portugal e à proteção dos nossos grandes Santos e, em
especial, a Santo António, “apóstolo incansável, pregador inspirado, discípulo
do Evangelho atento aos males da sociedade e cheio de compaixão pelos pobres”,
com vista à alegria de uma nova pesca milagrosa. E, como é hábito, Francisco
pede que rezemos por si.
***
Em suma, à Igreja em Portugal, pede-se coragem,
proximidade, sintonia com as necessidades das pessoas e solidariedade com os
seus anseios; que se despregue do passado e sonhe futuro; que não desista de
propor – não impor –, com esperança, alegria e respeito, o Evangelho; que
dialogue e não anatematize; e, sobretudo, que não se canse, que não desista,
porque Jesus está aqui!
2023.08.04
– Louro de Carvalho
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