No cerne da liturgia do 21.º domingo do Tempo Comum,
no Ano A, está o tema fundamental em torno do qual se estrutura e constrói a
vida cristã: a relação Cristo-Igreja.
Não vejo aqui dois temas, mas um tema único, visto que
a relação íntima e operativa torna o binómio Cristo/Igreja, uma só realidade.
Contudo, é de advertir, antes de mais, que Foi Jesus Cristo que instituiu a
Igreja e não foi esta que inventou Cristo. Por isso, a referência última dos
cristãos é Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho do Deus vivo, e não a Igreja,
sendo esta que se amolda a Cristo, não vice-versa.
***
O trecho do Evangelho (Mt 16,13-20) proclamado faz a pedagogia da fé cristológica e lança,
pela voz de Jesus, o ser da Igreja e a sua estruturação à volta de Pedro,
vincando que a Igreja é fruto da fé em Cristo.
Situamo-nos no Norte da Galileia, perto das nascentes
do rio Jordão, em Cesareia de Filipe (zona da atual Bânias), cidade construída
por Herodes Filipe (filho de Herodes, o Grande) no ano 2 ou 3 a.C., em honra do
imperador Augusto. O episódio em causa ocupa lugar central no Evangelho de
Mateus, constituindo um momento de viragem, por se desenhar, no horizonte de
Jesus, o destino de cruz. Após o êxito inicial do seu ministério, Jesus sente a
oposição dos líderes e algum desinteresse da parte do Povo. A pregação do Reino
só é acolhida pelo pequeno grupo dos discípulos. E era preciso testar a solidez
do grupo, que vivia com Jesus, O escutava, mas tinha dificuldade em entendê-Lo no
essencial, pois o conceito de Messias que os discípulos tinham na cabeça era o
do rei que distribuía lugares de mando e reinava a ferro e fogo.
Jesus começa por interrogar os discípulos sobre o que
dizem as pessoas que Ele é, para chegar à pergunta sob o que pensam eles do seu
Mestre. Não visava medir o grau de popularidade, mas esclarecer os discípulos e
confirmá-los na escolha do seguimento de Jesus e na aposta no Reino.
Mateus remodelou e ampliou o texto de Marcos, acrescentando
a afirmação de Pedro sobre Jesus, “Tu és o Messias” (Sý eî ho Khistós), o apositivo, “o Filho do Deus vivo” (ho hyiòs toû Theoû toû Zôntoûs), bem como
o discurso sobre a Igreja firmada sobre Pedro.
O trecho em apreço divide-se em duas partes. A
primeira (Mt 16,13-16) centra-se em
Jesus e na definição da sua identidade; a segunda (Mt 16,17-20), não se despregando de Jesus, realça a Igreja, que
Jesus convoca à volta de Pedro.
Na primeira parte, percebemos que a opinião dos
“homens” vê Jesus na sequência do passado (João Batista, Elias, Jeremias ou
algum dos profetas); não capta a condição única, a novidade de Jesus. Só admite
que Jesus é um homem convocado por Deus e enviado ao Mundo com uma missão – tal
como os profetas do Antigo Testamento (AT). Na sua ótica, Jesus é um homem bom,
justo e generoso, que escutou o apelo de Deus e que Se esforçou por ser um
sinal vivo de Deus. Ora, isso não é o suficiente: significa que os homens não
entenderam a profundidade do mistério de Jesus. E a opinião dos discípulos, que
viviam com Jesus, não ia muito além disto. Não obstante, Pedro, porta-voz da
comunidade dos discípulos, adianta-se e resume o sentir da comunidade do Reino
na expressão: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
Nestes dois títulos resume-se a fé da Igreja de Mateus
e a catequese aí feita sobre Jesus. Dizer que Jesus é “o Cristo” (Messias)
significa aceitá-Lo como o libertador que Israel esperava, enviado por Deus
para libertar o Povo e para lhe oferecer a salvação. Todavia, para os membros
da comunidade do Reino, Jesus não é só o Messias: é também o “Filho de Deus”.
No AT, a expressão “Filho de Deus” é aplicada aos
anjos, aos vários membros do Povo de Deus e ao Messias/rei da linhagem de David.
Designa a condição de quem tem particular relação com Deus, a quem Deus elegeu
e a quem Deus confiou uma missão. Definir Jesus como o Filho de Deus é dizer
que Ele recebe vida de Deus, que vive em total comunhão com Deus, que
desenvolve com Deus uma relação de profunda intimidade e que Deus Lhe confiou
uma missão única para a salvação dos homens. Significa reconhecer a profunda
unidade e intimidade entre Jesus e o Pai, de modo que Jesus conhece e realiza o
desígnio do Pai entre os homens. E os discípulos são convidados a entender,
desta forma, o mistério de Jesus.
Na segunda parte, Jesus responde à confissão de fé da
comunidade dos discípulos, proferida pela voz de Pedro. Felicita Pedro (isto é,
a comunidade) pela clareza da fé que o anima. Porém, adverte que a fé não é
mérito de Pedro, mas dom de Deus (“não foram a carne e o sangue que to
revelaram, mas o meu Pai que está nos céus”). Pedro (os discípulos) pertence à
categoria dos pobres, dos simples, abertos à novidade de Deus, que têm o coração
disponível para acolher o dom de Deus, em contraposição com os líderes – fariseus,
doutores da Lei, escribas – instalados nas suas seguranças e preconceitos,
incapazes de abrir o coração aos desafios de Deus.
O facto de Jesus dizer a Pedro que ele é a rocha (“Pedro”
é a tradução grega do hebraico “Kephâ” – “rocha”) sobre a qual é firmada a
Igreja de Jesus deve ser visto no contexto da confissão de fé precedente. Portanto,
Mateus afirma que a base firme e inamovível sobre a qual assenta a “Ekklesía”
de Jesus é a fé que Pedro e a comunidade dos discípulos professam: a fé em
Jesus como o Messias, o Filho do Deus vivo.
Para tanto, Jesus promete a Pedro “as chaves do Reino
dos céus” e o poder de “ligar e desligar”. A entrega das chaves equivale à
nomeação do “administrador do palácio” de que fala a primeira leitura: o
“administrador do palácio”, entre outras coisas, administrava os bens do
soberano, fixava o horário da abertura e do fechamento das portas do palácio e
definia quais os visitantes a introduzir junto do soberano. E a expressão “atar
e desatar” designava, entre os Judeus, o poder de interpretar a Lei com
autoridade, declarando o que era permitido, ou não, para reintroduzir alguém na
comunidade do Povo de Deus. Assim, Jesus nomeia Pedro para administrador e
supervisor da Igreja, com autoridade para interpretar as palavras de Jesus,
para adaptar os ensinamentos de Jesus a novas necessidades e situações e para
acolher, ou não, novos membros na comunidade dos discípulos do Reino. Todos são
chamados por Deus a integrar a comunidade do Reino e devem ser nela acolhidos e
abraçados; mas os que rejeitam a pessoa de Jesus e o Reino está a
autoexcluir-se. Porém, se Pedro usar a chave só para fechar, se se esquece de
abrir, transforma a Igreja numa seita, num gueto.
A chave é para fechar a porta, não para impedir as
pessoas de entrarem, mas para as proteger (já dentro) dos inimigos, das intempéries,
das trevas da noite. A chave é a para abrir portas: para acolher quem chega e
para não impedir de sair quem o queira fazer.
As portas do inferno não prevalecerão. É verdade, mas
não é só porque a Igreja é forte, mas porque Jesus está nela e com ela e porque
não se deixa vencer em ternura, em acolhimento, em serviço, em fraternidade.
Mal andam os que fazem gala nas absolvições que negam, nas excomunhões que
lançam, nas exclusões a que procedem, nos oportunismos com que viram a Igreja a
seu favor!
Não se trata de um poder absoluto confiado a Pedro.
Aliás, tem-se visto a rocha de Pedro como a pedra onde batem as ondas do mar
bravo (o Mundo com seus erros) ou a rocha dura contra a qual investem os
inimigos, quando ela tem a outra faceta: a ela aderem as lapas e os musgos;
nela, feita gruta de acolhimento e de proteção, repousam os aflitos, os
cansados, os desanimados; nela convivem os irmãos e companheiros; nela retemperam
forças para retoma da caminhada.
Pedro é, aqui, um discípulo que dá voz a todos os que
acreditam em Jesus e representa a comunidade dos discípulos. Com efeito, o poder
de “ligar e desligar”, por exemplo, aparece confiado à totalidade da
comunidade, não a Pedro em exclusivo (cf Mt
18,18), no contexto da correção fraterna, sendo que todos devem assumir a
responsabilidade pela sorte dos irmãos.
Por isso, o mais óbvio é ver em Pedro o protótipo do
discípulo; nele, está representada e firmada a comunidade que se reúne à volta
de Jesus e que proclama a fé em Jesus como o “Messias”, o “Filho de Deus”. É a
esta comunidade, representada e presidida por Pedro, que Jesus confia as chaves
do Reino e o poder de acolher ou de declarar a autoexclusão. Isso não impede
que Pedro fosse uma figura de referência para os primeiros cristãos e que
desempenhasse papel de primeiro plano na animação da Igreja nascente.
Aquele(s)que detém(êm) “as chaves” não pode(m) usar a autoridade
para concretizar interesses pessoais e para impedir aos irmãos o acesso aos
bens eternos, mas para exercer o serviço como o pai que procura o bem dos filhos,
com solicitude, com amor e com justiça.
***
A primeira leitura (Is 22,19-23) prepara-nos para entendermos o poder das chaves.
Isaías nasceu por de 760 a.C., provavelmente em
Jerusalém. Bastante jovem, sentiu-se chamado por Deus para ser profeta (“no ano
da morte do rei Ozias”, por volta de 740-739 a.C.), pelo que desempenhará essa
missão por longo espaço de tempo (os últimos oráculos são de finais do século
VIII ou princípios do século VII a.C.), constituindo a consciência crítica dos reis
que, nessa fase, presidiram aos destinos do Povo de Deus.
De família nobre, Isaías, homem culto e enérgico, frequenta
os círculos de poder, é dos notáveis do reino de Judá e participa nas decisões
relativas à condução do reino, falando com autoridade aos altos funcionários e aos
reis. Porém, não apoia as classes altas: os seus maiores ataques são dirigidos
aos grupos dominantes: autoridades, juízes, latifundiários, políticos, mulheres
da classe alta que vivem em luxo escandaloso. Defende, com paixão, os
oprimidos, os órfãos, as viúvas, o povo explorado e desencaminhado pelos
governantes. E convida instantemente povo à conversão, para que se volte para
Javé, respeite os compromissos assumidos, reaprenda a viver no âmbito da Aliança
e ponha, de novo, Deus e os mandamentos no centro da vida.
O oráculo de hoje leva-nos à época do rei Ezequias. Em
714 a.C., Ezequias atinge a maioridade e toma conta dos destinos de Judá. Com o
desejo de reforma religiosa e de independência política, revela propensão para
alianças políticas contra os assírios (que, desde o reinado de Acaz, mantêm
Judá sob a sua autoridade). Em resposta, Senaquerib volta-se contra Judá e
devasta-a. Em 701 a.C., Jerusalém é cercada pelos assírios e Ezequias tem de
aceitar uma submissão ainda mais onerosa do que a anterior.
Contudo, o episódio em causa não se refere aos grandes
acontecimentos políticos em que Judá se vê envolvido. Refere-se, antes, a um
episódio doméstico da vida do palácio. Shebna e Elyaqîm são altos funcionários
de Ezequias, que o Segundo Livro dos Reis
cita a propósito de um episódio relacionado com a invasão de Senaquerib.
O oráculo dirige-se a Shebna, administrador do palácio.
Anuncia-lhe a expulsão do cargo e a substituição por Elyaqîm, pois Shebna
talhou, para si, um sepulcro no alto e cavou na rocha um mausoléu. E foi
condenado, ou porque isto era sinal de orgulho pessoal, ou porque terá utilizado
o dinheiro do povo ou despendido dinheiro em futilidades, quando o povo mais
precisava.
Shebna, substituído nas suas funções, será despojado
das insígnias do seu poder (a túnica, o cinto, a chave do palácio), que serão atribuídas
a Elyaqîm. E Elyaqîm receberá, o “poder das chaves” do palácio. O mordomo do
palácio, entre outras coisas, conservava as chaves do palácio, administrava os
bens do soberano, fixava a abertura e o fechamento das portas e definia quais
os visitantes a introduzir junto do soberano.
Isaías deposita grande esperança em Elyaqîm e na forma
como ele desempenhará funções. A expressão do profeta – “ele será um pai para
os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá” – indica que Elyaqîm exercerá
o serviço da autoridade com solicitude, com amor, com justiça. A referência à
estaca (“fixá-lo-ei como uma estaca num lugar firme”) revela que, na ótica de
Isaías, Elyaqîm desempenhará as suas funções com grande firmeza.
Esta história privada – de corrupção e de venalidade –
é-nos dada como Palavra de Deus, porque antecipa o passo evangélico hoje
proclamado, meditado e, desejavelmente, assumido. Prepara-nos para entendermos
melhor este Evangelho . Define em que consiste o verdadeiro serviço “das
chaves”, o serviço da autoridade: ser um pai para aqueles sobre quem se tem
responsabilidade e procurar o bem de todos com solicitude, com amor, com
justiça.
***
A segunda leitura (Rm
11,33-36) convida a contemplar a riqueza, a sabedoria e a ciência de Deus que,
de forma misteriosa e até desconcertante, realiza o seu desígnio de salvação.
Ao homem resta entregar-se, confiadamente, nas mãos de Deus e deixar que o seu
espanto e adoração se transformem em hino de amor e de louvor ao Deus salvador
e libertador.
Após refletir sobre o desígnio salvífico de Deus e de
ter tentado perceber o lugar de Israel nesse desígnio, Paulo, abismado,
contempla a riqueza, a sabedoria e a ciência de Deus, três qualidades de Deus que
induzem as exclamações e interrogações que preenchem o resto do hino. Ou seja,
o apóstolo reconhece que o desígnio de Deus é misterioso e ultrapassa
infinitamente a capacidade de compreensão e de entendimento do homem. Deus é
sempre mais do que aquilo que o homem possa imaginar: mais sábio, mais
poderoso, mais misericordioso.
Ao homem cabe reconhecer a sua pequenez, os seus limites,
a sua finitude, a sua incapacidade de compreender totalmente o Deus
desconcertante e incompreensível. E, mesmo quando as coisas parecem não fazer
sentido (porque a lógica de Deus é diferente da dos homens), ao homem resta
atirar-se, confiadamente, para os braços de Deus, acolher a sua Palavra e
procurar seguir, com simplicidade e amor, os seus caminhos. O verdadeiro crente
é aquele que, mesmo sem entender o alcance do desígnio de Deus, se entrega nas
suas mãos e deixa que o seu espanto e adoração se transformem num hino de
louvor: “Glória a Deus para sempre. Ámen”.
É ao serviço do desígnio insondável do Pai misericordioso
que Jesus vem ao Mundo, de que tira o pecado, e congrega a Igreja sob Pedro,
para que anuncie o Reino e para ele encaminhe toda a Humanidade, a fim de que a
alegria de Deus e a alegria dos homens sejam uníssonas, numa só comunhão de
vida.
2023.08.27 – Louro de Carvalho
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