Refiro-me ao notável discurso
político do Papa Francisco, a 2 de agosto, no Centro Cultural de Belém, em
Lisboa, perante o Presidente da República, o governo, o corpo diplomático,
outras autoridades e representantes da sociedade civil.
Para muitos, é lícito que o Papa se
pronuncie sobre matéria doutrinal e da moral católica, pois reconhecem-lhe esse
dever e esse direito; depois, cada um pensa e faz como quer. Muitas pessoas e
grupos alinham com ele, quando aborda questões como as atinentes ao ambiente, à
proteção do planeta e ao futuro, quando prega a inclusão, o diálogo
intergeracional e a fraternidade ou quando clama que a Igreja é para “todos,
todos, todos”. É óbvio que se gosta de Francisco, pela empatia e pelo calor
humano que transmite, a par com a debilidade que é subvertida pela determinação
e pela capacidade de trabalho.
Porém, quando o discurso questiona
a situação do Mundo, marcado por um modelo económico de desenvolvimento (economia
que mata) enfeudado aos grandes interesses, à ambição bélica e à cultura do
descarte, da destruição e da morte, a música é outra: quem não tem vergonha
contesta; quem não concorda, mas quer ficar bem na fotografia, aplaude e
esquece; e muitos, que até concordam, sentem que Francisco lhes está a roubar
uma bandeira política que julgavam ser exclusivamente sua. Resta um escol, já
bastante numeroso, constituído por pensantes, na sua maioria, jovens que aderem
ao discurso total de Francisco – muitos deles católicos, mas também de outras
religiões e até descrentes, mas cuja consciência os impele.
***
Desta feita, saboreamos as citações
de poetas, de prosadores e de artistas portugueses (mesmo de crença duvidosa e
até nula) e os elogios a Lisboa e a Portugal, sem repararmos que partem da
verificação da realidade que o orador assume para captar a benevolência do
auditório, mas cujo escopo final é tirar consequências, ao nível da
responsabilidade histórica dos referentes.
Há quem tenha anotado a crítica ao
aborto e à eutanásia, mas sem a contextualizar no quadro mais vasto da cultura
do descarte que assola a Humanidade, e alegando que outra coisa não era de
esperar do líder máximo da Igreja Católica. É a normal tolerância da diferença!
***
Vejamos alguns tópicos do discurso.
Protocolarmente, agradeceu as
palavras e o acolhimento do Presidente da República.
Feliz por
estar em Lisboa – cidade do encontro de vários povos e culturas e que, naqueles
dias, se mostrava mais universal, tornando-se a capital do mundo (e a capital
do futuro, porque os jovens são o futuro) – vincou o seu caráter multiétnico e
multicultural, o que “revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as
suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e [de] explorá-lo, navegando rumo a
novos e amplos horizontes”. Não posso, aqui, deixar de pensar na primeira
edição do selo da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que o Vaticano retirou da
circulação, mercê das críticas de nacionalismo e de pretensa utilização do
Padrão dos Descobrimentos em que o Papa substituía o Infante na condução da
caravela (não de Portugal, mas da Igreja).
Citando
Camões, considerou que, durante séculos, se acreditou que, no Cabo da Roca, estivessem
“os confins do Mundo”, para admitir a legitimidade dessa crença, pois “este
país confina com o oceano, que delimita os continentes”; para eleger o mar – o
“mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim” (S. de Mello Breyner) – como o “apelo
que não cessa de ecoar no ânimo de cada português”, e para verificar que, “à
vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços
da alma e sobre o sentido da vida no mundo”.
O lado
positivista da vida já não nos leva a esta reflexão perante o mar. Não
obstante, deixando-se “levar pela imagem do oceano”, o Santo Padre partilhou
com o auditório português e do Mundo (estava o corpo diplomático: embaixadores
e similares) algumas reflexões.
A vastidão do
Oceano, como filho do Céu leva os mortais elevarem-se para o infinito; e, como
filho da Terra que abraça, “convida a envolver de ternura todo o mundo habitado”.
Não me digam que não subjaz a este segmento o apelo ao humanismo e à cultura da
paz e da fraternidade.
Porém, o
oceano une povos e países, terras e continentes, pelo que “Lisboa, cidade do
oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as
fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto”. Há,
aqui, o apelo à união, pois, apesar de as grandes questões serem globais e de
termos a experiência da ineficácia da resposta às mesmas, o Mundo, face a
problemas comuns, mantém-se dividido ou insuficientemente unido, “incapaz de
enfrentar” o que põe todos em crise. “As injustiças planetárias, as guerras, as
crises climáticas e migratórias” correm mais do que a capacidade e a vontade de
enfrentar, em conjunto, tais desafios.
E o Papa, a
este propósito, atribui a Lisboa acrescida responsabilidade: a de “sugerir uma
mudança de ritmo”. Com efeito, em 2007, foi assinado o Tratado de reforma da
União Europeia (UE), declarando que “a União tem por objetivo promover a paz,
os seus valores e o bem-estar dos seus povos” e que, “nas suas relações com o
resto do mundo [...], contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento
sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o
comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos
humanos”. Estas palavras são “marcos miliários no caminho da comunidade
europeia, esculpidos na memória desta cidade”. É “o espírito do conjunto, animado pelo
sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental”.
Diz o Papa que,
segundo etimologia discutível, que o nome “Europa” deriva duma palavra que “indica
a direção do ocidente”. E Lisboa, sendo “a capital mais ocidental da Europa
continental”, lembra “a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos,
como aliás Portugal está a fazer, sobretudo com os países de outros continentes,
irmanados pela mesma língua”. Por isso, Francisco espera que a JMJ seja, para o
“velho continente” ou continente “ancião”, “um impulso de abertura universal”,
que o torne “mais jovem”.
Porém, não é
só Lisboa que tem a responsabilidade pelos desvios da UE, em relação às raízes
e aos compromissos europeus, o que leva o orador preconizar que o Mundo tem
necessidade da Europa verdadeira, do seu “papel de construtora de pontes e de
pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente”.
Por isso, pode trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade
específica, delineada no século XX, quando do crisol dos conflitos mundiais fez
saltar a centelha da reconciliação, concretizando “o sonho de se construir o
amanhã, juntamente com o inimigo de ontem”: “abrir percursos de diálogo,
percursos de inclusão”, através da “diplomacia da paz que extinga os conflitos
e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler
por entre as linhas mais distorcidas da realidade”.
Considerando
que, no oceano da História, navegamos “num momento tempestuoso” e se sente “a
falta de rotas corajosas de
paz”, o Pontífice olha a Europa com afeto, no espírito de diálogo que a carateriza,
mas interpela-a: “Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias
inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que
ensanguentam o mundo?” É óbvio que a interpelação contraria o pensamento único
construído à volta da exclusiva responsabilidade da Rússia pelo conflito.
Daqui, o principal apagão!
Como é óbvio,
a Europa que deu cartas ao Mundo, tornou-se dependente e membro do Ocidente que
a asfixia, pelo que o Papa alargou a interpelação: “Que rota estás a seguir, Ocidente? A tua tecnologia, que
marcou o progresso e globalizou o Mundo, sozinha não basta; e muito menos
bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o
futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a
saúde, o estado social.”
Agora o
apagão é mais hipócrita: todos juram paixão pela Educação, pela Saúde, pelo
Estado Social”, mas gastam muito mais em equipamentos de guerra. E o meigo
Francisco zurziu: “Em muitos lugares, investem-se, continuamente, os recursos
em armas, e não no futuro dos filhos. […] O investimento que rende melhor é na
fabricação de armas. Investe-se mais em armas do que no futuro dos nossos
filhos.”
Porém, não
desiste: “Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para
apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; […] que saiba reencontrar
o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades
imediatas; […] que inclua povos e pessoas com a sua própria cultura, sem correr
atrás de teorias e colonizações ideológicas [ideia recorrente].” Enfim, sonha
como os pais fundadores da UE, que “sonhavam em grande”.
Depois,
frisando que o oceano, com a imensa vastidão de água, “recorda as origens da
vida”, sustenta que, no mundo evoluído, se tornou prioritário “defender a vida
humana, posta em risco por derivas utilitaristas, que a usam e descartam” (está
aqui o nó do problema): a cultura do descarte da vida (que leva à cultura da
morte). E o Papa fala das “crianças não-nascidas” e dos idosos abandonados a si
mesmos, da “dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de
longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias
com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos”.
Por isso,
interroga: “Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos,
os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? […] Para
onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios
rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce,
mas na realidade é mais amarga que as águas do mar?” E pensa “em tantas leis
sofisticadas sobre a eutanásia”. Porém, não exige a mudança das leis, mas a
consciencialização das pessoas para os problemas e para as soluções à luz da
ética, que se estende à atitude de abandono, de negligência e de morte, pela
fome e pela guerra.
***
Após estas
duras interpelações, Francisco olha para Lisboa, abraçada pelo oceano, como cidade
da esperança, que nos oferece “motivos para esperar”. Agradece o trabalho e o
empenho de Portugal para acolher esta grande “maré de jovens que se espraia
sobre esta cidade acolhedora”, num evento “tão complexo de gerir, mas fecundo
de esperança” (“ao lado dos jovens, não se envelhece”). São “jovens
provenientes de todo o Mundo que cultivam anseios de unidade, paz e
fraternidade”, e que nos desafiam a “realizar os seus sonhos bons”. Não gritam
raiva, mas partilham “a esperança do Evangelho, a esperança da vida”. E, ao
invés do clima de protesto e de insatisfação, que é “terreno fértil para
populismos e conspirações”, a JMJ “é ocasião para construir, juntos” e “reaviva o desejo de criar coisas novas,
fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro”.
E, citando
Fernando Pessoa, dizendo que “Navegar é preciso; viver não é preciso […]; o que
é necessário é criar”, fixou que “navegar é preciso”, criativamente, mas
juntos, e imaginou três estaleiros da
esperança, onde podemos trabalhar, unidos: o ambiente, o futuro, a
fraternidade.
Do ambiente, disse
que “Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da
criação”. Todavia, o problema global é muito grave: os oceanos aquecem e “sobe
à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum”. Transformamos “as
grandes reservas de vida em lixeiras de plástico”. Ora, “o oceano lembra-nos
que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do
que nós” e que “deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais
novas”, pois não acreditamos nos jovens, “se não lhes dermos um espaço sadio
para construírem o seu futuro”.
“O futuro são os
jovens”. Porém, muitos fatores os desanimam: a falta de trabalho, os ritmos
frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de
encontrar casa e o medo de constituir família e de trazer filhos ao mundo. No
Ocidente, “assiste-se a uma fase descendente na curva demográfica”, parecendo o
progresso ser uma questão atinente “ao desenvolvimento técnico e ao conforto
dos indivíduos”. Porém, o futuro pede que se contrarie “a queda da natalidade e
o declínio da vontade de viver”.
E deixa a
lição da boa política: “pode gerar esperança”, pois “não é chamada a conservar
o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar”, a “corrigir os
desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas, mas não as
distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos”; é chamada “a
voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação”, a
investir no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças
intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre
jovens e idosos”.
É óbvio que
uma ótica ultraliberal e hedonista não digere este tipo de discurso. Portanto,
cala-o.
Evocando a
saudade portuguesa, que exprime nostalgia, o Papa quer a retoma do diálogo entre
jovens e idosos. E considera: “Os jovens devem encontrar as suas próprias
raízes nos idosos. […] É importante a educação, que não pode limitar-se a
fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a
introduzir numa História, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade
religiosa do homem e favorecer a amizade social.”
Por último,
vem o estaleiro da fraternidade,
que os cristãos aprendem do Senhor Jesus Cristo. Se, em muitas partes de
Portugal, está vivo o sentido de vizinhança e da solidariedade, “no contexto
geral duma globalização que nos aproxima, mas não nos dá uma proximidade fraterna,
somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter
com quem vive ao nosso lado, pois, como escreveu Saramago, “o que dá verdadeiro
sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que
está perto”. E o Papa enalteceu a beleza de “voltar[mos] a descobrir-nos irmãos
e irmãs”, de “trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e
diferenças de perspetiva” e, derrubando, como os jovens, “as rígidas divisórias
de pertença erguidas em nome de opiniões e de crenças diversas”.
Evocando o
exemplo de muitos jovens que cultivam o desejo de se fazerem próximo dos
outros, mencionou a iniciativa ‘Missão País’, “que leva milhares de jovens a
viver, no espírito do Evangelho, experiências de solidariedade missionária em
zonas periféricas”, “indo ao encontro de muitos idosos sozinhos”. Agradeceu e
encorajou a tantos que, em Portugal, “se preocupam com os outros, nomeadamente
a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes”.
Por fim,
exortou a que nos sintamos “chamados, todos juntos fraternalmente, a dar
esperança ao Mundo em que vivemos”, bem como “a este magnífico país”, que Deus
abençoe.
***
Queria ver o
discurso assumido todo e por todos, sem apagões, nem instrumentalizações.
2023.08.09 – Louro de carvalho
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